CONCLUEM AS REVELAÇÕES DE A. M. C.
I
Convidada a expor o que sabia, a condessa disse de viva voz, com humildade e com firmeza, a causa e o modo como involuntariamente matara Rytmel.
— Eis as cartas e as notas que elle trazia comsigo — concluiu ella, collocando sobre a mesa um masso de papeis atados n’uma gravata branca. As minhas derradeiras disposições, accrescentou, estão feitas. Dêem-me o destino que quizerem. Inflijam-me o castigo que mereço.
Estavamos todos calados. F... adiantou-se para o centro da sala e ergueu a voz:
— Castigar é usurpar um poder providencial. A justiça humana que se apodera dos criminosos não tem por fim vingar a sociedade, mas sim protegel-a do contagio e da infecção da culpa. Todo o crime é uma enfermidade. A acção dos tribunaes sobre os criminosos, posto que nem sempre cesse de facto, cessa effectivamente de direito no momento em que termina a cura. Sequestrar aquelles em que o mal deixou de ser uma suspeita physiologica, e por conseguinte uma verdade scientifica, é fazer á sociedade uma extorsão, que, por ser muitas vezes irremediavel não deixa de ser monstruosa e horrivel. Todo aquelle que não é pernicioso, é necessario, é indispensavel ao conjuncto dos sentimentos, ao destino das idéas, á arithmetica dos factos no problema da humanidade. A natureza do acto que estamos ponderando, as rasões que o determinaram, as circumstancias que o revestiram, a intenção que lhe deu origem, tudo isto nos convence de que a liberdade d’esta senhora não póde constituir um perigo. Encarcerada e entregue á acção dos tribunaes, seria uma causa-crime, interessante, escandalosa, prejudicial. Restituida a si mesma, será um exemplo, uma lição.
E approximando-se da porta, correu a chave que a fechava por dentro, abriu-a de par em par, e dirigindo-se á condessa, com voz respeitosa e grave, accrescentou:
— Vá, minha senhora: tem a mais plena liberdade. Poderia disputar-lh’a a justiça official, não póde empecer-lh’a a rectidão dos homens de bem a quem foi entregue a decisão da sua causa. O seu futuro, violentamente assignalado pela desgraça, não pertence aos criminosos, pertence aos desgraçados. Leve-lhes a melancolica lição d’estes desenganos, e permitta Deus que perante a suprema justiça, possam os beneficios obscuros e ignorados que houver de espalhar em volta de si, compensar os erros que atravessaram o seu passado! Os vestigios da sua culpa ficarão sepultados n’esta casa.
Nós abrimos-lhe passagem para que sahisse. A condessa, n’uma pallidez cadaverica, vacillava; faltavam-lhe as forças; não podia sustentar-se em pé. O mascarado alto deu-lhe o braço. Ella fez um movimento como se tentasse fallar; o seu rosto contrahiu-se n’uma profunda expressão de dôr; hesitou um momento; por fim comprimiu os beiços no lenço e sahiu abafando uma palavra ou estrangulando um soluço.
Momentos depois ouvimos a carruagem affastando-se com aquillo que fôra no mundo a condessa de W...
Haviamos accordado no modo de occultar o cadaver, o que se tornava tanto mais facil quanto era inteiramente ignorada a assistencia do capitão em Lisboa.
Vieramos para o pavimento inferior do predio, a uma casa terrea, a que se descia por quatro degraus para baixo do solo. Era ao fim da tarde. Estavamos alumiados com a luz das velas, porque não entrava na loja a luz do dia. Tinha-se cavado uma profunda cova. Sentia-se o cheiro humido e acre da terra revolvida. Dois dos individuos a que tenho chamado os mascarados, seguravam duas serpentinas em que ardiam dez velas côr de rosa. Do travejamento escuro do tecto pendiam como cortinas pardacentas e prateadas as teias de aranhas rasgadas pelo peso do pó.
Desenrolámos o fardo que tinhamos collocado junto da cova, e contemplámos pela derradeira vez a figura do morto estendido sobre a sua manta de viagem.
Tinham-lhe atado a gravata branca, abotoado o collete e vestido a casaca azul de botões de ouro, em cuja carcella se via ainda pendida uma rosa murcha. A cabeça d’elle, na luz a que estava sujeita, era de uma expressão ideal. Os olhos, de que se não viam as pupillas, apagados e immoveis, davam ao seu rosto o vago aspecto que apresentam os das antigas estatuas. Nos labios entre-abertos parecia pairar um leve sorriso sob o bigode arqueado. Os anneis do cabello, despenteados pelo contacto da manta em que viera envolto o cadaver, destacavam na lividez da fronte como um vello de ouro n’uma superficie de marfim.
Havia um silencio profundo. Ouvia-se o bater dos segundos nos relogios que tinhamos nas algibeiras e o zumbir das moscas que esvoaçavam sobre a face do morto. Eu fitando-o com os olhos marejados de lagrimas, pensava melancolicamente...
Pobre Rytmel! Se n’este momento solemne, em que o teu corpo espera á beira da cova pelo seu descanço eterno, te faltam na terra as pompas funebres devidas á tua jerarchia; se te não seguiu até aqui um prestito de uniformes recamados de ouro; se nem sequer tens ao entrar na tua derradeira morada as orações de um padre e a luz de um cirio, cubra-te ao menos a benção da amisade! Descendente de lords, moço, intelligente e bello, quando todas as flores que perfumam a vida desabrochavam debaixo dos teus passos, apaga-se de subito no firmamento a estrella que presidiu ao teu nascimento, e tu baqueias como o ente mais despresivel no fundo de uma sepultura sem lapide, sem nome, na mesma casa em que vieste procurar a ultima expressão da tua felicidade, á luz das mesmas velas que alumiaram o teu derradeiro beijo! Os outros desgraçados que morrem têem ao menos na terra um logar assignalado onde repousam as suas cinzas, e onde podem ir os que os amaram chorar por elles. É mais cruel o teu destino: tu morres e desappareces! Não ensombrarão a tua campa as arvores tristes dos cemiterios. As aves que passarem nos ceus não baixarão a beber da agua que as chuvas tiverem deixado na urna do teu mausoleu. A lua, terna amiga dos mortos, não virá beijar por entre a rama negra dos cyprestes, a brancura da tua campa. O orvalho das madrugadas não chorará nas flores do teu jazigo. As abelhas não murmurarão em torno das rosas plantadas sobre o teu corpo. As borboletas brancas não adejarão no fluido de ti mesmo que podesse romper do seio da terra para a luz da manhã no aroma dos jasmineiros e dos goivos. Tua mãe, pensativa e pallida, procurará debalde a grade em que se ampare ao dobrar os joelhos e levantar para o céu esse olhar de interrogação em que a lembrança dos filhos mortos se envolve como na tunica luminosa de uma ressurreição.
O mascarado alto, curvou-se sobre o cadaver de Captain Rytmel e ergueu-o vigorosamente pelos hombros. Nós amparámos o corpo e descemol-o ao fundo da cova. O mascarado, ajoelhando-se depois no chão, cobriu com um lenço o rosto do morto e disse, como se estivesse fallando a uma creança adormecida:
— Descança em paz! Eu irei dizer a tua mãe o logar em que repousa o teu corpo, e voltarei a ajoelhar-me sobre esta sepultura depois de ter recebido no meu proprio seio as lagrimas que ella derramar por ti. Adeus, Rytmel! adeus!
E impelliu em seguida para dentro da cova uma grande porção da terra amontoada aos pés. A terra desabou de chofre sobre o cadaver, levantando um som baço e molle.
II
Examinámos depois os papeis de Rytmel afim de coordenarmos os seus negocios. Verificou-se a existencia de mil e trezentas libras em notas do banco de Inglaterra. Entre as cartas não havia uma só letra de miss Shorn.
Nenhum de nós tinha o espirito bastante socegado para poder reentrar immediatamente nos assumptos triviaes da existencia. Resolvemos permanecer ali até que decorressem alguns dias sobre a catastrophe de que tinhamos sido testemunhas.
O predio em que estavamos foi comprado em nome de lady... a mãe de Rytmel, e n’elle se guardaram todos os objectos que lhe tinham pertencido. Um cofre de ferro, damasquinado d’ouro e destinado a receber as cinzas do morto, foi collocado no logar em que elle se achava sepultado.
O mascarado alto dispunha-se a partir para Londres quando tivemos noticia da publicação das cartas do doutor n’este periodico. A condessa declarou que se entregaria á policia, se não levantassemos na imprensa as suspeitas formuladas na carta de Z... ácerca da probidade do medico, e se F... se não desdissesse categoricamente das injurias que nos dirigira na carta imtempestivamente mandada ao dr... por intermedio de Friedlann. A condessa auctorisava-nos a tornarmos publica a sua historia, dizendo que tinha deixado para sempre de pertencer ao mundo, para o qual a biographia que ella lhe legava seria talvez um exemplo proficuo.
Foi então, sr. redactor, que determinámos referir-lhe todos os pormenores d’este doloroso acontecimento, occultando ou substituindo os nomes das pessoas que tiveram parte n’elle, e deixando á sociedade a faculdade de as descobrir e o direito de condemnal-as ou absolvel-as.
A condessa resolveu em seguida entrar em um convento, que ella mesma escolheu depois de miudas indagações. O mascarado alto acompanhou-a e eu segui-o a uma villa da provincia do Minho, onde existe ainda, regido com todo o rigor ascetico do estatuto, um velho convento de carmelitas descalças, habitado por cinco ou seis religiosas. Estas mulheres decrepitas vivem como d’antes na pobreza de que fizeram voto, mantendo a oração, a penitencia e o jejum com a mesma exaltação mystica, com o mesmo fervor catholico dos primeiros annos das suas nupcias com o divino esposo. Trazem os pés nus e o corpo constantemente envolto na aspereza estreme do burel. Não usam roupas de linho nem algodão. Em nenhum dia do anno se permittem carne ás suas refeições. Comem juntas no antigo refeitorio, havendo sempre uma que revesadamente se prostra á entrada da sala, segundo o primitivo uso da ordem, para que as outras lhe passem por cima ao entrar e ao sair da mesa. Não têem patrimonio de nenhuma especie, nem outro algum rendimento que não seja o producto dos trabalhos que fazem. Furtadas a toda a convivencia externa, vivem na clausura mais estreita e na miseria extrema. Ninguem no mundo tornou a ver as moradoras d’aquella casa desde que entraram n’ella. As que morrem são enterradas pelas outras no claustro e cobertas com uma pedra lisa, sem nome e sem data, Não ha distico nem outro signal que difference as que deixam de existir. A morte para todas ellas começa no momento em que transpõem o limiar da portaria. Dentro tudo é sepulchro. A morte é simplesmente a mudança de cubiculo.
Tal foi a casa escolhida pela condessa para recolhimento e asylo do resto de seus dias.
O exterior do edificio era mysterioso e lugubre. Cingia-o em toda a sua amplitude uma alta muralha que o disgregava do resto do mundo, cerrando as casas habitadas pelas freiras ao exame de fóra. Era um predio emparedado. A muralha, que media a altura de quatro andares, era da côr da estamenha, sombria e triste, manchada de grandes nodoas esverdeadas e negras como o capuz de um ermita, uma especie de lençol em que se enrolasse para o enterro uma casa morta. Havia um ponto em que esta facha se recolhia, formando o pateo por onde se entrava para o convento, cuja porta, mordida pelos annos, chapeada e cravejada com enormes pregos, se via no fundo atravez dos grossos varões de uma grade de ferro. Pelas juntas desarticuladas das grandes pedras que lageavam o pateo, rompiam moitas de ortigas, com a rudeza de cabellos hirsutos, sahidos pelos rasgões de um barrete. Do meio do largo surgia o bocal da um poço, cujo balde seguro por uma corda de esparto pendia de uma estaca. No chão estavam estendidos os andrajos das pobres da visinhança, que vinham laval-os ao pé do poço, e n’esse recinto os deixavam a enxugar juntamente com as enxergas dilaceradas e apodrecidas dos berços dos seus pequenos. A um canto do pateo pendia do muro uma corrente de ferro com que se tangia uma sineta interior. A este signal via-se n’uma abertura da alvenaria rodar no muro um cylindro de madeira, que por um movimento vagaroso mettia para dentro a sua superficie concava e mostrava para fóra o seu interior convexo. Parecia quando isto se ouvia que o taciturno monstro entreabria a palpebra, deixando vêr uma orbita sem olho. Este apparelho chamma-se a roda. A condessa pronunciou ahi uma palavra, a que respondeu de dentro uma especie de gemido, e foi esperar em seguida para junto da porta negra ao fundo do pateo.
Quando a porta se abriu e o primo da condessa lhe apertou pela ultima vez a mão, as lagrimas, que até ahi conseguira difficultosamente reprimir, saltaram-lhe dos olhos.
— Acha horrivel, não é verdade? perguntou-lhe ella com um sorriso em que transparecia a extranha luz da resignação das martyres antigas. Que queria que eu fizesse, meu querido amigo? Matar-me? Prostituir-me á convivencia da sociedade? Não posso. Falta-me o valor para sacrificar ao meu infortunio a salvação da minha alma, e escuso de dizer-lhe que me falta igualmente a intrepidez precisa para sacrificar ao socego ordinario da vida o pudôr do meu coração. Bem vê pois que acceitei a solução mais suave. Coitado! como lhe doe a tristeza do meu destino! Deixe estar: prometto-lhe morrer breve, se me não succeder aquella desgraça receada por Santa Thereza de Jesus: que o prazer de me sentir morrer me não prolongue mais a vida!
Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fôra envolvida:
— Adeus, meu primo, — disse-lhe ella deixando-se beijar na testa, — adeus! Peça a Deus que me perdôe, e aos vivos que me esqueçam.
Aos primeiros passos que ella deu para lá da porta, esta fechou-se do mesmo modo porque havia sido aberta, sem que ninguem mais fosse visto, tendo mostrado um buraco lobrego, negro e profundo como a guela de um abysmo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores rangeram successivamente nos anneis, expedindo uns sons intercortados, similhantes a soluços arrancados de uma garganta de ferro.
O mascarado alto passou parte d’essa noite na villa, esperando a mala-posta que partia á uma hora. Ao subirmos juntos á carruagem ouvimos uma especie de rebate em dois sinos de uma igreja. Perguntámos o que era. O deputado da localidade, que nos acompanhava no coupé, respondeu, atirando fóra um phosphoro com que accendera um charuto:
— São as carmelitas que pedem o soccorro da caridade, porque não teem que comer.
O cocheiro fez estalar o açoite, e a berlinda partiu a galope, abafando o vozear entristecido das sinetas com o estrepito que ia fazendo pelas calçadas estreitas e tortuosas da povoação.
Pouco mais tenho que contar-lhe.
O conde de W... recebeu em Bruxellas uma carta de sua mulher contendo estas linhas:
«Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os direitos que por ventura podesse ter, um só peço que não seja contestado: o direito de acabar. Supplico-lhe que me permitta desapparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna.»
O doutor está, como elle mesmo disse, nos hospitaes de sangue do exercito francez.
Frederico Friedlann partiu repentinamente, no mesmo dia em que lançou no correio a carta de F..., para ir encorporar-se na segunda landwer do seu paiz.
F... e Carlos Fradique Mendes achavam-se ha dias em uma quinta dos suburbios de Lisboa escrevendo, debaixo das arvores e de bruços na relva, um livro que estão fazendo de collaboração, e no qual — promettem-n’o elles á natureza mãe que viceja a seus olhos — levarão a pontapés ao exterminio todos os trambolhos a que as escolas litterarias dominantes em Portugal têem querido subjeitar as inviolaveis liberdades do espirito.
Se me é licito por ultimo fallar-lhe de mim, saberá, sr. redactor, que estou recolhido em uma pequena casa na provincia. Se ainda se lembra de Therezinha, não extranhará que eu accrescente que estou casado ha dias. Precisava d’isto o meu coração: da paz de um lar tranquillo. Presencear as profundas commoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufragio: sente-se então a necessidade consoladora das cousas pacificas; então mais que nunca se reconhece que o ser humano só póde ter a felicidade no dever cumprido. — A. M. C.