MARIO DE ANDRADE


O MOVIMENTO MODERNISTA


Conferência lida no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no dia 30 de abril de 1942.


RIO DE JANEIRO
1942

editar

Palavras de Augusto de Almeida Filho, saudando, em nome da Casa do Estudante do Brasil, o escritor Mario de An­drade por ocasião da sua con­ferência realizada por iniciati­va do Departamento Cultural da C. E. B., no salão de confe­rências da Biblioteca do Mi­nistério das Relações Exterio­res do Brasil, no dia 30 de abril de 1942, sob a presidên­cia do poeta Carlos Drumond de Andrade:


Hoje os fados conspiraram a meu favor unindo nesta festa dois motes emocionais que me são extremamente caros; a Casa do Estudante do Brasil e Mario de Andrade.

E por isto me sinto inteiramente à vontade em vos falar neste momento em nome da Casa do Estudante saudando Mario de Andrade.

E' esta talvez uma das ocasiõas mais felizes de minha vida intelectual, porque a Casa do Estudante está ligada a mim pelos laços indestrutiveis do sentimento. Quando ainda adolescente tive a oportunidade de assistir à sua luta inicial e à sua afirmação, e até hoje venho acompanhando com carinho o seu desenvolvimento e as suas vitórias. Todas as vezes que olho para trás procurando reconstruir os primórdios de minha vida estudantil, encontro sempre a Casa do Estudante presa às suaves lembranças de minha juventude. Mario de Andrade é para a minha geração mais do que um poeta, mais do que o erudito, mais do que o crítico, mais do que o conhecedor de música: ele é, antes de tudo e sobre tudo, um símbolo que se firmou e se desenvolveu na luta contra a rotina.

E' este o seu característico essencial, é esta a sua marca no tempo, e é este o seu lugar dentro da história da inteligência no Brasil. O modernismo foi escrito entre nós pela sua coragem e pelo entusiasmo de seus companheiros. Em pleno ciclo parnasiano, quando o fetiche da forma e o decadentismo do pensamento dominavam e empolgavam todas as inteligências da chamada elite brasileira de então, o grito rebelde dos modernistas teve fulgurações de relâmpago, gloriosas auroras, e ao mesmo tempo foi o prenúncio de tempestades violentas. O desafio estava lançado. Iniciara-se, assim, uma nova luta entre o estabelecido, que não satisfazia mais as ânsias do espírito, e o novo, paradoxalmente gerado em seu próprio bojo. Hoje, passada a fase heróica, de combates e de lutas, ser modernista é uma posição cômoda e facil. Ontem chegava a ser confundida com sérias e perigosas psicoses e era quase um caso de polícia...

Voltaire afirmou com razão, que toda a verdade nova desperta desconfiança, despeito e inimizade. Porem a história do pensamento não se faz de comodismos, nem de recuos, nem de adaptações estéreis. A vida está no movimento, já nos ensinava o velho Aristóteles. A busca, a inquietação fáustica, a insatisfação consigo mesmo e com a sua obra são traços marcantes da personalidade de Mario de Andrade. E quem sabe se o próprio segredo de sua constante vitalidade não está nesta especie de amor intelectual que parece inconstância e dispersão mas que é principalmente grandeza e fecundidade?

Se existem contradições em suas obras, são contradições de superfície, porque a tessitura de seu espírito e o âmago do seu pensamento é um só; a sua unidade é absoluta e harmônica. Desde Paulicéia desvairada até hoje, o ciclo intelectual de Mario de Andrade tem sido fecundo para o pensamento e de afirmações positivas para a dignidade de espírito.

Macunaima, um de seus livros fundamentais, é a projeção lírica do sentimento brasileiro, é a alma do Brasil virgem e desconhecida se revelando, são as lendas do povo, é a poesia e o encantamento da terra e do homem brasileiro.

O modernismo hoje deixou de ser iconoclasta e destruidor, para se afirmar no ritmo construtivo. E' a dialética em plena realização. E' a antítese gerando uma nova síntese.

Mas deixemos a palavra a Mario de Andrade, que com as suas responsabilidades e a sua autoridade nos contará hoje a história do modernismo, com as suas transformações e com os seus segredos, e demonstrará a sua importância na vida mental brasileira. Hoje mais do que nunca esta palavra se torna necessária, porque defender a inteligência é um imperativo da dignidade do espírito.

O Movimento Modernista editar

Manifestado especialmente pela arte, mas manchando tambem com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática européia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da conciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional. Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte Moderna ficou sendo o brado coletivo principal. Há um mérito inegavel nisto, embora aqueles primeiros modernistas... das cavernas, que nos reunimos em torno da pintora Anita Malfatti e do escultor Vitor Brecheret, tenhamos como que apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacional muito mais complexa que nós. Força fatal, que viria mesmo. Já um crítico de senso-comum afirmou que tudo quanto fez o movimento modernista, far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa. Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o movimento modernista, seria pura e simplesmente... o movimento modernista.

Fazem vinte anos que realizou-se, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna. E' todo um passado agradavel, que não ficou nada feio, mas que me assombra um pouco tambem. Como tive a coragem para participar da quela batalha! E' certo que com minhas experiências artísticas muito que venho escandalizando a intelectualidade do meu país, porem, expostas em livros e artigos, como que essas experiências não se realizam in anima nobile. Não estou de corpo presente, e isto abranda o choque da estupidez. Mas como tive coragem pra dizer versos diante duma vaia tão bulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?... Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?...

O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encorajado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros. Apesar da confiança absolutamente firme que eu tinha na estética renovadora, mais que confiança, fé verdadeira, eu não teria forças nem físicas nem morais para arrostar aquela tempestade de achincalhes. E si aguentei o tranco, foi porque estava delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. Por mim, teria cedido. Digo que teria cedido, mas apenas nessa apresentação espetacular que foi a Semana de Arte Moderna. Com ou sem ela, minha vida intelectual seria o que tem sido.

A Semana marca uma data, isso é inegavel. Mas o certo é que a pre-conciência primeiro, e em seguida a convicção de uma arte nova, de um espírito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo no... sentimento de um grupinho de intelectuais paulistas. De primeiro foi um fenômeno estritamente sentimental, uma intuição divinatória, um... estado de poesia. Com efeito: educados na plástica "histórica", sabendo quando muito da existência dos impressionistas principais, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos mostrar quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o "Homem Amarelo", a "Estudanta Russa", a "Mulher de Cabelos Verdes". E a esse mesmo "Homem Amarelo" de formas tão inéditas então, eu dedicava um soneto de forma parnasianíssima... Eramos assim.

Pouco depois Menotti del Picchia e Osvaldo de Andrade descobriam o escultor Vitor Brecheret, que modorrava em São Paulo numa espécie de exílio, um quarto que lhe tinham dado gratis, no Palácio das Indústrias, pra guardar os seus calungas. Brecheret não provinha da Alemanha, como Anita Malfatti, vinha de Roma. Mas tambem importava escurezas menos latinas, pois fora aluno do célebre Maestrovic. E fazíamos verdadeiras rêveries a galope em frente da simbólica exasperada e estilizações deco- rativas do "gênio". Porque Vitor Brecheret, para nós, era no mínimo um gênio. Este o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos a que ele nos sacudia. E Brecheret ia ser em breve o gatilho que faria "Paulicéia Desvairada" estourar...

Eu passara esse ano de 1920 sem fazer poesia mais. Tinha cadernos e cadernos de coisas parnasianas e algumas timidamente simbolistas, mas tudo acabara por me desagradar. Na minha leitura desarvorada, já conhecia até alguns futuristas de última hora, mas só então descobrira Verhaeren. E fôra o deslumbramento. Levado em principal pelas "Villes Tentaculaires", concebi imediatamente fazer um livro de poesias "modernas", em verso-livre, sobre a minha cidade. Tentei, não veio nada que me interessasse. Tentei mais, e nada. Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha se acabado em mim?... E eu me acordava insofrido.

A isso se ajuntavam dificuldades morais e vitais de vária espécie, foi ano de sofrimento muito. Já ganhava pra viver folgado, mas na fúria de saber as coisas que me tomara, o ganho fugia em livros e eu me estrepava em cambalaxos financeiros terriveis. Em familia, o clima era torvo. Si Mãe e irmãos não se amolavam com as minhas "loucuras", o resto da família me retalhava sem piedade. E com certo prazer até: esse doce prazer familiar de ter num sobrinho ou num primo, um "perdido" que nos valoriza virtuosamente. Eu tinha discussões brutais, em que os desaforos mútuos não raro chegavam àquele ponto de arrebentação que... porque será que a arte os provoca! A briga era braba, e si não me abatia nada, me deixava em ódio, mesmo ódio.

Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesso dele que eu gostava, uma "Cabeça de Cristo", mas com que roupa! eu devia os olhos da cara! Andava às vezes a-pé por não ter duzentos réis pra bonde, no mesmo dia em que gastara seiscentos mil réis em livros... E seiscentos mil réis era dinheiro então. Não hesitei: fiz mais conchavos financeiros com o mano, e afinal pude desembrulhar em casa a minha "Cabeça de Cristo", sensualissimamente feliz. Isso a notícia correu num átimo, e a parentada que morava pegado, invadiu a casa pra ver. E pra brigar. Berravam, berravam. Aquilo era até pecado mortal! estrilava a senhora minha tia velha, matriarca da família. Onde se viu Cristo de trancinha! era feio! medonho! Maria Luisa, vosso filho é um "perdido" mesmo.

Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginavel de estraçalho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruidos, luzes, falas abertas subindo dos chofêres de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, "Paulicéia Desvairada". O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro [1].

Quem teve a idéia da Semana de Arte Moderna? Por mim não sei quem foi, nunca sube, só posso garantir que não fui eu. O movimento, se alastrando aos poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente. Já tínhamos lido nossos versos no Rio de Janeiro; e numa leitura principal, em casa de Ronald de Carvalho, onde tambem estavam Ribeiro Couto e Renato Almeida, numa atmosfera de simpatia, "Paulicéia Desvairada" obtinha o consentimento de Manuel Bandeira, que em 1919 ensaiara os seus primeiros versos-livres, no "Carnaval". E eis que Graça Aranha, célebre, trazendo da Europa a sua "Estética da Vida", vai a São Paulo, e procura nos conhecer e agrupar em torno da sua filosofia. Nós nos ríamos um bocado da "Estética da Vida" que ainda atacava certos modernos europeus da nossa admiração, mas aderimos francamente ao mestre. E alguem lançou a idéia de se fazer uma semana de arte moderna, com exposição de artes plásticas, concertos, leituras de livros e conferências explicativas. Foi o próprio Graça Aranha? foi Di Cavalcanti?... Porem o que importa era poder realizar essa idéia, alem de audaciosa, dispendiosíssima. E o fator verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma figura como ele e uma cidade grande mas provinciana como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana.

Houve tempo em que se cuidou de transplantar para o Rio as raizes do movimento, devido às manifestações impressionistas e principalmente post-simbolistas que existiam então na capital da República. Existiam, é inegavel, principalmente nos que mais tarde, sempre mais cuidadosos de equilíbrio e espírito construtivo, formaram o grupo da revista "Festa". Em São Paulo, esse ambiente estético só fermentava em Guilherme de Almeida e num Di Cavalcanti pastelista, "menestrel dos tons velados" como o apelidei numa dedicatória esdrúxula. Mas eu creio ser um engano esse evolucionismo a todo transe, que lembra nomes de um Nestor Vitor ou Adelino Magalhães, como elos precursores. Então seria mais lógico evocar Manuel Bandeira , com o seu "Carnaval". Mas si soubéramos deste por um acaso de livraria e o admirávamos, dos outros, nós, na província, ignorávamos até os nomes, porque os interesses imperialistas da Côrte não eram nos mandar "humilhados ou luminosos", mas a grande camelote acadêmica, sorriso da sociedade, util de provinciano gostar.

Não. O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional. E' muito mais exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor. E as modas que revestiram este espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de subtileza crítica. E' esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela "Revista do Brasil"; é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato; é esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neo-colonial, nascidos em São Paulo. Desta ética estávamos impregnados. Menotti del Picchia nos dera o "Juca Mulato", estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos; e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro do movimento. Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da Europa.

Ora São Paulo estava muito mais "ao par" que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província. Havia uma diferença grande, já agora menos sensivel, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: porto de mar e capital do país, o Rio possue um internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais moderna porem, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua política, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo.

E' mesmo de assombrar como o Rio mantem, dentro da sua malícia vibratil de cidade internacional, uma espécie de ruralismo, um caracter parado tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissoluvel o "exotismo" nacional (o que aliás é prova de vitalidade do seu caracter), mas a interpenetração do rural com o urbano. Coisa já impossível de se perceber em São Paulo. Como Belem, o Recife, a Cidade do Salvador: o Rio ainda é uma cidade folclôrica. Em São Paulo o exotismo folclôrico não fre­quenta a rua Quinze, que nem os sambas que nascem nas caixas de fósforo do Bar Nacional.

Ora no Rio malicioso, uma exposi­ção como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se deixava levar. Na São Paulo sem malí­cia, criou uma religião. Com seus Neros também. . . O artigo "contra" do pintor Monteiro Lobato, embora fosse um chor­rilho de tolices, sacudiu uma população, modificou uma vida.

Junto disso, o movimento moder­nista era nitidamente aristocrático. Pelo seu caracter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena burguesia o temessem. Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. Não da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais antiga, justificada no trabalho secular da terra e oriunda de qualquer salteador europeu, que o critério monárquico do Deus-Rei já amancebara com a genealogia. E foi por tudo isto que Paulo Prado poude medir bem o que havia de aventureiro e de exercício do perigo, no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura.

Uma coisa dessas seria impossivel no Rio, onde não existe aristocracia tradicional, mas apenas alta burguesia riquíssima. E esta não podia encampar um movimento que lhe destruia o espírito conservador e conformista. A burguesia nunca soube perder, e isso é que a perde. Si Paulo Prado, com a sua autoridade intelectual e tradicional, tomou a peito a realização da Semana, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de si os seus pares aristocratas e mais alguns que a sua figura dominava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de classe como a do espírito. E foi no meio da mais tremenda assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna abriu a segunda fase do movimento modernista, o período realmente destruidor.

Porque na verdade, o período... heroico, fôra esse anterior, iniciado com a exposição de pintura de Anita Malfatti e terminado na "festa" da Semana de Arte Moderna. Durante essa meia-dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, evitados, achincalhados, malditos, ninguem não pode imaginar o delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que reagimos. O estado de exaltação em que vivíamos era incontrolavel. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os outros a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial!

E eram aquelas fugas desabaladas dentro da noite, na cadillac verde de Osvaldo de Andrade, a meu ver a figura mais característica e dinâmica do movimento, para ir ler as nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das Palmas... E os encontros à tardinha, em que ficávamos em exposição diante de algum raríssimo admirador, na redação de "Papel e Tinta"... E a falange engrossando com Sergio Milliet e Rubens Borba de Morais, chegados sabidíssimos da Europa... E nós tocávamos com respeito religioso, esses peregrinos confortaveis que tinham visto Picasso e conversado com Romain Rolland... E a adesão, no Rio, de um Alvaro Moreyra, de um Ronald de Carvalho... E o descobrimento assombrado de que existiam em São Paulo muitos quadros de Lasar Segall, já muito admirado através das revistas alemãs... Tudo gênios, tudo obras-primas geniais... Apenas Sergio Milliet punha um certo malestar no incêndio, com a sua serenidade equilibrada... E o filósofo da malta, Couto de Barros, pingando ilhas de conciência em nós, quando no meio da discussão, em geral limitada a batebocas de afirmações peremptórias, perguntava mansinho: Mas qual é o critério que você tem da palavra "essencial"? ou: Mas qual é o conceito que você tem do "belo horrivel"?...

Éramos uns puros. Mesmo cerca- dos de repulsa quotidiana, a saude men- tal de quase todos nós, nos impedia qualquer cultivo da dor. Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós. Ninguem pensava em sacrifício, ninguem bancava o incompreendido, nenhum se imaginava precursor nem martir: éramos uma arrancada de herois convencidos. E muito saudaveis.

A Semana de Arte Moderna, ao mesmo tempo que coroamento lógico dessa arrancada gloriosamente vivida (desculpem, mas, éramos gloriosos de antemão...), a Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreriamos algum tempo ataques por vezes crueis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos, até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história artística do país registra.

Mas na intriga burguesa escandalizadíssima, a nossa "orgia" não era apenas intelectual... O que não disseram, o que não se contou das nossas festas. Champanha com eter, vícios inventadíssimos, as almofadas viraram "coxins", criaram toda uma semântica do maldizer... No entanto, quando não foram bailes públicos (que foram o que são bailes desenvoltos de alta sociedade), as nossas festas dos salões modernistas eram as mais inocentes brincadeiras de artistas que se pode imaginar.

Havia a reunião das terças, à noite, na rua Lopes Chaves. Primeira em data, essa reunião semanal continha exclusivamente artistas e precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna. Sob o ponto-de-vista intelectual foi o mais util dos salões, si é que se podia chamar salão àquilo. Às vezes doze, até quinze artistas, se reuniam no estúdio acanhado onde sese comia doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcolzinho econômico. A arte moderna era assunto obrigatório e o intelectualismo tão intransigente e deshumano que chegou mesmo a ser proibido falar mal da vida alheia! As discussões alcançavam transes agudos, o calor era tamanho que um ou outro sentava nas janelas (não havia assento pra todos) e assim mais elevado dominava pela altura, já que não dominava pela voz nem o argumento. E aquele raro retardatário da alvorada parava defronte, na esperança de alguma briga por gosar.

Havia o salão da avenida Higienópolis que era o mais selecionado. Tinha por pretexto o almoço dominical, maravilha de comida lusobrasileira. Ainda aí a conversa era estritamente intelectual, mas variava mais e se alargava. Paulo Prado com o seu pessimismo fecundo e o seu realismo, convertia sempre o assunto das livres elocubrações artísticas aos problemas da realidade brasileira. Foi o salão que durou mais tempo e se dissolveu de maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornando-se, por sucessão, o patriarca da família Prado, a casa foi invadida, mesmo aos domingos, por um público da alta que não podia compartilhar do rojão dos nossos assuntos. E a conversa se manchava de pôquer, casos de sociedade, corridas de cavalo, dinheiro. Os intelectuais, vencidos, foram se arretirando.

E houve o salão da rua Duque de Caxias, que foi o maior, o mais verdadeiramente salão. As reuniões semanais eram à tarde, tambem às terças-feiras. E isso foi a causa das reuniões noturnas do mesmo dia irem esmorecendo na rua Lopes Chaves. A sociedade da rua Duque de Caxias era mais numerosa e variegada. Só em certas festas especiais, no salão moderno, construido nos jardins do solar e decorado por Lasar Segall, o grupo se tornava mais coeso. Tambem aí o culto da tradição era firme, dentro do maior modernismo. A cozinha, de cunho afrobrasileiro, aparecia em almoços e jantares perfeitíssimos de composição. E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa mulher excepcional que foi Dona Olivia Guedes Penteado. A sua discreção, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidão heterogênea que se chegava a ela, atraída pelo seu prestígio, artistas, políticos, ricaços, cabotinos, foi incomparavel. O seu salão, que tambem durou vários anos, teve como elemento principal de dissolução a efervescência que estava preparando 1930. A fundação do Partido Democrático, o ânimo político eruptivo que se apoderara de muitos intelectuais, sacudindo-os para os extremismos de direita ou esquerda, baixara um malestar sobre as reuniões. Os democráticos foram se afastando. Por outro lado, o integralismo encontrava algumas simpatias entre as pessoas da roda: e ainda estava muito sem vício, muito desinteressado, pra aceitar acomodações. Sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, Dona Olivia Guedes Penteado soube terminar aos poucos o seu salão modernista. O último em data desses salões paulistas foi o da alameda Barão de Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsila. Não tinha dia fixo, mas as festas eram quase semanais. Durou pouco. E não teve jamais o encanto das reuniões que faziamos antes, quatro ou cinco artistas, no antigo ateliê da admiravel pintora. Isto foi pouco depois da Semana, quando fixada na compreensão da burguesia, a existência de uma onda revolucionária, ela principiou nos castigando com a perda de alguns empregos. Alguns estávamos quase literalmente sem trabalho. Então iamos para o ateliê da pintora, brincar de arte, dias inteiros. Mas dos três salões aristocráticos, Tarsila conseguiu dar ao dela uma significação de maior independência, de comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponência de riqueza e tradição no ambiente, que não era possivel nunca evitar um tal ou qual constrangimento. No de Tarsila jamais sentimos isso. O mais gostoso dos nossos salões aristocráticos.

E foi da proteção desses salões que se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós mesmos, porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a liberdade da criação. Essa a verdade verdadeira. Enquanto nós, os modernistas de São Paulo, tínhamos incontestavelmente uma repercussão nacional, éramos os bodes espiatórios dos passadistas, mas ao mesmo tempo o Senhor do Bomfim dos novos do país todo, os outros modernos de então, que já pretendiam construir, formavam nucleos respeitaveis, não tem dúvida, mas de existência limitada e sem verdadeiramente nenhum sentido temporâneo. Assim Plinio Salgado que, vivendo em São Paulo, era posto de parte e nunca pisou os salões. Graça Aranha tambem, que sonhava construir, se atrapalhava muito entre nós; e nos assombrava a incompreensão ingênua com que a "gente séria" do grupo de "Festa", tomava a sério as nossas blagues e arremetia contra nós. Não. O nosso sentido era especificamente destruidor. A aristocracia tradicional nos deu mão forte, pondo em evidência mais essa geminação de destino — tambem ela já então autofagicamente. destruidora, por não ter mais uma significação legitimavel. Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio e sempre nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu. Os italianos, alemães, os israelitas se faziam de mais guardadores do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais...

Mas nós estávamos longe, arrebatados pelos ventos da destruição. E a fazíamos ou preparávamos especialmente pela festa, de que a Semana de Arte Moderna fôra a primeira. Todo esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer. E si tamanha festança diminuiu por certo nossa capacidade de produção e serenidade criadora, ninguem pode imaginar como nos divertimos. Salões, festivais, bailes célebres, semanas passadas em grupo nas fazendas opulentas, semanas-santas pelas cidades velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, chegadas à Baía, passeios constantes ao passado paulista, Soracaba, Parnaíba, Itú... Era ainda o caso do baile sobre os vulcões... Doutrinários, na ebriez de mil e uma teorias, salvando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consumiamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do prazer.

O movimento de Inteligência que representâmos, na sua fase verdadeiramente "modernista", não foi o fator das mudanças político-sociais posteriores a ele no Brasil. Foi essencialmente um preparador; o criador de um estado-de-espírito revolucionário e de um sentimento de arrebentação. E si numerosos dos intelectuais do movimento se dissolveram na política, si vários de nós participâmos das reuniões iniciais do Partido Democrático, carece não esquecer que tanto este como 1930 eram ainda destruição. Os movimentos espirituais precedem sempre as mudanças de ordem social. O movimento social de destruição é que principiou com o P.D. e 1930. E no entanto, é justo por esta data de 1930, que principia para a Inteligência brasileira uma fase mais calma, mais modesta e quotidiana, mais proletária, por assim dizer, de construção. À espera que um dia as outras formas sociais a imitem.

E foi a vez do salão de Tarsila se acabar. Mil novecentos e trinta... Tudo estourava, políticas, famílias, casais de artistas, estéticas, amizades profundas. O sentido destrutivo e festeiro do movimento modernista já não tinha mais razão-de-ser, cumprido o seu destino legítimo. Na rua, o povo amotinado gritava: — Getúlio! Getúlio!... Na sombra, Plinio Salgado pintava de verde a sua megalomania de Esperado. No norte, atingindo de salto as nuvens mais desesperadas, outro avião abria asas do terreno incerto da bagaceira. Outros abriam mas eram as veias pra manchar de encarnado as suas quatro paredes de segredo. Mas nesse vulcão, agora ativo e de tantas esperanças, já vinham se fortificando as belas figuras mais nítidas e construidoras, os Lins do Rego, os Augusto Frederico Schmidt, os Otávio de Faria e os Portinari e os Camargo Guarnieri. Que a vida terá que imitar qualquer dia.

Não cabe neste discurso de caracter polêmico, o processo analítico do movimento modernista. Embora se integrassem nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência nacional desse período, foi destruidor. Mas esta destruição, não apenas continha todos os germes da atualidade, como era uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: O direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma conciência criadora nacional.

Nada disto representa exatamente uma inovação e de tudo encontramos exemplos na história artística do país. A novidade fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação dessas três normas num todo orgânico da conciência coletiva. E si, dantes, nós distinguimos a estabilização assombrosa de uma conciência nacional num Gregório de Matos, ou, mais natural e eficiente, num Castro Alves: é certo que a nacionalidade deste, como a nacionalistiquice do outro, e o nacionalismo de um Carlos Gomes, e até mesmo de um Almeida Junior, eram episódicos como realidade do espírito. E em qualquer caso, sempre um individualismo.

Quanto ao direito de pesquisa estética e atualização universal da criação artística, é incontestavel que todos os movimentos históricos das nossas artes (menos o Romantismo que comentarei adiante) sempre se basearam no academismo. Com alguma excepção individual rara, e sem a menor repercussão coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, se eliminava assim o direito de pesquisa, e consequentemente de atualidade. E foi dentro desse academismo inelutavel que se realizaram nossos maiores, um Aleijadinho, um Costa Ataíde, Cláudio Manuel, Gonçalves Dias, Gonzaga, José Maurício, Nepomuceno, Aluísio. E até mesmo um Alvares de Azevedo, até mesmo um Alphonsus de Guimaraens.

Ora o nosso individualismo entorpecente se esperdiçava no mais desprezivel dos lemas modernistas, "Não há escolas!", e isso terá por certo prejudicado muito a eficiência criadora do movimento. E si não prejudicou a sua ação espiritual sobre o país, é porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como das próprias idéias... Já é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual. E o que nos igualava, por cima dos nossos dispautérios individualistas, era justamente a organicidade de um espírito atualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade coletiva nacional. Não apenas acomodado à terra, mas gostosamente radicado em sua realidade. O que não se deu sem alguma patriotice e muita falsificação...

Nisto as orelhas burguesas se alardearam refartas por debaixo da aristocrática pele do leão que nos vestira... Porque, com efeito, o que se observa, o que caracteriza essa radicação na terra, num grupo numeroso de gente modernista de uma assustadora adaptabilidade política, palradores de definições nacionais, sociólogos otimistas, o que os caracteriza é um conformismo legítimo, disfarçado e mal disfarçado nos melhores, mas na verdade cheio de uma cínica satisfação. A radicação na terra, gritada em doutrinas e manifestos, não passava de um conformismo acomodatício. Menos que radicação, uma cantoria ensurdecedora, bastante acadêmica, que não raro tornou-se um porque-me-ufanismo larvar. A verdadeira conciência da terra levava fatalmente ao não-conformismo e ao protesto, como Paulo Prado com o "Retrato do Brasil", e os vasqueiros "anjos" do Partido Democrático e do Integralismo. E 1930 vai ser tambem um protesto! Mas para um número vasto de modernistas, o Brasil se tornou uma dádiva do céu. Um céu bastante governamental... Graça Aranha, sempre desacomodado em nosso meio que ele não podia sentir bem, tornou-se o exegeta desse nacionalismo conformista, com aquela frase detestavel de não sermos "a câmara mortuária de Portugal". Quem pensava nisso! Pelo contrário: o que ficou dito foi que não nos incomodava nada "coincidir" com Portugal, pois o importante era a desistência do confronto e das liberdades falsas. Então nos xingaram de "primitivistas".

O estandarte mais colorido dessa radicação à pátria foi a pesquisa da "lingua brasileira". Mas foi talvez boato falso. Na verdade, apesar das aparências e da bulha que fazem agora certas santidades de última hora, nós estamos ainda atualmente tão escravos da gramática lusa como qualquer português. Não há dúvida nenhuma que nós hoje sentimos e pensamos o quantum satis brasileiramente. Digo isto até com certa malinconia, amigo Macunaíma, meu irmão. Mas isso não é o bastante para identificar a nossa expressão verbal, muito embora a realidade brasileira, mesmo psicológica, seja agora mais forte e insoluvel que nos tempos de José de Alencar ou de Machado de Assis. E como negar que estes tambem pensavam brasileiramente? Como negar que no estilo de Machado de Assis, luso pelo ideal, intervem um quid familiar que o diferença verticalmente de um Garret e um Ortigão? Mas si nos românticos, em Alvares de Azevedo, Varela, Alencar, Macedo, Castro Alves, há uma identidade brasileira que nos parece bem maior que a de Brás Cubas ou Bilac, é porque nos românticos chegou-se a um "esquecimento" da gramática portuguesa, que permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico e sua expressão verbal.

O espírito modernista reconheceu que si vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade. Inventou-se do dia prà noite a fabulosíssima "lingua brasileira". Mas ainda era cedo; e a força dos elementos contrários, principalmente a ausência de orgãos científicos adequados, reduziu tudo a manifestações individuais. E hoje, como normalidade de lingua culta e escrita, estamos em situação inferior à de cem anos atrás. A ignorância pessoal de vários fez com que se anunciassem em suas primeiras obras, como padrões excelentes de brasileirismo estilístico. Era ainda o mesmo caso dos românticos: não se tratava duma superação da lei portuga, mas duma ignorância dela. Mas assim que alguns desses prosadores se firmaram pelo valor pessoal admiravel que possuiam (me refiro à geração de 30), principiaram as veleidades de escrever certinho. E é cômico observar que, hoje, em alguns dos nossos mais fortes estilistas surgem a cada passo, dentro duma expressão já intensamente brasileira, lusitanismos sintáxicos ridículos. Tão ridículos que se tornam verdadeiros erros de gramática! Noutros, esse reaportuguesamento expressional ainda é mais precário: querem ser lidos alem-mar, e surgiu o problema econômico de serem comprados em Portugal. Enquanto isso, a melhor intelectualidade lusa, numa liberdade esplêndida, aceitava abertamente os mais exagerados de nós, compreensiva, sadia, mão na mão.

Teve tambem os que, desaconselhados pela preguiça, resolveram se despreocupar do problema... São os que empregam anglicismos e galicismos dos mais abusivos, mas repudiam qualquer "me parece" por artificial! Outros, mais cômicos ainda, dividiram o problema em dois: nos seus textos escrevem gramaticalmente, mas permitem que seus personagens, falando, "errem" o português. Assim, a... culpa não é do escritor, é dos personagens! Ora não há solução mais incongruente em sua aparência conciliatória. Não só põe em foco o problema do erro de português, como estabelece um divórcio inapelavel entre a lingua falada e a lingua escrita — bobagem bêbada pra quem souber um naco de filologia. E tem ainda as garças brancas do individualismo que, embora reconhecendo a legitimidade da lingua nacional, se recusam a colocar brasileiramente um pronome, pra não ficarem parecendo com Fulano! Estes ensimesmados esquecem que o problema é coletivo e que, si adotado por muitos, muitos ficavam se parecendo com o Brasil!

A tudo isto se ajuntava quase decisório, o interesse econômico de revistas, jornais e editores que intimidados com alguma carta rara de leitor gramatiquento ameaçando não comprar, se opõem à pesquisa linguística e chegam ao desplante de corrigir artigos assinados. Mas, morto o metropolitano Pedro II, quem nunca respeitou a inteligência neste país!

Tudo isto, no entanto, era sempre estar com o problema na mesa. A desistência grande foi criarem o mito do "escrever naturalmente", não tem dúvida, o mais feiticeiro dos mitos. No fundo, embora não conciente e deshonrosa, era uma deshonestidade como qualquer outra. E a maioria, sob o pretexto de escrever naturalmente (incongruência, pois a lingua escrita, embora lógica e derivada, é sempre artificial) se chafurdou na mais antilógica e antinatural das escritas. São uma lástima. Nenhum deles deixará de falar "naturalmente" um "Está se vendo" ou "Me deixe". Mas pra escrever... com naturalidade, até inventam os socorros angustiados das conjunções, pra se sairem com um "E se está vendo" que salva a pátria da retoriquice. E é uma delícia constatar que si afirmam escrever brasileiro, não tem uma só frase deles que qualquer luso não assinasse com integridade nacional... lusa. Se identificam àquele deputado mandando fazer uma lei que chamava de "lingua brasileira" à lingua nacional. Pronto: estava resolvido o problema! Mas como incontestavelmente sentem e pensam com nacionalidade, isto é, numa entidade ameríndio-afro-luso-latino-americano - anglo-franco-etc., o resultado é essa linguagem ersatz em que se desamparam — triste moxinifada moluscoide sem vigor nem caracter.

Não me refiro a ninguem não, me refiro a centenas. Me refiro justamente aos honestos, aos que sabem escrever e possuem técnica. São eles que provam a inexistência duma "lingua brasileira", e que a colocação do mito no campo das pesquisas modernistas foi quase tão prematura como no tempo de José de Alencar. E si os chamei de inconcientemente deshonestos é porque a arte, como a ciência, como o proletariado não trata apenas de adquirir o bom instrumento de trabalho, mas impõe a sua constante reverificação. O operário não compra a foice apenas, tem de afia-la dia por dia. O médico não fica no diploma, o renova dia por dia no estudo. Será que a arte nos exime dêste diarismo profissional? Não basta criar o despudor da "naturalidade", da "sinceridade" e ressonar à sombra do deus novo. Saber escrever está muito bem; não é mérito, é dever primário. Mas o problema verdadeiro do artista não é êsse: é escrever milhor. Toda a história do profissionalismo humano o prova. Ficar no aprendido não é ser natural: é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo.

A pesquisa era ingente por demais. Cabia aos filólogos brasileiros, já criminosos de tão vexatórias reformas ortográficas patrioteiras, o trabalho honesto de fornecer aos artistas uma codificação das tendências e constâncias da expressão linguística nacional. Mas êles recuam diante do trabalho util, é tão mais facil ler os clássicos! Preferem a ciencinha de explicar um êrro de copista, imaginando uma palavra inexistente no latim vulgar. Os mais avançados vão até aceitar timidamente que iniciar a frase com pronome obliquo não é "mais" êrro no Brasil. Mas confessam não escrever... isso, pois não seriam "sinceros" com o que beberam no leite materno. Beberam des-hormônios! Bolas para os filólogos!

Caberia aqui tambem o repúdio que pesquisaram sobre a lingua escrita nacional... Preocupados pragmaticamente em ostentar o problema, praticaram tais exagêros de tornar pra sempre odiosa a lingua brasileira. Eu sei: talvez neste caso ninguem vença o escritor destas linhas. Em primeiro lugar, o escritor destas linhas, com alguma faringite, vai passando bem, muito obrigado. Mas é certo que jamais exigiu lhe seguissem os brasileirismos violentos. Si os praticou (um tempo) foi na intenção de por em angústia aguda uma pesquisa que julgava fundamental. Mas o problema primeiro não é acintosamente vocabular, é sintáxico. E afirmo que o Brasil hoje possue, não apenas regionais, mas generalizadas no país, numerosas tendências e constâncias sintáxicas que lhe dão natureza característica à linguagem. Mas isso decerto ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão.

Mas como radicação da nossa cultura artística à entidade brasileira, as compensações são muito numerosas pra que a atual hesitação linguística se torne falha grave. Como expressão nacional, é quase incrivel o avanço enorme dado pela música e mesmo pela pintura, bem como o processo do Homo brasileiro realizado pelos nossos romancistas e ensaistas atuais. Espiritualmente o progresso mais curioso e fecundo é o esquecimento do amadorismo nacionalista e do segmentarismo regional. A atitude do espírito se transformou radicalmente e talvez nem os moços de agora possam compreender essa mudança. Tomados ao acaso, romances como os de Emil Farhat, Fran Martins ou Telmo Vergara, ha vinte anos atrás seriam classificados como literatura regionalista, com todo o exotismo e o insoluvel do "característico". Hoje quem sente mais isso? A atitude espiritual com que lemos esses livros não é mais a da contemplação curiosa, mas a de uma participação sem teoria nacionalista, uma participação pura e simples, não dirigida, expontânea.

É que realizâmos essa conquista magnífica da descentralização intelectual, hoje em contraste aberrante com outras manifestações sociais do país. Hoje a Côrte, o fulgor das duas cidades brasileiras de mais de um milhão, não tem nenhum sentido intelectual que não seja meramente estatístico. Pelo menos quanto à literatura, única das artes que já alcançou estabilidade normal no país. As outras são demasiado dispendiosas pra se normalizarem numa terra de tão interrogativa riqueza pública como a nossa. O movimento modernista, pondo em relêvo e sistematizando uma "cultura" nacional, exigiu da Inteligência estar ao par do que se passava nas numerosas Cataguazes. E si as cidades de primeira grandeza fornecem facilitações publicitárias sempre especialmente estatísticas, é impossivel ao brasileiro nacionalmente culto, ignorar um Erico Veríssimo, um Ciro dos Anjos, um Camargo Guarnieri, nacionalmente gloriosos do canto das suas províncias. Basta comparar tais criadores com fenómenos já históricos mas idênticos, um Alphonsus de Guimaraens, um Amadeu Amaral e os regionalistas imediatamente anteriores a nós, para verificar a convulsão fundamental do problema. Conhecer um Alcides Maia, um Carvalho Ramos, um Teles Junior era, nos brasileiros de ha vinte anos, um fato individualista de maior ou menor "civilização". Conhecer um Guilhermino Cesar, um Viana Moog ou Olívio Montenegro, hoje é uma exigência de "cultura". Dantes, esta exigência estava relegada... aos historiadores.

A prática principal desta descentralização da Inteligência se fixou no movimento nacional das editoras provincianas. E si ainda vemos o caso de uma grande editora, como a Livraria José Olímpio, obedecer à atração da mariposa pela chama, indo se apadrinhar com o prestígio da Côrte, por isto mesmo êle se torna mais comprovatório. Porque o fato da Livraria José Olímpio ter cultamente publicado escritores de todo o país, não a caracteriza. Nisto ela apenas se iguala às outras editoras tambem cultas de província, uma Globo, uma Nacional, a Martins, a Guaíra. O que exatamente caracteriza a editora da rua do Ouvidor — umbigo do Brasil, como diria Paulo Prado — é ter se tornado, por assim dizer, o órgão oficial das oscilações ideológicas do país, publicando tanto a dialética integralista como a política do sr. Francisco Campos.

Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa estética, creio não ser possivel qualquer contradição: é a vitória grande do movimento no campo da arte. E o mais característico é que o antiacademismo das gerações posteriores à da Semana de Arte Moderna, se fixou exatamente naquela lei estético-técnica do "fazer milhor", a que aludi, e não como um abusivo instinto de revolta, destruidor em princípio, como foi o do movimento modernista. Talvez seja o atual, realmente, o primeiro movimento de independência da Inteligência brasileira, que a gente possa ter como legítimo e indiscutivel. Já agora com todas as probabilidades de permanência. Até o Parnasianismo, até o Simbolismo, até o Impressionismo inicial de um Vila Lobos, o Brasil jamais pesquisou (como conciência coletiva, entenda-se), nos campos da criação estética. Não só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes já academizadas. Era ainda um completo fenómeno de colónia, imposto pela nossa escravização econômico-social. Pior que isso: êsse espírito acadêmico não tendia para nenhuma libertação e para uma expressão própria. E si um Bilac da "Via Lactea" é maior que todo o Lecomte, a... culpa não é de Bilac. Pois o que êle almejava era mesmo ser parnasiano, senhora Serena Forma.

Essa normalização do espírito de pesquisa estética, antiacadêmica, porem não mais revoltada e destruidora, a meu ver, é a maior manifestação de independência e de estabilidade nacional que já conquistou a Inteligência brasileira. E como os movimentos do espírito precedem as manifestações das outras formas da sociedade, é facil de perceber a mesma tendência de liberdade e conquista de expressão própria, tanto na imposição do verso-livre antes de 30, como na "marcha para o Oeste" posterior a 30; tanto na "Bagaceira", no "Estrangeiro", na "Negra Fulô" anteriores a 30, como no caso da Itabira e a nacionalização das indústrias pesadas, posteriores a 30.

Eu sei que ainda existem espíritos coloniais (é tão facil a erudição!) só preocupados em demonstrar que sabem mundo a fundo, que nas paredes de Portinari só enxergam os murais de Rivera, no atonalismo de Francisco Mignone só percebem Schoemberg, ou no "Ciclo da Cana de Açúcar", o roman-fleuve dos franceses...

O problema não é complexo mas seria longo discuti-lo aqui. Me limitarei a propor o dado principal. Nós tivemos no Brasil um movimento espiritual (não falo apenas escola de arte) que foi abso- lutamente "necessário", o Romantismo. Insisto: não me refiro apenas ao romantismo literário, tão acadêmico como a importação inicial do modernismo artístico, e que se poderá comodamente datar de Domingos José Gonçalves de Magalhães, como o nosso do expressionismo de Anita Malfatti. Me refiro ao "espírito" romântico, ao espírito revolucionário romântico, que está na Inconfidência, no Basilio da Gama do "Uraguai" nas liras de Gonzaga como nas "Cartas Chilenas" de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou o estado revolucionário de que resultou a independência política, e teve como padrão bem briguento a primeira tentativa de lingua brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30 em diante, e tambem teve como padrão barulhento a segunda tentativa de nacionalização da linguagem. A similaridade é muito forte.

Esta necessidade espiritual, que ultrapassa a literatura estética, é que diferença fundamentalmente Romantismo e Modernismo, das outras escolas de arte brasileiras. Estas foram todas essencialmente acadêmicas, obediências culturalistas que denunciavam muito bem o colonialismo da Inteligência nacional. Nada mais absurdamente imitativo (pois si nem era imitação, era escravidão!) que a cópia, no Brasil, de movimentos estéticos particulares, que de forma alguma eram universais, como o culteranismo ítalo-ibérico setecentista, como o Parnasianismo, como o Simbolismo, como o Impressionismo, ou como o Wagnerismo de um Leopoldo Miguez. São superfectações culturalistas, impostas de cima pra baixo, de proprietário a propriedade, sem o menor fundamento nas forças populares. D'aí uma base deshumana, prepotente e, meu Deus! arianizante que, si prova o imperialismo dos que com ela dominavam, prova a sujeição dos que com ela eram dominados. Ora aquela base humana e popular das pesquisas estéticas é facílimo encontrar no Romantismo, que chegou mesmo a retornar coletivamente às fontes do povo e, a bem dizer, criou a ciência do folclôre. E mesmo sem lembrar folclôre, no verso-livre, no cubismo, no atonalismo, no predomínio do ritmo, no superrealismo mítico, no expressionismo, iremos encontrar essas mesmas bases populares e humanas. E até primitivas, como a arte negra que influiu na invenção e na temática cubista. Assim como o cultíssimo roman-fleuve e os ciclos com que um Otavio de Faria processa a decrepitude da burguesia, ainda são instintos e formas funcionalmente populares, que encontramos nas mitologias cíclicas, nas sagas e nos Kalevalas e Nibelungos de todos os povos. Já um autor escreveu, como conclusão condenatória, que "a estética do Modernismo ficou indefinivel"... Pois essa é a milhor razão-de-ser do Modernismo! Ele não era uma estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário que, si a nós nos atualizou, sistematizando como constância da Inteligência nacional o direito antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolucionário das outras manifestações sociais do país, tambem fez isto mesmo no resto do mundo, profetizando estas guerras de que uma civilização nova nascerá.

E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma independência, um direito às suas inquietações e pesquisas que, não tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana, êle nem pode imaginar que conquista enorme representa. Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo de um Lourenço Fernandes, contra a arquitetura do Ministério da Educação, contra os versos "incompreensiveis" de um Murilo Mendes, contra o personalismo de um Guignard?... Tudo isto são hoje manifestações normais, discutiveis sempre, mas que não causam o menor escândalo público. Pelo contrário, são os próprios elementos governamentais que aceitam a realidade de um Lins do Rego, de um Vila Lobos, de um Almir de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo das predestinações. Mas um Flavio de Carvalho, mesmo com as suas experiências numeradas, e muito menos um Clovis Graciano, mas um Camargo Guarnieri mesmo em luta com a incompreensão que o persegue, um Otávio de Faria com a aspereza dos casos que expõe, um Santa Rosa, jamais não poderão suspeitar o a que nos sujeitâmos, pra que êles pudessem viver hoje abertamente o drama que os dignifica. A váia acêsa, o insulto público, a carta anónima, a perseguição financeira... Mas recordar é quase exigir simpatia e estou a mil leguas disto.

E me cabe finalmente falar sobre o que chamei de "atualização da inteligência artística brasileira". Com efeito: não se deve confundir isso com a liberdade da pesquisa estética, pois esta lida com formas, com a técnica e as representações da beleza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que isso, e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma fôrça interessada da vida.

A prova mais evidente desta distinção é o famoso problema do assunto em arte, no qual tantos escritores e filósofos se emaranham. Ora não ha dúvida nenhuma que o assunto não tem a menor importância para a inteligência estética. Chega mesmo a não existir para ela. Mas a inteligência estética se manifesta por intermédio de uma expressão interessada da sociedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana, imediatista e maior que a criação hedonística da beleza. E dentro dessa funcionalidade humana da arte é que o assunto adquire um valor primordial e representa uma mensagem imprescindivel. Ora, como atualização da inteligência artística é que o movimento modernista representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário.

Atuais, atualíssimos, universais, originais mesmo por vezes em nossas pesquisas e criações, nós, os participantes do período milhormente chamado "modernista", fomos, com algumas excepções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida e da festança em que nos desvirilizâmos. Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. E isto era o principal! Mas aqui meu pensamento se torna tão delicadamente confissional, que terminarei êste discurso falando mais diretamente de mim. Que se reconheçam no que eu vou dizer os que o puderem.

Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, muita coisa! E no entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram.

Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e tambem nas de muitos companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dôr mais viril da vida. Não tem. Tem mas é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou repisando o que já disse a um moço... E outra coisa sinão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos se fazendo, não me levaria a esta confissão bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a insuficiência do abstencionismo. Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas obras uma caducidade de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos combatendo lençois superficiais de fantasmas. Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E si agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofetea-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz.

Não me imagino político de ação. Mas nós estamos vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um Amador Bueno qualquer, falando "não quero" e me isentando da atualidade por detrás das portas contemplativas de um convento. Tambem não me desejaria escrevendo páginas explosivas, brigando a pau por ideologias e ganhando os louros faceis de um xilindró. Tudo isso não sou eu nem é pra mim. Mas estou convencido de que devíamos ter nos transformado de especulativos em especuladores. Ha sempre jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, no embaçado duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportavel das condições atuais do mundo. Não. Virâmos abstencionistas abstêmios e transcendentes [2]. Mas por isso mesmo que fui sinceríssimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com todas as minhas cartas à vista, alcanço agora esta conciência de que fomos bastante inatuais. Vaidade, tudo vaidade...

Tudo o que fizemos... Tudo o que eu fiz foi especialmente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em que vivemos. E' aliás o que, com decepção açucarada, nos explica historicamente. Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre. E já mostrei que o movimento modernista foi destruidor. Muitos porem ultrapassamos essa fase destruidora, não nos deixâmos ficar no seu espírito e igualâmos nosso passo, embora um bocado turtuveante, ao das gerações mais novas. Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiram a minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que não terei passeado apenas, me iludindo de existir?... E' certo que eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgraças dos homens. E' certo que pretendi regar minha obra de orvalhos mais generosos, suja-la nas impurezas da dôr, sair do limbo "ne trista ne lieta" da minha felicidade pessoal. Mas pelo próprio exercício da felicidade, mas pela própria altivez sensualíssima do individualismo, não me era mais possivel renega-los como um êrro, embora eu chegue um pouco tarde à convicção da sua mesquinhez.

A única observação que pode trazer alguma complacência para o que eu fui, é que eu estava enganado. Julgava sinceramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei, ninguem não imagina quanto, a minha obra o que não quer dizer que si não fizesse isso, ela fosse milhor... Abandonei, traição conciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a beleza divina.

Mas eis que chego a êste paradoxo irrespiravel: Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacavel! E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado.

Mudar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou na rampa dos cincoenta anos e que os meus gestos agora já são todos... memórias musculares?... Ex omnibus bonis quae homini tribuit natura, nullum melius esse tempestiva morte... O terrivel é que talvez ainda nos seja mais acertada a discreção, a virarmos por aí cacoeteiros de atualidade, macaqueando as atuais aparências do mundo. Aparências que levarão o homem por certo a maior perfeição de sua vida. Me recuso a imaginar na inutilidade das tragédias contemporâneas. O Homo Imbecilis acabará entregando os pontos à grandeza do seu destino.

Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguem. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais êle foi tão "momentâneo" como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois [3]. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudâmos verdadeiramente, duma coisa não participâmos: o amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade.

Si de alguma coisa pode valer o meu desgôsto, a insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões.

Aos espiões nunca foi necessária essa "liberdade" pela qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem?... Será que o direito é uma bobagem!... A vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que hade vir.

Notas de rodapé editar

  1. Depois eu sistematizaria êste processo de separação nítida entre o estado de poesia e o estado de arte, mesmo na composição dos meus poemas mais "dirigidos". As lendas nacionais, por exemplo, o abrasileiramento linguístico de combate. Escolhido um tema, por meio das excitações psíquicas e fisiológicas sabidas, preparar e esperar a chegada do estado de poesia. Si êste chega (quantas vezes nunca chegou...), escrever coação de espécie alguma tudo o que me chega até a mão — a "sinceridade" do individuo. E só em seguida, na calma, o trabalho penoso e lento da arte a "sinceridade" da obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que o individuo.
  2. "Uns verdadeiros inconcientes", como já falei uma vez...
  3. Sei que é impossivel ao homem, nem êle deve abandonar os valores eternos, amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que vivemos, cuidar dêsses valores apenas e se refugiar neles em livros. de ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo deshonesto e deshonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma politica da sociedade é um valor eterno tambem.