Segunda carta de Z

 

Senhor redactor. — Acabo de vêr publicada na sua folha de hoje uma carta em que o doutor..., com uma insistencia malevola, torna a inculcar, como cumplice no attentado de que elle se fez o historiador voluntario, o meu pobre amigo A. M. C.

Disse-lhe na minha primeira carta, senhor redactor, que eu ia com o auxílio unico da minha coragem e da minha astucia, pôr-me ao serviço da curiosidade de todos, procurando penetrar e desfiar a tenebrosa historia que ha mais d’uma semana, vem todos os dias successivamente, no folhetim do seu jornal, apresentar deante d’um publico attonito um quadro mysterioso e lugubre.

Não pude, porém, descobrir nada: indagações, interrogatorios, visitas aos logares, tudo foi inutil. A historia perde-se cada vez mais n’uma nevoa que a afoga: e o meu pobre M. C. lá está ainda — não sei se n’um retiro voluntario, se n’uma sequestração forçada.

Na impossibilidade de descobrir, physicamente, por essas ruas, a verdade, resolvi ir buscal-a ás mesmas cartas do doutor. Analysei-as, decompul-as palavra por palavra. E sem contar os processos, apresento os resultados.

O Mysterio da estrada de Cintra é uma invenção: não uma invenção litteraria, como ao principio suppuz, mas uma invenção criminosa, com um fim determinado. Eis aqui o que pude deduzir sobre os motivos d’esta invenção:

Ha um crime; é indubitavel; é claro. Um dos cumplices d’este crime é o doutor ***. Elle está envolvido no anonymo: não tenho por isso duvida em apresentar esta accusação formal. Se o seu nome fosse conhecido, se as suas cartas estivessem assignadas, eu, só com provas judiciarias, me atreveria a escrever esta grave affirmativa.

Sim, o doutor *** é o cumplice d’um crime: o meu pobre amigo M. C. é um desgraçado incauto, sobre quem se querem fazer recahir as suspeitas que se possam ter já, e as provas que mais tarde venham a juntar-se. Este crime, que existe, apparece-nos envolvido nas roupas litterarias d’um mysterio de theatro. As cartas do doutor *** são um romance pueril. Vejamos.

É possivel que n’uma cidade pequena como Lisboa, em que todos são visinhos, amigos de tu, e parentes, o doutor *** que parece ser um homem notado na sociedade, vivendo n’ella, frequentando as suas salas e os seus theatros, não conhecesse nenhum d’estes quatro mascarados, que pelas suas indicações pertencem a essa mesma sociedade, se sentam nos mesmos sofás, escutam a mesma musica nos mesmos salões e nos mesmos theatros?

Uma mascara de velludo preto não basta para disfarçar um conhecido. O seu cabello, o seu andar, a sua estatura, a sua figura, a sua voz, as suas mãos, a sua toillete, são bastantes para revelar, trahir o individuo. O doutor *** pois nunca os tinha visto? O quê? Pois eram tão galantes, tão distinctos, governam tão bem as suas parelhas, fallam tão bem as suas linguas, pareciam tão ricos, e o doutor *** um medico, um homem relacionado, um velho dilletante de S. Carlos, nunca os viu, nunca os percebeu, n’esta terra, em que toda a vida se concentra nos doze palmos de lama do Chiado! E F... tem um amigo intimo entre os mascarados, diante de si, na carruagem, joelho com joelho, e não o reconhece, pelas mãos, pelos olhos, pelo corpo, pelo silencio até! Comedia!

E o menos conhecido, o menos celebre dos rapazes de Lisboa, mascara-se no carnaval de Turco, enche-se de barbas, cobre-se de plumas, veste-se de Mephistopheles, de Ci-devant, ou de Melão, e não ha ninguem que no salão de S. Carlos, não diga ao passar por elle: lá vae fulano! E é de noite, ás luzes, e as mulheres olham-nos, e estamos distrahidos, e não estamos n’uma estrada, de dia, surprehendidos e violentados! Tanto nos conhecemos todos! Comedia! Comedia!

E aquelles mascarados, são tão innocentes, tão ingenuos, que vão procurar, n’um momento tão perigoso, o homem que pelas suas relações, pela sua posição, pela sua intelligente penetração, mais facilmente os poderia reconhecer.

Se lhes era repugnante serem descobertos, para que procuraram aquelle homem? Se lhes era indifferente, para que se mascararam?

E depois, para que era um medico? Era para verificar a morte? Para acudir? Para salvar? N’esse caso então que homens são esses, que em logar d’ir á botica mais proxima, a casa do primeiro medico rapidamente, logo, logo, — vão em socego mascarar-se nos seus quartos, para irem ao crepusculo, para uma charneca, a duas legoas de distancia, representar os velhos episodios de floresta dos dramas de Soulié?

Suppunham por ventura que elle estava morto? Para que era então um medico, uma testemunha? E se não receavam as testemunhas para que punham nos seus rostos uma mascara, e nos olhos dos surprehendidos um lenço de cambraia? Comedia! Comedia sempre!

Veja-se o doutor *** diante do cadaver: não ha ali uma palavra que seja scientifica: desde a serenidade das feições até á dilatação das pupillas, tudo é falso n’aquella descripção symptomatica.

E que homens são, o doutor *** e o seu amigo F... que na rua d’uma cidade, dentro d’uma casa, com os braços livres, não deitam a mão àquelles mascaras? Como é que, sendo generosos e altivos supportam certas violencias humilhantes? Como é que, sendo honestos e dignos, acceitam pela sua attitude condescendente uma parte da cumplicidade?

E A. M. C.! Como o representam ali, pueril, nervoso, timido, imbecil e coacto! Elle d’uma tão grande força de temperamento! d’uma tão energica coragem! d’um tão altivo sangue frio! Como se póde acreditar n’aquella astucia infantil, com que o doutor *** o envolve?

— O que admira é que não deixasse vestigios o arsenico!

— Mas foi o opio! responde M. C., segundo conta o doutor ***.

Qual é a imbecil ingenuidade do homem que possa descer a esta simplicidade lôrpa?

E emfim, que mulher é aquella, que ahi se entrevê? Porque a quer o mascarado salvar? Que roubo é aquelle de 2:300 libras? Sejamos logicos: dado o typo do mascarado, cavalheiroso e nobre, como é que elle, vendo que o crime teve por origem o roubo, procura salvar e tem considerações por uma mulher que mata para roubar?

Se elle suspeita que o crime commetido por essa mulher teve por mobil a paixão, como explica o roubo?

Demais, se desconfiava que ella estivesse envolvida n’aquelle facto, se estava tão ligado com ella que a queria salvar, por que a não procurou logo, por que a não interrogou, em logar de ir surprehender gente para as estradas, e vir fazer tableau em volta d’um cadaver?

Ah! como toda esta historia é artificial, postiça, pobremente inventada! aquellas carruagens como galopam mysteriosamente pelas ruas de Lisboa! aquelles mascarados, fumando n’um caminho, ao crepusculo, aquellas estradas de romance, onde as carruagens passam sem parar nas barreiras, e onde galopam, ao escurecer, cavalleiros com capas alvadias! Parece um romance do tempo do ministerio Villele. Não fallo nas cartas de F... que não explicam nada, nada revelam, nada significam — a não ser a necessidade que tem um assassino e um ladrão de espalmar a sua prosa ôca, nas columnas d’um jornal honesto.

Deducção: o doutor *** foi cumplice d’um crime; sabe que ha alguem que possue esse segredo, presente que tudo se vae espalhar, receia a policia, houve alguma indiscrição; por isso quer fazer poeira, desviar as pesquisas, transviar as indagações, confundir, obscurecer, rebuçar, enlear, e em quanto lança a perturbação no publico, faz as suas malas, vae ser cobarde para França, depois de ter sido assassino aqui!

O que faz no meio de tudo isto o meu amigo M. C. ignoro-o.

Senhor redactor, peço-lhe, varra depressa do folhetim do seu jornal essas inverosimeis invenções. — Z.