No dia seguinte estaria tudo pronto! ele no primeiro vapor seguiria para a Corte, acompanhado da esposa, feliz, independente! sem lembrar-se, nunca mais, do Maranhão, dessa província madrasta para os filhos!
Ao chegar ao Largo do Carmo, assentou-se num banco. Um vento fresco agitava as árvores: ameaçava chuva; ouvia-se o surdo e longínquo marulhar da costa, e, por ali perto, em algum sarau, urna garganta de mulher cantava ao piano a "Traviata".
Raimundo passou a mão pela testa e reparou que estava suando frio. Deram duas horas. Um polícia aproximou-se vagarosamente e pediu-lhe um cigarro e o fogo, e seguiu depois, com ar preguiçoso de quem cumpre uma formalidade inútil aborrecida. E Raimundo ficou a escutar os passos sonoros do rondante, cadenciados com a regularidade monótona de uma pêndula.
Deram três horas. Chuviscava.
Raimundo levantou-se e seguiu pela Rua Grande. "Agora talvez dormisse um pouco... Estava tão fatigado!..." Quando atravessou o campo de Ourique, pensou sentir alguém acompanhando-o, olhou para os lados e não descobriu viva alma. "Enganara-se com certeza... Era talvez o eco dos seus próprios passos..." Continuou a andar, até chegar a casa.
Mas, do vão escuro, em que se formava o limite da parede, rebentou um tiro, no momento em que ele dava volta à chave.
Este tiro partira de um revólver fornecido ao Dias pelo cônego Diogo. Todavia, no instante supremo, faltara ao pobre-diabo coragem para matar um homem, mas as palavras do padre ferviam-lhe na cabeça, em tomo da sua idéia fixa. "Como poderia agora perder num momento o trabalho de toda uma existência, destruir o seu castelo dourado a sua preocupação, a coisa boa da sua vida?... Perder o jogo no melhor lance!... inutilizar-se reduzir-se a lama, quando, só com um ligeiro movimento de dedo, estaria tudo salvo!..."
Isto pensava o caixeiro de Manuel escondido na treva, por detrás de um montão de pedras e barrotes, ao lado dos espeques de um casebre em ruínas. Mas o tempo corria, e Raimundo ia entrar pra casa, sumir-se numa fronteira inexpugnável, e só reapareceria no dia seguinte, à luz do sol. "Era preciso aviar!... Um instante depois seria tarde, e Ana Rosa passaria às mãos do mulato e a cidade inteira ficaria senhora do escândalo, a saboreá-lo, a rir-se do vencido! E, então, estaria tudo acabado, para sempre! sem remédio! E ele, o Dias, coberto de ridículo e... pobre!"
Nisto, rangeu a fechadura. Aquela porta ia abrir-se como um túmulo, onde o miserável sentia resvalar o seu futuro e a sua felicidade; no entanto, tamanha calamidade dependia de tão pouco! O grande obstáculo da sua vida estava ali, a dois passos, em magnífica posição para um tiro.
Dias fechou os olhos e concentrou toda a energia no dedo que devia puxar o gatilho. A bala partiu, e Raimundo, com um gemido, prostrou-se contra a parede.
Amanhecera um dia enfadonho, cheio de chuviscos e umidade. Pouca gente pela rua; nenhum sol, e um aborrecimento geral a abrir a boca por toda parte. Grossas nuvens, grávidas e sombrias, arrastavam-se pelo espaço, no peso da sua hidropisia; o ar mal podia contê-las. Ouvia-se um trovejar ao longe, que lembrava o rolar de balas de peça por um assoalho.
A casa de Manuel tinha a silenciosa quietação do luto; as janelas fechadas; os moradores tristes; a varanda e a sala de visitas totalmente desertas. Embaixo, no armazém, os caixeiros fingiam não saber de nada. Os pretos cochichavam na cozinha, com medo de falar alto, e iam dar trela à vizinhança, onde se comentava já o escândalo da véspera.
Manuel só apareceu fora do quarto à hora do almoço, que nesse dia foi tarde, porque os escravos, privados da vigilância de Maria Bárbara e empenhados no mexerico, descuidaram-se das obrigações. O pobre homem trazia no rosto, fotografada, a sua dor e a sua insônia tinha os olhos pisados e intumescidos. Mal tocou nos pratos, cruzou logo o talher e limpou com o guardanapo uma lágrima, que o lugar vazio de Ana Rosa lhe desprendera. Aquela cadeira sem dono parecia dizer-lhe com a tristeza: "Descansa, desgraçado, que filha nunca mais terás tu!..." Não quis descer ao armazém e fechou-se em cima, no seu escritório, recomendando que mandassem lá o Dias quando chegasse.
O sabiá trinava desesperadamente na varanda. Tinham-se esquecido de encher-lhe o comedouro.
Ana Rosa não saíra da rede; estava excitada, doente, toda nervosa, com uma irritação de estômago. A avó, cheia de mau humor, levara-lhe um bule de chá de contra-erva, para a febre, e, depois de recomendar à neta que não saísse do quarto e fizesse por dormir, fechou-se com os seus santos, a rezar.
A rapariga ignorava o que ia lá por fora. Amância foi a única visita que apareceu, falando muito da palidez que lhe notara.
— Até lhe achei mau hálito, disse à Mônica, logo que saiu do aposento da enferma.
— É do estômago, explicou a cafuza. Ela, coitada, ainda hoje não comeu nada, e ainda não pregou olho desde ontem de manhã!
A velha passou à cozinha, à procura da Brígida, para indagar que diabo havia sucedido naquela casa, que andavam todos a modos de assombrados!
Ana Rosa achava-se, com efeito, muito abatida, num estado perigoso de irritação e fraqueza. Mônica obrigou-a a tomar um mingau de farinha, e ela vomitou-o logo.
— Hê, Iaiá! Isto assim não está bom!... censurava maternalmente a preta. Não te fica nada no bucho!
— Mãe-pretinha, pediu depois a moça, eu posso ir até à sala? Não corre vento; as vidraças estão fechadas!
— Vai, Iaiá, porém mete algodão no ouvido. Espera! agasalha a cabeça!
E envolveu-lhe a testa com um lenço encarnado de seda.
— Iaiá quer que eu te ajude?
— Não, mãe-pretinha, fique; você deve estar cansada.
A preta assentou-se junto à rede, encolheu as pernas, que abrangeu com os braços, e pôs-se a cochilar, escondendo a cara contra os joelhos. Ana Rosa levantou-se muito fraca e, lentamente, apoiando-se nos móveis, atravessou por entre o desarranjo do seu quarto e foi até à sala.
Fazia má impressão vê-la com aquele andar vagaroso e triste, acompanhado de suspiros e descaimentos de pálpebras. Parecia convalescente de uma longa moléstia grave; estava cor de cera, com grandes olheiras roxas; muito puxada, os cabelos, despenteados e secos, caíam-lhe por debaixo do lenço vermelho, que lhe dava à cabeça certa expressão pitoresca e graciosa. Dela toda respirava um tom melancólico e dolorido: o longo roupão, desabotoado sobre o estômago, arrastando-se negligentemente pelo chão, os braços moles, as mãos frouxas, o pescoço bambo, os lábios entreabertos, estalando de febre, o olhar morto, infeliz, mas embebido de ternura, tudo nela transpirava um tácito queixume de fundas mágoas escondidas. Seus pezinhos traziam de rastros umas chinelas de criança e, por entre a abertura do vestidos, via-se-lhe a camisa de rendas amarrotada e um cordão de ouro escorrendo pela brancura do seio, com um pequeno crucifixo que se lhe balançava entre os peitos.
E, com a resignação dos doentes que não podem sair do quarto, passeava pela sala o seu isolamento, procurando entreter-se a examinar os objetos de cima dos consolos, minuciosamente, como se nunca os tivera visto. Tomou entre os dedos um galgozinho de jaspe e ficou a observá-lo um tempo infinito. É que seu pensamento não estava ali; andava lá fora, em busca de Raimundo, em busca do seu cúmplice estremecido, o autor daquele delito que ela sentia dentro de si, enchendo-a de alegria e de medo. Amava-o muito mais agora, tal como se o seu amor crescesse também como o feto que se lhe agitava nas entranhas. Apesar da estreiteza da situação, achava-se cada vez mais feliz; sonhara a ventura de ser mãe e sentia-a realizar-se no seu corpo, no seu ventre, de instante a instante, com um impulso misterioso, fatal, incompreensível. "Era mãe!... Ainda lhe parecia um sonho!..."
Impacientava-se por preparar o enxoval do seu filhinho. Um enxoval bom, completo, a que nada, nada, faltasse. Ah! ela sabia perfeitamente como tudo isso era feito; qual a melhor flanela para os cueiros, quais as melhores toucas e os melhores sapatinhos de lã. Via em sonhos um berço junto a sua rede, com um entezinho dentro, todo rendas e fitas cor-de-rosa, a vagir uns princípios de voz humana. E fazia-se muito pressurosa, a queimar alfazema, para defumar os panos da criança; a preparar água com açúcar, para curar-lhe as cólicas; a evitar em si mesma o abuso do café e de todo o alimento que pudesse alterar-lhe o leite, porque ela queria ser a própria a criar o seu filho, e por coisa nenhuma desta vida, o confiaria à melhor ama. E, a pensar nestas coisas, que, aliás, nunca ninguém procurara ensinar-lhe, esquecia-se inteiramente dos vexames e das dificuldades que a sua falsa posição teria de levantar; nem sequer lhe passava pela idéia a hipótese de não casar com Raimundo. "Oh, isso havia de ser, desse por onde desse e sofresse quem sofresse!"
Assim lhe correu o dia. Só despertou dos seus devaneios às duas e meia da tarde, quando o sino da Sé badalou o dobre dos finados "Por quem estaria dobrando?..." perguntou de si para si, tomada de compassiva estranheza. Parecia-lhe absurdo que alguém cuidasse em morrer, quando ela só pensava em dar à vida aquele outro alguém que tanto a preocupava.
Todavia, o dobre continuou ao longe, rolando no espaço, como um soluço que se desdobra. E aquele som lúgubre, ali, na sala toda fechada, parecia fazer o dia mais triste e o céu mais sombrio e chuvoso. Ana Rosa sentiu um ligeiro tremor de medo indefinido arrepiar-lhe as carnes; lembrou-se de rezar, chegou mesmo a dar alguns passos na direção da alcova, mas deteve-a um rumor de vozes que vinha da rua.
Foi até à janela. O zunzum do povo crescia. "Alguma briga!..." pensou ela, encostando a cara na vidraça, para espiar o que se passava lá fora.
O motim recrescia à proporção que um grupo imenso de homens e mulheres se aproximava cheio de curiosidade. Ana Rosa pôde então compreender a causa do ajuntamento: dois pretos traziam um corpo dentro de uma rede, cuja taboca carregavam no ombro.
— Credo! Que agouro!... disse impressionada.
E quis afastar-se da janela, mas deixou-se ficar, por curiosidade. "Algum pobre homem que ia doente para o hospital... ou talvez fosse algum defunto, coitado!..." E procurou pensar no filho, para desfazer a impressão desagradável que acabava de receber.
O corpo estava inteiramente coberto por um lençol de linho e parecia ser de um homem de boa estatura. Algumas manchas vermelhas destacavam-se aqui e ali na brancura do pano.
Ana Rosa sentia já certo interesse aterrorizado; quis de novo deixar a janela; agora, porém, o que se passava lá na rua atraía-lhe irresistivelmente o olhar. A fúnebre procissão aproximava-se entretanto, chegando-se para a parede do lado em que ela estava. Ia deixar de ver, mas não lhe convinha abrir a janela, por causa do vento; além disso ameaçava chuva; era até muito natural que estivesse chuviscando. Continuou a olhar atentamente, com o rosto achatado de encontro aos vidros.
A rede adiantava-se a pouco e pouco, jogando com a irregularidade da rua e do caminhar desencontrado dos carregadores; o que obrigava o lençol a fazer e desfazer fartas rugas instantâneas. Ana Rosa sentiu-se inquieta e sobressaltada, como se aquilo lhe dissera respeito; a rede ia desaparecer de todo a seus olhos, porque cada vez mais se aproximava da parede, já mal podia alcançá-la com a vista.
Céus! Dir-se ia que se encaminhava para a porta de Manuel!
Uma rajada de nordeste esfuziou nos vidros. Os chapéus dos transeuntes saltaram como folhas secas; as janelas de diversas casas bateram contra os caixilhos num repelão de cólera; o vento zuniu com mais força e, numa segunda refrega, arrancou de uma só vez o lençol que cobria a rede.
Ana Rosa estremeceu toda, deu um grito, ficou lívida, levou as mãos aos olhos. Parecia-lhe ter reconhecido Raimundo naquele corpo ensanguentado. Duvidou e, sem ânimo de formular um pensamento, abriu de súbito as vidraças. Era com efeito, ele.
O povo olhou todo para cima e viu uma coisa horrível. Ana Rosa, convulsa doida, firmando no patamar das janelas as mãos, como duas garras, entranhava as unhas na madeira do balcão, com os olhos a rolarem sinistramente e com um riso medonho a escancarar-lhe a boca, as ventas dilatadas, os membros hirtos.
De repente, soltou um novo rugido e caiu de costas.
A mãe-preta acudira logo e arrastou-a para o quarto.
A moça deixou atrás de si, pelo chão, um grosso rastro de sangue, que lhe escorria debaixo das saias, tingindo-lhe os pés. E, no lugar da queda, ficou no assoalho uma enorme poça vermelha seguinte.
No dia seguinte por todas as ruas da cidade de São Luís do Maranhão, e nas repartições públicas, na Praça do Comércio, nos açougues nas quitandas, nas salas e nas alcovas, boquejava-se largamente sobre a misteriosa morte do Dr. Raimundo. Era a ordem do dia.
Contava-se o fato de mil modos; inventavam-se lendas; improvisavam-se romances. O cadáver fora recolhido pela Santa Casa de Misericórdia; procedeu-se a um corpo de delito; verificou-se que o paciente morrera a tiro de bala, mas a polícia não descobriu o assassino.
Nessa mesma tarde os caixeiros de Manuel, vestidos de luto, entregavam de porta em porta a seguinte circular:
"Ilmo. Sr.
Manual Pedro da Silva e o cônego Diogo de Melo Freitas Santiago participam a V.Sª que acabam de receber o profundo golpe do falecimento de seu prezado e nunca assaz chorado sobrinho e amigo Raimundo José da Silva; e, como o seu cadáver tenha de baixar ao túmulo, hoje às 4 e 1/2 horas da tarde, no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, esperam receber de V.Sª o piedoso obséquio de acompanhar o féretro da casa de seu inconsolável tio à Rua da Estrela n.° 80, pelo que desde já se confessam extremamente agradecidos.
Maranhão, etc, etc "
À Misericórdia uma sepultura, mediante a quantia de 60$000 réis. O enterro foi a pé e bastante concorrido. Muitos negociantes acompanharam-no por consideração ao colega; grande número de pessoas por mera curiosidade.
O cônego ungiu o cadáver com água benta e encomendou-o a Deus.
Maria Bárbara, para completo descargo de consciência e porque soubessem que ela não tinha mau coração, prometeu uma missa por alma do mulato.
Dias só apareceu em casa a tarde, à hora do saimento. Notaram que o bom rapaz muito se sentira daquela morte e que, no ato de baixar o caixão à sepultura, afastara-se de todos, naturalmente para chorar mais à vontade. Não constou que mais ninguém, além dele e o cônego, tivesse chorado.
De volta do cemitério, Freitas, em conversa com os caixeiros de Manuel, mais o Sebastião Campos e o Casusa, lamentou com palavras finas o lastimável falecimento do infeliz moço, e disse que sentia bastante não ter a polícia descoberto o autor do crime; mas que, segundo a sua modesta opinião, aquilo fora, nada mais, nada menos, do que um suicídio, e que Raimundo viera até à porta da rua nas agonias da morte.
— Uma fatalidade! rematou ele, filosoficamente, a espanar com o lenço os seus sapatos envernizados. — Não me posso conformar com o diabo deste pó vermelho de São Pantaleão!... mas creiam que me comoveu bastante a morte do pobre Mundico! Era um moço hábil... Tinha muita habilidade para fazer versos...
— E muita presunção, vamos lá!
— Não, coitado! tinha seus estudos, tinha! não se lhe pode negar!...
— Mas também não era lá essas coisas que queria ser!...
— Ah, sim, não digo o contrário... Concordou delicadamente o pai de Lindoca, porque não tinha por costume contrariar ninguém. — Uma fatalidade!... repetiu, meneando a cabeça.
— E talvez não fique nesta!... observou Sebastião. A pequena está bem perigosa!...
— É. Ouvi dizer que sim.
— O Jauffret mandou que a carregassem pra fora.
— Segue, num dia destes para a Ponta-d'Areia.
— Não. Para o Caminho Grande.
— Ah! Ela era perdida pelo Raimundo!...
— Tolice.
E deram de mão o assunto para ouvir Casusa, que contava alegremente o caso de um bêbado que uma vez fora parar no cemitério e lá ficara fechado; e que, depois, acordando pelas altas horas da noite, levantara-se para ir até ao portão pedir fogo ao ronda, que fumava muito distraído encostado de costas nas grades, e que o soldado, sentindo passar-lhe no pescoço a mão fria do borracho, deitara a correr e a pedir socorro em altos berros.
Todos acharam graças, e o Freitas contou logo um fato equivalente que lhe sucedera no tempo de rapaz. Esta anedota puxou por outras, e cada qual exibiu as que sabia; de sorte que, ao entrarem na Rua Grande ainda empoeirados da terra vermelha de São Pantaleão, riam-se a bom rir apesar da profunda tristeza do crepúsculo, que nesse dia não vestira as galas do costume.
O Pescada, mal o tempo levantou, mudou-se, junto com a filha e a sogra, para um sítio ao Caminho Grande, onde Ana Rosa esteve à morte. Chegaram a fazer Junta de médicos.
Desde então o pobre Manuel vivia muito apoquentado. Falou-se que os seus cabelos tinham embranquecido totalmente e que ele agora se dedicava ao trabalho como nunca, com uma espécie de furor, um desespero de quem bebe para esquecer a sua desventura.
A nova firma comercial, Silva e Dias, nasceu entretanto, no meio da mais completa prosperidade.
Seis anos depois, em meado de fevereiro, havia uma partida no Clube Familiar. Era uma galanteria que os liberais dedicavam a um seu correligionário político, chegado da Corte por aqueles dias, com destino à presidência do Maranhão.
Estava-se no rigor do inverno e chovera durante toda a tarde. As calçadas refletiam em ziguezague a luz vermelha dos lampiões. Alguns telhados ainda gotejavam melancolicamente, e o céu, todo negro, pesava sobre a cidade que nem uma tampa de chumbo. Não obstante, chegava bastante gente para a festa; velhas carruagens enfileiravam-se na Rua Formosa, despejando golfadas de seda e cambraia. As damas, finamente envolvidas nas ondas dos seus pufes, subiam, arrepanhando a cauda, aos salões do baile, pelo braço de homens sérios de casaca. Havia luxo. Os lances da escadaria mostravam-se juncados de flores desfolhadas e folhas de mangueira, e os degraus, de quatro a quatro, estavam guarnecidos por grandes vasos de pó de pedra, vazios de planta. Espelhos de bom tamanho refletiam de alto a baixo, no corredor, os pares que subiam. Em todas as portas havia alvas cortinas de labirinto.
O presidente acabava de chegar, e a banda do 5.° de Infantaria tocava embaixo o Hino Nacional. Todos se agitavam para vê-lo; comentavam-lhe já, em voz soturna, a figura, os movimentos, o andar, a cor, e os botões da camisa.
Na sala de honra, as senhoras, parafusadas nas suas cadeiras, numa resignação cerimoniosa, espichavam discretamente o pescoço, para ver o "Presidente novo". Os rapazes, com o cabelo dividido em duas pastas sobre a testa, fumavam nos corredores ou bebiam nos bufetes. Na varanda jogavam em silêncio os inalteráveis pares do voltarete. A casa toda recendia a perfumaria francesa.
Reinava um constrangimento pesado e estúpido; poucos se animavam a conversar, e ninguém ria. Mas de improviso, a orquestra deu o sinal da primeira quadrilha e uma onda de homens invadiu brutalmente as salas, por todas as portas. Era uma aluvião mesclada; havia o croisé de luva branca, a casaca sem luva, o fraque de três botões com o lenço de seda azul debruçado na algibeira; sobressaíam as enormes gravatas de cambraia engomada, com as pontas em bico sistematicamente espichadas sobre a negrura da lapela. Alguns tinham um tique pretensioso; outros um ar encalistrado e cheio de rubores. Principiava-se a suar.
Destacavam-se os filhos dos negociantes ricos, que haviam ido à Europa "estudar comércio" e os acadêmicos de Pernambuco, Bahia e Rio, que estavam de férias na província. A dança abalava-os a todos; as senhoras iam-se já levantando; arrastavam-se cadeiras; a luz do gás mordia os ombros nus e fazia faiscar os diamantes; as rabecas começavam a gemer.
As quadrilhas e as valsas sucederam-se quase sem intervalo. O entusiasmo apoderou-se dos ânimos.
Tremia no ambiente o vozear frouxo dos cochichos, das coisas amorosas, dos pequeninos risos delicados, do tilintar dos braceletes, do farfalhar das saias, do rumorejar dos leques e do surdo arrastar dos pés no tapete.
As mulheres presas pela cintura, num abandono voluptuoso, com a cabeça esquecida sobre a espádua do cavalheiro. De envolta com os extratos de Lubin, saturava a atmosfera um cheiro tépido e penetrante de carnes e cabelos. Pares fatigados prostravam-se nos canapés, amolecidos por um entorpecimento sensual; dilatavam-se as narinas, ofegavam os colos e as pálpebras bambeavam num quebranto de febre.
Em breve, porém, um frenesi galvânico eletrizou todos os pares "Galop!" gritaram E um turbilhão doido, desenfreado, precipitou-se pelas salas, percorrendo-as aos saltos, numa confusão de casacas e caudas de seda; anovelando-se, abalroando-se e rebentando afinal numa vozeria medonha, atroadora, num bramido de onda que espoca em plena tempestade.
Rasgaram-se vestidos, espicaçaram-se folhos de renda, desfloraram-se penteados e soltaram-se exclamações de prazer.
Um rapaz, ao terminar a quadrilha, refugiava-se, coxeando, na varanda. Tinham-lhe pisado o melhor calo.
— Maus raios te partam, diabo!
E foi assentar-se a um canto, segurando carinhosamente o pé.
— Ó seu Rosinha, fale com os amigos velhos!... disse o Freitas, aproximando-se dele e estendendo-lhe a mão. Não sabia que o tínhamos aqui em nossa terra, doutor!
Estava o mesmo homem, sempre engomado e teso, com o seu eterno colarinho à Pinaud e a sua unha de estimação. "Então!... que lhe contava o caro Sr. Rosinha, depois que se viram a última vez? Já lá se iam três anos!..."
Rosinha achava-se em férias; era terceiranista de Direito em Pernambuco.
O Freitas notou que ele estava rapagão; estava muito melhor; mais desenvolvido!
O Faísca sorriu. Com efeito engrossara de ombros e deitara melhor corpo. Agora tinha um par de suíças e parecia menos tolo, porém muito mais míope. Falaram superiormente contra aquele modo bárbaro de dançar. O estudante descreveu as dores que sentiu quando lhe pisaram o calo e jurou nunca mais dançar com semelhantes estouvados. Depois, conversaram a respeito do novo presidente; Freitas queixou-se do partido liberal. "Uma súcia de criançolas!... dizia ele, indignado. Era fechar os olhos e apanhar o primeiro!... O tal Gabinete de 5 de janeiro podia limpar as mãos à parede!... Incúrias! só incúrias!" Em seguida ocuparam-se do passado; lembraram-se do defunto Manuel Pescada e da falecida Maria Bárbara.
— A velha Babu!... murmurou o Freitas, cheio de recordações.
Outro pediu notícias de Lindoca.
Sempre gorda! Agora estava lá pela Paraíba, com o marido, o Dudu Costa, que fora removido para a alfândega dessa província. Sabe? A Eufrasinha fugiu com um cômico!...
— Ah, sei! sei!
Estonteada! O pobre Casusa, coitado, é que estava perdido! — Extravagâncias!... Rosinha, se o visse, não o conheceria. — Muito desfigurado, cheio de cãs! Faísca declarou que ainda não o tinha encontrado em parte alguma.
— Qual encontrado o quê! Estava de cama!... entrevado! Uma perna, que era isto!
E o Freitas mostrou a cintura.
— E o Sebastião? perguntou o rapaz.
Metido na fazenda. Já não havia quem o visse. E acrescentou sem transição.
— Homem, quer saber quem está... O nosso cônego Diogo!
— Sim. Já ouvi dizer.
— Coitado! retenção de urina. Ele sempre sofreu de estreitamento!
— Um santo!
— Se o é!...
E ambos sacudiram a cabeça, no recolhimento da mesma convicção.
Faísca calculava escrever o necrológio do cônego, caso este morresse antes da sua volta para Pernambuco. Falaram também do Cordeiro, que se tinha estabelecido com Manuelzinho. O Freitas afirmava que iam muito bem, porque o Bento Cordeiro deixara o diabo do vício. F interrompeu-se, para segredar ao outro:
— Você conhece este rapaz, que vai passando de braço dado a uma moça?
— Não.
— É o Gustavo!
— Que Gustavo?
— De Vila Rica! Aquele que foi caixeiro do Pescada!...
Ah, sim! já sei! Mas, como ficou mudado! ele que era um rapaz tão bonito!...
De fato, Gustavo perdera inteiramente as suas belas cores européias e tinha agora a cara sarapintada de funchos venéreos.
Estava para casar com a moça, que levava pelo braço. Uma filha do velho Furtado da Serra.
— Hum! Bravo! Está bom!
Dava meia-noite e algumas famílias embrulhavam-se nas capas para sair. O Freitas despediu-se logo do Rosinha, apressado.
— Depois da meia-noite — nada! nada absolutamente!... observava ele, sempre metódico.
Mas, no patamar da escada, teve de esperar um instante que descesse um casal que se despedia. Adivinhava-se que era gente de consideração pelo riso afetuoso com que todos o cumprimentavam; muitos se arredavam pressurosos, para lhe dar passagem. O próprio presidente acompanhara-o até ali e agradecia-lhe o obséquio do comparecimento ao baile, com um enérgico aperto de mão, à inglesa.
O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a carne esperta.
Ia toda se saracoteando muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos, que ficaram em casa a dormir.
— Grand'chaine, double, serré! berravam nas salas.
O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levara-lhe carinhosamente a gola da casaca.
— Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...