O primeiro efeito sobre as Cortes da agitação provocada no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais pelo conhecimento do teor dos decretos 124 e 125, foi de conciliação. O deputado português Pereira do Carmo propôs e foi adotada a criação de uma comissão permanente, composta de 6 portugueses e 6 brasileiros, à qual fosse confiado o estudo das questões relativas ao reino americano e dos meios de resolvê-las. Era simplesmente e avisadamente o meio de remover a matéria política candente da atmosfera carregada da sala das sessões para a atmosfera mais serena de uma sala de comissão.

Pareciam muitos compreender a gravidade da situação: Borges Carneiro não trepidou em exclamar que a corda não se deve apertar até que estale, e que entretanto outro não havia sido o processo seguido até então pelas Cortes. A comissão ficou organizada em março com os portugueses Pereira do Carmo, Trigoso, Guerreiro, Borges Carneiro, Moura e Annes de Carvalho e os brasileiros Antônio Carlos (São Paulo), Ledo (Rio de Janeiro), Pinto da França (Bahia), Almeida e Castro (Pernambuco), Belford (Maranhão) e Grangeiro (Alagoas). As disposições dos três primeiros membros portugueses, pelo menos, eram notoriamente simpáticas ao Brasil.

Do amplo inquérito e cotejo a que se entregou a comissão, resultou uma série de transações da natureza das que no Congresso Americano se denominam compromises, foram continuas para impedir que a questão servil originasse uma guerra de separação e dão freqüentemente boa saída às dificuldades supervenientes das questões embrulhadas. Obtiveram os brasileiros a subordinação dos comandos de armas e mesas de fazenda às juntas provinciais; o estabelecimento no reino americano de uma ou duas delegações executivas exercendo a regência em nome do rei e exercendo também as prerrogativas da coroa, permanecendo contudo Dom Pedro no seu posto até se organizar definitivamente a Monarquia e ficando - este era o ponto ganho pelos portugueses - as tropas lá estacionadas dependentes do alvedrio do governo de Lisboa. Outro ganho importante dos brasileiros era a regulação da condição precária do Banco do Brasil, sendo considerados divida pública os adiantamentos feitos ao tesouro por esse estabelecimento e providenciando-se para seu pagamento e liquidação.

Ainda o relatório da comissão não fora porém apresentado, quando chegou ao conhecimento das Cortes a representação da província de São Paulo aconselhando em termos acrimoniosos a repulsa de uma política que a sua junta antevia fatal ao Império. A linguagem empregada é que era julgada ofensiva e não foi aliás defendida pelos deputados brasileiros, embora contrários à idéia de serem processados os signatários do documento, a saber, o governo provisório de São Paulo. O fundo, a substância do ofício não oferecia em si agravo.

A fragmentação administrativa do Brasil "cortado em retalhos" no intuito de assegurar a autoridade suprema e exclusiva do governo de Lisboa; a abolição dos tribunais superiores; a adoção de legislação americana sem a participação nos debates da respectiva representação, para este fim eleita e tendo para o mesmo fim empreendido uma longa travessia que seria dispensável se bastasse o juramento prévio no Brasil, quando em contraste com este havia o artigo 21.º das Bases; a privação de um centro de ação executiva no reino ultramarino - eram outros tantos tópicos em torno dos quais tinha girado a discussão nas Cortes.

Podia condensar-se o antagonismo nos termos seguintes: Se as províncias brasileiras eram de fato e de direito províncias de Portugal, aos deputados portugueses era lícito assumirem sua função geral e legislarem por maioria para a seção que previamente se conformara com o resultado dos trabalhos legislativos. Se os brasileiros se colocavam porém no terreno da celebração de um pacto constitucional entre duas seções de um Estado e entravam no ajuste como elementos autônomos e não dependentes, cabia-lhes necessariamente voz ativa nas negociações e não lhes assentava receberem submissos o que lhes fosse arbitrado como favores políticos e civis.

Em Portugal ressoou o manifesto paulista como o primeiro toque de rebate dando aviso da catástrofe que se aproximava. Quiseram alguns duvidar de que fosse ele a expressão genuína do sentir público; outros, mais sagazes na interpretação e mais imprudentes no tratamento, falavam em sedição: a maioria compreendia que a ocasião era mais de acomodação do que de punição e reputava de mais vantagem para o bem público fechar então os olhos à insolência para só os reabrir quando ela pudesse ser rebatida, uma vez consolidada a união.

Não foi este o alvitre dos intitulados corifeus da regeneração. Apelaram para a desafronta da dignidade nacional ultrajada, para todas as expressões que sempre ferem e exaltam a imaginação popular. Os "treze infames de São Paulo", exclamou o orador Moura, como se se tratasse de criminosos da pior espécie. Manuel Fernandes Tomás, o responsável pela perturbação como diz Gomes de Carvalho, foi também o que maior perspicácia mostrou na emergência, pretendendo transferir o conflito para o campo econômico, a ver se encontrava nele meio menos irritante ainda que mais substancial de firmar o interesse da antiga metrópole, sem protesto da ex-colônia.

A supremacia política poderia em rigor ser imolada à comercial, mesmo porque era esta em suma a que se perseguia através dos princípios e das fórmulas. Essa supremacia adviria naturalmente a Portugal com o ter o mercado brasileiro como prolongamento ultramarino do português, enxotando-se a indústria estrangeira por meio da aplicação de um protecionismo que só aproveitava no entanto a Portugal, porque no Brasil seu efeito único era encarecer a vida e restringir a escolha dos artigos de consumo.

Se o Brasil aceitasse o sacrifício, Portugal estava salvo porque lhe voltaria automaticamente a prosperidade financeira; se rejeitasse, era preferível recorrer-se logo ao desquite, porquanto a vida em comum nunca mais seria agradável nem proveitosa. O mal está contudo em que se não chegou a semelhante resultado sem afrontar o volume dos sentimentos opostos e suportar o ardor dos despeitos insofridos. Tantos economistas, agricultores e comerciantes reunidos, gente de teoria e gente de prática, esqueceram o que ao príncipe acudia nas simples e sensatas palavras da sua carta de 19 de junho - "que os Estados independentes, a saber, os que de nada carecem, como o Brasil, nunca são os que se unem aos necessitados e dependentes; Portugal é hoje em dia um Estado de quarta ordem, e necessitado, por conseqüência dependente; o Brasil é de primeira e independente", pelo que a Portugal competia procurar a união e cimentá-la.

Como ousava a democracia constitucional arriscar o sofrer uma mutilação territorial, política e econômica dessa magnitude, que a monarquia absoluta tudo prevenira para que não ocorresse? Os deputados brasileiros entretanto cobravam coragem e os menos atrevidos deles articulavam recriminações. O prudente Araújo Lima aconselhava as Cortes a que não pensassem em castigos para a junta paulista porque se sairiam mal da aventura, não conseguindo dominar qualquer explosão revolucionária que se desse por esse motivo.

As sessões de 22 e 23 de março de 1822 assinalaram um torneio apaixonado e no entanto ainda circunspecto, o que não é tanto de surpreender porque a atmosfera política só entrou a ser borrascosa com as notícias chegadas do Rio sobre os episódios do Fico e da retirada da Divisão Auxiliadora. O mês de abril foi o dos combates azedos, já quase odientos, quando por um lado Fernandes Tomás começou a querer levar por diante o seu plano de reabsorção econômica do Brasil e por outro lado os deputados brasileiros entraram a ser alvo dos doestos dos seus colegas e dos apupos das galerias, a que dava francas ensanchas a indulgência da mesa, melhor respeitadora das más maneiras demagógicas que do justo ressentimento dos coloniais, que não mais o queriam ser.

O desabrimento chegou ao ponto de serem tratados de "depravados e ladrões" os partidários de Dom Pedro, entre os quais se incluíam o patriarca e seus colegas de gabinete. Pronunciou tais palavras Borges Carneiro, que se deixava por vezes arrastar a tais excessos pela febre oratória, esquecido de que poucos dias antes sugerira para com o Brasil um proceder mais generoso, sem o qual se desenvolveria "naqueles povos um espírito de reação, e chegaremos aos termos em que está a Espanha a respeito da sua América".

Antônio Carlos levantou o insulto, castigando a calúnia e desafiando que pudesse esta concretizar-se e comprovar o menor deslize da reconhecida probidade daqueles cidadãos conspícuos. O Andrada manifestou-se resolvido a renunciar o mandato à vista dos apodos populares e sobretudo da impassibilidade dos seus colegas europeus, a qual constituía um apoio indireta e aleivosamente prestado à insubordinação das tribunas. Outros representantes brasileiros deixaram até de freqüentar o Congresso, solicitando para isto autorização, por não sentirem suficientemente protegida sua liberdade de palavra. Queixavam-se também alguns de serem moralmente forçados a intervir nos debates, que se iam convertendo em retaliações, carregando desse modo achas para a fogueira.

Os remoques como que esvoaçavam em redor dos oradores de além-mar, saídos dos lábios dos seus irmãos portugueses e dos seus entusiastas. A permissão de não comparecimento às sessões, solicitada por vários, e a renúncia de Antônio Carlos foram ambas negadas, protestando Feijó, que pela primeira vez falava [1] porque desde sua chegada avaliara perfeitamente a situação como um beco sem saída, contra a acusação de medo que lhes era vibrada, advertindo com a autoridade de um moralista impregnado de estoicismo e a rudez de um patriota ignorante dos requebros palacianos que "o valor e a coragem consistem em vencer o temor quando convém encarar o perigo".

O futuro regente e consolidador do Brasil desunido pelas tendências federalistas apresentou por essa ocasião um projeto de lei de sabor original para o gosto de uma assembléia que só tratava muito empiricamente de soldar e desoldar duas metades. Consistia tal projeto em serem reconhecidas independentes, como de fato o eram mercê dos movimentos revolucionários a que tinham obedecido suas respectivas organizações provisórias, as capitanias brasileiras, ligando-se entre si por força do pacto constitucional, uma vez elaborado, apenas aquelas que neste sentido se pronunciassem por maioria de votos. Era o princípio da self-determination que fizera um século antes sua aparição.



A leitura do Diário das Cortes Gerais da Nação Portuguesa nos anos de 1821 e 1822 fornece a história mais documentada, mais interessante e mais lógica da independência brasileira. A evolução é rápida, mas está perfeitamente desenhada, que vai do espírito de união voluntária e consciente ao espírito de exclusão radical e refletida. Deputados mesmo que chegavam cheios de disposições benévolas, inclinados à boa harmonia entre os dois reinos, achavam-se após alguns meses a presa de amargo pessimismo, não enxergando outra solução senão a dos campos rivais. Ninguém, por exemplo, poderia haver preconizado mais sinceramente o dualismo do que Vilela Barbosa, a ponto de o incriminarem seus inimigos como um português renitente: entretanto a 18 de abril de 1822 era a sua uma das vozes mais enérgicas no capítulo das recriminações contra os atropelos de que estavam sendo vítimas os deputados brasileiros.

A participação da representação americana nesses debates memoráveis não só honra sobremaneira a cultura colonial seu espírito clássico e sua educação jurídica, como o seu tino político, sua aptidão organizadora e sua capacidade construtora. Ao mesmo tempo que em Portugal se ia comprometendo a solidez do edifício nacional e o próprio futuro da monarquia, melhor dito da nação, com a cizânia introduzida entre os elementos chamados a pactuar e unir-se, no Brasil vingava a concepção constitucional entre os que se dispunham a modelar a nova nacionalidade.

O sentimento nacional brasileiro era um sentimento em via de formação, que se estava manifestando no Brasil do mesmo modo que nas colônias espanholas. Se viesse a subsistir o antigo vínculo entre metrópole e colônias, que na América Portuguesa já fora substituído pelo laço ligando duas seções iguais pelos direitos e regalias, conquanto separadas pela imensidade do oceano, seria com a condição de coexistir com a soberania popular, regendo cada colônia ou reino seus próprios destinos e constituindo a liberdade civil a base de uma constituição nacional.

Vimos que Martinez de Rosas, desde que em 1811 se abrira a assembléia representativa chilena, estabelecera a distinção entre a pátria européia, representada pelo Rei, e a pátria americana, representada pelo congresso. Egaña fora mesmo mais longe e já cogitava de uma confederação dos países hispano-americanos, para a qual redigira um projeto em 254 artigos, dando bases sociais à construção política e combinando os princípios revolucionários antigos e modernos com as práticas e mesmo as utopias democráticas [2].

Era a aplicação já internacional do federalismo, que no Brasil constituiu também ideal dos mais avançados entre os partidários da independência, e que na sua forma negativa e dissolvente foi evitado pela concentração monárquica. O federalismo era avesso à simples autonomia do bloco ou dos fragmentos deste bloco com relação à mãe-pátria, porquanto representava uma união de soberanias próprias e distintas.

Em fevereiro de 1822 o Sul do Brasil já quase formava um bloco político, havendo verdadeiro entusiasmo pela pessoa do príncipe no Rio de Janeiro e em São Paulo, anuência tácita em Santa Catarina e São Pedro do Sul e concordância pode dizer-se ativa em Minas Gerais, pois que, não obstante certa discrepância doméstica, se revelava até pela remessa de forças para a capital brasileira. Minas constituía o fiel da balança e sua viva oposição à política interesseira das Cortes a faria, mesmo sem querer, pender para o lado nacional. A própria Cisplatina aderira a causa brasileira, continuando a guarnição de Montevidéu, com seus elevados soldos, a velar contra as tentativas de incorporação da Banda Oriental nas Províncias Unidas do Prata.

Pelas singularidades de opinião e pelas distâncias enormes, com tardias e mui escassas comunicações entre os núcleos de povoamento e de cultura, bem como pelo desconhecimento em que estes centros uns dos outros se conservavam, a perspectiva não podia deixar de ser de uma associação de esforços federativos. Desde o primeiro contato de vistas entre Dom Pedro e José Bonifácio se pensou aliás em conceder às administrações provinciais uma ampla esfera de ação, confinando as lutas partidárias locais ao seu terreno peculiar e mais acanhado cenário e facultando a operação das largas correntes de opinião.

Antes mesmo do Fico, portanto antes de se terem avistado príncipe e ministro, numa das cartas da princesa Leopoldina ao major Schäffer [3] escrita na véspera daquele episódio, se diz que os ministros da regência iam ser substituídos por filhos do país que fossem capazes, e que o governo seria administrado de um modo análogo ao dos Estados Unidos da América do Norte. Frei Staaten (Estados Livres) reza a carta, assim significando que se pensava numa confederação de Estados autônomos: nem podia o otimismo oficial ir então além desta concepção adiantadíssima, a que o Brasil só chegou em 1889 ainda sem o necessário preparo.

Mareschal confirmava pouco depois [4] estas palavras, ao dizer que a tendência se tornava cada dia mais americana. Não só se falava abertamente em Cortes no Brasil; "Monsieur d'Andrada vai mesmo mais longe - escrevia o austríaco - e ouvi-o ontem na corte, perante vinte pessoas, todas estrangeiras, dizer que era mister a grande aliança ou federação americana, com plena liberdade de comércio; que se a Europa se recusasse a admitir isso, fechar-se-iam os portos e adotar-se-ia o sistema da China, e que se quisesse atacá-los, as matas e montanhas lhes serviriam de fortalezas, perdendo os outros mais do que eles, numa guerra marítima. O tempo e o espaço eram as melhores armas do governo, como eram as da natureza".

Blaine não poderia imaginar um pan-americanismo mais completo. Ajuntava Mareschal que o programa de José Bonifácio comportava melhoramentos materiais, a saber, a construção de estradas e canais, uma administração imparcial da justiça, a abolição do tráfico negreiro, boas escolas e o melhoramento da raça por meio da ginástica e dos jogos atléticos para formação física da mocidade. É o que se pode chamar o programa de um homem viajado, que ele saberia expor com os dons ditos e as risadas com que, segundo Drummond, costumava animar sua conversação, sendo que as risadas tinham, no seu dizer, por fim sacudirem o diafragma.

A orientação de um governo assim em processo de organização mal poderia ser definida com precisão: o pendor era porém para favorecer as idéias que os absolutistas tratavam de subversivas, autorizando para isto uma franca liberdade de imprensa com que muito padecia o crédito da Santa Aliança, porque eram reeditadas nas gazetas do Rio as mais virulentas catilinárias contra ela dirigidas pelas folhas portuguesas e espanholas, e contra a qual já protestava o senado fluminense, reclamando o juízo de jurados para seus excessos e delitos.

A meio disso a corte tinha-se ido despindo de rigores aristocráticos, assumindo os guarda-roupas as funções dos camaristas que se tinham ido ausentando para Lisboa, porque é evidente que a velha nobreza da metrópole estava no seu papel, cultivando e honrando o antigo regime e tomando partido contra quanto favorecesse a separação. Neste ponto concordavam a burguesia e a fidalguia do reino europeu.



Um dos corolários da proposta do padre Feijó em Lisboa era a proibição às Cortes de despacharem tropas para o reino americano sem requerimento das juntas locais, competindo a estas o direito de removerem as forças portuguesas cuja presença se lhes afigurasse prejudicial e carecendo da sua sanção, para vigorarem dentro dos limites das suas jurisdições, as resoluções do governo de Lisboa. Era praticamente a independência, uma independência muito embora de partes desligadas, a que assim se aventava, mas estava de acordo com a vontade das Cortes, que tinham reconhecido as províncias à medida que estas se iam emancipando do antigo regime e adotando o constitucionalismo e que as tinham animado a assim viverem separadamente.

Entendia Feijó que desse modo, sem a ameaça de um Brasil unido que roubava o sono ao Congresso, a marcha dos negócios públicos poderia prosseguir sem os atritos que estava levantando. A situação de além-mar apavorava tanto o Congresso, onde nesse mês de abril de 1822 aumentou a representação americana com a chegada dos deputados de mais três províncias [5], que foi mandado vedar pelo governo de Lisboa ao cônsul português em Londres o visar manifestos de cargas de armas e munições para o Brasil, ao que Vergueiro chamava com espírito um começo de bloqueio. Frustrou-se aliás essa ordem, dada a 7 de março, com a segurança que, segundo nos informa Cairu, o secretário de Estado dos negócios estrangeiros no Rio de Janeiro deu oficialmente a 14 de junho ao cônsul britânico, encarregado de negócios, "de que as embarcações inglesas que chegassem aos portos do Brasil seriam admitidas nas alfândegas independente de despacho do consulado português em Londres e não seriam apreendidos os petrechos militares e navais que nelas se transportassem pela simples falta de licença do cônsul do governo de Portugal".

Efeito porventura de semelhante receio, as Cortes acabaram por aprovar por uma grande maioria, de 92 votos contra 22, a moção apresentada pela comissão luso-brasileira para ser adiado o parecer concernente às relações entre os dois reinos para quando se recebessem notícias mais circunstanciadas do Brasil e melhor se conhecesse o estado de alma da população em geral. A palavra moderada de Pereira do Carmo prevaleceu sobre as objurgatórias frementes de Moura, sobre o que Cairu qualifica de supra summum da malignidade dos espíritos infernais, de Pessanha, confiando nos pretos como "os instrumentos da vingança da fé ultrajada", e sobre o despeito explosivo de Fernandes Tomás vaticinando que o Brasil se separaria, restando apenas saber quando, e exclamando entre chamados à ordem: "A minha opinião é que o Brasil desde já se desligue e que fiquemos sós; venho a dizer que, se o Brasil se quiser separar, que o faça; ninguém o pode embaraçar, pois que é um direito, que tem todo o povo de escolher a forma de governo que melhor lhe convier; mas que se os seus povos se querem ligar a Portugal, se sujeitem às deliberações que o Congresso determinar; e se não quiserem estar por isso, que se desliguem e tirem daí o sentido".

Os atritos que surgiam, mesmo inopinadamente, eram de toda ordem: quando não políticos, econômicos. A discussão sobre as relações comerciais entre os dois reinos acabou por provar uma vez mais e à farta que não havia terreno verdadeiramente sólido para um acordo estável, menos ainda do que qualquer outro o mercantil. A industria portuguesa não tinha elementos para afastar a concorrência da inglesa, francesa ou americana a que já se habituara, o gosto ultramarino, nem a sua marinha mercante contava unidades bastantes para suprir o tráfico entre os dois continentes. Entretanto o projeto das Cortes de 15 de março pretendia, pelo fato de serem portuguesas as províncias do Brasil, considerar de cabotagem esse tráfico transatlântico, a fim de dar aos navios do reino europeu o exclusivo do transporte. Uma navegação de monopólio oferece sempre lucros fabulosos mas à custa de fretes onerosos que pesam sobre agricultores e consumidores, pelo menos dificultando a vida pelos preços caros, quando não estiolando a produção sob os encargos.

O que bem mostra a sinceridade que até certo tempo reinou nos desejos de união entre as duas seções da Monarquia, os quais naturalmente assim prosseguiam em Lisboa já quando além-mar iam mudando inteiramente de aspecto e de intenção, é que a deputação brasileira se fora conformando com a regulação das relações mercantis pela orientação lusitana e achava mesmo razoável que Portugal promovesse seus interesses e proventos; e se o não achava, resignava-se em todo o caso à inferioridade do seu fado, que tais prejuízos lhe acarretava.

Havia também que levar em conta a diferença entre o tamanho e a população dos dois reinos: assim, ao passo que Portugal apenas consumia 8% do açúcar brasileiro (16.000 caixas em 200.000), o Brasil absorvia metade da exportação dos vinhos portugueses [6].

O regime visado pela maioria portuguesa das Cortes era de absoluto monopólio, não se permitindo à concorrência estrangeira romper a proteção aduaneira nem mesmo para suprir as deficiências da produção nacional. Ora os direitos cobrados nas alfândegas brasileiras forneciam o melhor da receita do reino americano, acrescendo que os impostos indiretos são sempre os que melhor se recebem e menos protestos levantam. Neste caso seria preciso esperar pela expiração do leonino tratado de 1810 com a Grã-Bretanha para que os artigos portugueses pudessem entrar num regime de favor que ao mesmo tempo não desfalcasse as rendas aduaneiras. Era justo que a produção portuguesa pagasse taxas menores de entrada no Brasil, mas não o era que tal tratamento do mais favorecido se estendesse a outros países ou que Portugal se locupletasse com os ganhos da pauta aduaneira.

No intuito de restituir à marinha nacional o seu antigo papel de distribuidora dos gêneros coloniais, a comissão das Cortes impôs um direito proporcional de 1% para a exportação ultramarina feita em navios portugueses e de 6% para a que se utilizasse dos navios estrangeiros, exceção feita do algodão, cujo imposto era de 10%. Não contente com isso, por uma disposição que já era efeito de pura ganância em detrimento da economia brasileira, aquelas taxas de 6% e de 10% ficariam reduzidas a 2% se as embarcações estrangeiras fossem carregar nos portos portugueses o que as embarcações nacionais - nacionais européias - tivessem transportado de além-mar.

Desertaria portanto a navegação estrangeira os portos brasileiros que a sábia resolução de Dom João VI de 28 de janeiro de 1808 abrira ao comércio universal. O fito era palpável: fazer reviver as frotas de comercio portuguesas, pelo menos entre as duas seções da monarquia, posto que com sacrifício de uma das seções. Gomes de Carvalho observa inteligentemente que os portos da seção americana se fechariam por si, pois que os navios que deixassem de lá ir prover-se, deixariam ipso facto de lá ir abastecê-los, fazendo a mais longa viagem, entre o Brasil e Portugal, em lastro.

A grita foi geral entre a deputação brasileira, tão bem disposta a princípio mesmo a admitir a iniqüidade do tratamento: o conselho de Borges Carneiro não foi seguido e a corda esticou-se em demasia. Ao pernambucano Zeferino dos Santos, que se ocupou de todas estas questões econômicas com afã e proficiência juntou-se o verbo irritado de Antônio Carlos para bradar que os seus patrícios não eram selvagens e compreendiam onde queriam chegar seus irmãos de aquém-mar, Era o restabelecimento inequívoco do antigo empório - a colônia explorada pela metrópole - e valia incomparavelmente mais essa corretagem do que qualquer atividade fabril a que se entregasse o reino europeu.

A emenda leal e conciliadora de Zeferino dos Santos era para que a taxa de navegação fosse igual para os gêneros expedidos do Brasil ou reexpedidos de Portugal para o estrangeiro. A questão ficou suspensa já no mês de julho, aliás para nunca receber uma solução.

Notas editar

  1. Gomes de Carvalho, ob. cit
  2. A. Alvarez, La diplomacia de Chile durante la emancipación y la Sociedad internacional americana, Madri, 1917.
  3. Rev. do Inst. Hist. do Rio. Tomo LXXV, Parte 2.ª.
  4. Ofício de 17 de maio de 1822.
  5. Os deputados que tomaram assento foram o benemérito bispo D. Romualdo de Sousa Coelho pelo Pará, o Dr. João Fortunato Ramos dos Santos, lente de Coimbra, pelo Espírito Santo, e o desembargador Joaquim Teotônio Segurado por Goiás. Este último, ouvidor da comarca de São João das Duas Barras, era alentejano de nascença, mas vivia na província desde 1809 e prestara-lhe relevantes serviços, promovendo a navegação do Tocantins para franquear à população goiana o mercado do Pará e incitando a mesma população, caída na pobreza pelo esgotamento das minas, mas sempre aventurosa, a dedicar-se à agricultura. Tendo o governador Sampaio obstado à organização de uma junta local, os constitucionais, com Segurado à frente, formaram-na ao norte, na comarca de Barra da Palma, para onde fora transferida a sede da ouvidoria, e o ouvidor foi eleito às Cortes com o fim expresso de alcançar o fracionamento de Goiás em duas províncias (Gomes de Carvalho, ob. cit.).
  6. Gomes de Carvalho, ob. cit.