AS REVELAÇÕES DE A. M. C.

 

I

 

Senhor Redactor. — Dirigindo-lhe estas linhas, submetto-me á sentença de um tribunal de honra, constituido para julgar a questão levantada perante o publico pelas cartas do doutor *** estampadas n’essa folha. Obriguei-me a referir quanto se passou por mim como actor d’esse doloroso drama, e venho desempenhar-me d’este encargo. Possam estas confidencias, escriptas com o mais consciencioso escrupulo, conter a lição que existe sempre no fundo de uma verdade! A existencia intima de cada um de nós é uma parte integrante da grande historia do nosso tempo e da humanidade. Não ha coração que, desvendado nos seus actos, não offereça uma referenda ou uma contestação aos principios que regem o mundo moral. Quando o romance, que é hoje uma fórma scientifica apenas balbuciante, attingir o desenvolvimento que o espera como expressão da verdade, os Balzacs e os Dickens reconstituirão sobre uma só paixão um caracter completo e com elle toda a psychologia de uma época, assim como os Cuviers reconstituem ja hoje um animal desconhecido por meio d’um unico dos seus ossos.


✻ ✻ ✻

Sabem que sou natural de Vizeu. Criei-me n’uma aldeia encravada entre dois montes da Beira; açoitado de quando em quando por meu pae, quando lhe esgalhava alguma arvore mimosa do quinteiro; abençoado por minha mãe como a esperança dos seus velhos annos; coberto de prophecias de gloria, como o pequeno Marcello da freguezia, pelo reitor, o qual algumas vezes depois de lhe ajudar á missa, aos dez annos de idade, me argumentava na sachristia as declinações latinas. Era escutado este prodigio por um auditorio composto do sachristão e do thesoureiro, que com os chapeus debaixo do braço, coçavam na cabeça e olhavam para mim arregalados e attonitos. A um recanto, minha mãe sorria, com os olhos banhados de ternura, do fundo da caverna formada em redor do seu rosto pela côca de uma ampla e poderosa mantilha de panno preto.

Fiz depois os estudos preparatorios no lyceu da cidade, e vim finalmente matricular-me em Lisboa na escola de medicina.

Vivo pobre, humilde e obscuramente, tenho a minha existencia adstricta a uma pequena mezada, á convivencia de alguns companheiros de estudo e ao trato de duas senhoras velhas e pobres, irmãs de um capitão reformado, antigo aboletado de meu pae, em cuja casa de hospedes eu tenho por modico preço a minha moradia na capital.

A unica luz que atravessava a sombra da minha vida de desterro, de desconsolo e de trabalho, era a lembrança de Therezinha...

Therezinha! a doce, a meiga, a querida companheira, á qual eu consagro principalmente estas paginas, que são o capitulo unico da minha vida que ella não conhece, a confissão sincera, a historia completa do unico erro de que posso accusar-me perante a sua innocencia, a sua bondade, e o seu amor!

Therezinha! adorada flôr escondida entre as estevas dos nossos montes, que ninguem conhece, que ninguem viu, de quem ninguem se occupa, e que no emtanto inundas ineffavelmente a minha mocidade e a minha vida com o sagrado perfume de um amor casto, puro, imperturbavel e calmo como a luz das estrellas.

Se tu as entenderás, minha innocente amiga, estas palavras!

Se me perdoarás, tu, a enfermidade passageira e mysteriosa, cuja historia eu ponho confiadamente nas tuas mãos, pedindo-te, não o balsamo da cura para uma chaga que está fechada para sempre, mas o sorriso da benevolencia e do perdão para a vaga e sobresaltada melancolia do convalescente ajoelhado aos teus pés!

Como quer que tenha de ser, minha noiva, eu entendo cumprir perante a minha consciencia um dever sagrado contando-te, sem omissões e sem reticencias, tudo, absolutamente tudo, quanto se passou por mim. A verdade é que te amo! que te amo, e que te amarei! Outra imagem, incoercivel, vaporosa, vaga, perpassou por mim, mas esvaiu-se como a sombra de um sonho doentio, varada sempre pelo teu olhar candido que atravez d’ella se fixava e se embebia constantemente no meu.

Uma noite, ha dois mezes, recolhendo-me por volta das nove horas a minha casa, que fica situada em um dos bairros excentricos de Lisboa, encontrei parada uma carruagem de praça, cujo cocheiro altercava grosseiramente com uma senhora, que estava em pé junto do trem, vestida de preto e coberta com um grande veu de renda. Esta senhora trocou algumas palavras com outra mais idosa que a acompanhava e disse ao cocheiro com uma voz singularmente fina, tremula, delicada, musical, como nenhuma até então ouvida por mim:

— Onde quer que lhe mande pagar?... Não trago mais dinheiro.

— Importa-me pouco isso, respondeu o cocheiro. Quem não tem dinheiro anda a pé. Já lhe disse á senhora quanto é que me deve pela tabella. Se não paga o resto, chamo um policia. Se não traz dinheiro, dê-me um penhor.

Ella então bateu impacientemente com o pé no chão, ergueu a parte do veu que lhe cobria o rosto, e principiou a descalçar convulsamente uma luva. Suppuz que iria tirar um annel. O cocheiro apressou-se a passar as guias pela grade da almofada e apeou. Tinha-me no emtanto approximado, e no momento em que elle dava o primeiro passo, impellido por uma forte commoção nervosa, estendi-lhe com as costas da mão uma bofetada que o fez cambalear e cair de encontro á parelha. E dando-lhe em seguida uma libra, que trazia no bolso:

— Ahi tem pela bofetada; contente-se com o que lhe deram pela corrida.

Diria que alguem por traz de mim suggerira estas palavras romanticas, a tal ponto ainda hoje pasmo de as ter eu mesmo inventado como solução d’effeito oratorio, para similhante contingencia!

O cocheiro levantou a moeda, examinou-a á luz da lanterna, subiu outra vez á almofada, e partiu dizendo-me:

— Boa noite, meu amo!

Eu, atarantado, confuso, tirei machinalmente o chapeu, e titubiei algumas palavras vagas, não sabendo como despedir-me da pessoa que tinha ao meu lado.

Era a primeira vez que me achava perto de uma d’essas formosas senhoras da sociedade, tenra, fina, delicada, como nunca vi ninguem! Tinha uma carnação lactea e aveludada, como a petala de uma camelia, — prodigio de mimo só comparavel ao de uma outra mulher que não conheço, e que uma noite passou por mim no salão de S. Carlos, encostada no braço de um homem e envolta em uma grande capa branca de listas côr de rosa.

Aquelles que as conhecem, que as vêem e lhes fallam todos os dias, é possivel que se não impressionem com o aspecto d’estas creaturas transcendentes. Para quem as encontra de perto pela primeira vez em sua vida não ha cousa no mundo que mais perturbe. Homens habituados a arrostar com as mais violentas commoções, a olharem denodadamente para o perigo, para a desgraça ou para a gloria, tremem diante d’esta simples coisa: o primeiro contacto de uma mulher elegante! D’ahi vem o velho prestigio magnetico das rainhas sobre os pagens, das castellãs sobre os menestreis. É uma sensação unica. O ser humano bestificado converte-se por momentos n’um vegetal que vê.

Eu ficara immovel e mudo.

Ella correu-me de cima a baixo com um olhar rapido, e dizendo-me obrigada com uma commoção tremula, estendeu-me d’entre a nuvem negra das suas rendas a mão de que tinha descalçado a luva.

Entreguei a minha grossa mão a essa mão delicada, magnetica, convulsa e fria, e senti percorrer-me todos os nervos um estremecimento electrico despedido do shake-hands que ella me deu de um só movimento sacudido, fazendo tinir os elos de uma grossa cadeia que lhe servia de bracelete.

Obrigado a dizer alguma coisa, soltei instinctivamente as palavras monstruosas de uma formula que se usa em Vizeu, mas que estou bem certo nunca até esse dia haviam sido ouvidas por tal creatura, e que certamente lhe produziram o effeito do grito stridulo de um animal selvagem, escutado pela primeira vez entre mattos desconhecidos.

Vergonha eterna para mim! essas palavras, que eu desgraçadamente conservara no meu ouvido de provinciano e que a minha bocca deixou bestialmente cair, foram estas:

— Para o que eu prestar estou sempre ás ordens.

E dizendo isto, tendo-o ouvido com horror a mim mesmo, voltei rapidamente costas, e affastei-me a passos largos. Ia vexado, envergonhado, corrido, como se houvesse proferido uma obscenidade sacrilega. Dava-me vontade de me metter pelas paredes ou de me sumir pela terra dentro! Não me atrevia a olhar para traz, mas parecia-me que ia envolto em gargalhadas phantasticas, que não ouvia. Figurava-se-me que tudo se ria de mim, os candeeiros, os cães noctivagos, as pedras da rua, os numeros das portas, os letreiros das esquinas, os aguadeiros que passavam uivando com os seus barris, e os caixeiros que pesavam arroz sobre o balcão ao fundo das tendas.

Entrei precipitadamente em casa, subi as escadas, fechei-me por dentro e puz-me a passear ás escuras no meu quarto.

Nas trevas appareciam-me illuminadas por um clarão satanico essas duas mãos que pela primeira vez acabavam de se apertar na rua — a minha e a d’ella — uma trigueira, aspera e quente, a outra branca, nervosa e gelada. Depois entravam a reconstruir-se á minha vista os vultos completos das pessoas.

Ella, de uma pallidez eburnea, com o perfil melancolico de uma madona a que tivessem levado dos braços o seu bambino, movendo-se mollemente entre rendas e setim com uma ondulação de sereia.

Eu, inteiriçado e embasbacado diante d’ella, não sabendo como segurar o chapeu e a bengala, na mais flagrante e minuciosa ostentação dos meus defeitos e da minha pobreza incaracterisada e burgueza. Ao lado de quanto n’ella havia ideal, transcendente, ethereo, ia eu vendo, enormemente avultado e saliente, quanto o meu aspecto offerecia mais baixo e mais vil: o casaco comprado ao barato n’um algibebe; as botas de duas solas torpemente desformadas e orladas de lama; as calças com umas joelheiras que me dão ás pernas na posição vertical o desenho das de um homem que se está sentando; os punhos da camisa amarrotados; e a ponta do dedo maximo da mão direita sujo de tinta de escrever!

Eramos verdadeiramente os antipodas um do outro, postos na mesma latitude pela estupidez do acaso, e separados logo para sempre por aquellas palavras terriveis que me zuniam nos ouvidos como os prenuncios de uma congestão:

«Para o que eu prestar estou sempre ás ordens!»

Não sei que extranha attracção amarrava o meu espirito á lembrança da mulher que eu acabava de ver! Não era indefinida sympathia, não era occulto desejo, não era um vago amor. Interrogava-me detidamente, e o unico movimento que encontrava no meu coração — sinceramente o confesso — era o do odio. Odio áquella mulher, odio inexplicavel, monstruoso, como aquelle que imagino ser o de um engeitado á sociedade em que nasceu!

A distincção aristocratica, a elegancia da raça d’aquella gentil creatura aviltava-me, enfurecia-me, revolvia no meu interior esse fermento de rebellião demagogica que todo o plebeu traz sempre escondido, como uma arma prohibida, no fundo da sua alma.

Aquella mulher tinha certamente, um espirito menos culto do que o meu, uma rasão menos firme, uma vontade menos forte, um destino menos amplo. Para compensar estas depressões assistia-lhe uma superiodade repugnante, inadmissivel: a que procede da casta. Um berço de luxo, uma constituição delicada, um leito de pennas, a infancia resguardada na sombra, entre estofos, sobre tapetes, ao som de um piano, — isto basta, para que fique ridiculo, miseravel, desprezivel ao pé d’ella um homem que se creou ao clarão do dia, á luz do sol, tendo por tapetes a aspereza das montanhas, e por melodias o roncar das carvalheiras e o gemer dos pinhaes!

E entre mim e ella será isto perpetuamente uma barreira.

Ella ficará sempre bella, dominativa, seductora por natureza, instinctivamente captivante, querida, amimada, estremecida, dentro da sua zona de aromas, de veludos, de cristaes e de luzes!

Eu, entre a minha estante de pinho adornada com um boneco de gesso e a minha cama de ferro coberta de chita, ficarei sempre tenebroso e inutil, — desgraçado quando não quiser tornar-me tão ridiculo, e irrisorio quando tiver a vaidade de não querer ser desgraçado!...

Accendi as duas torcidas do meu candeeiro de latão e tentei estudar. Impossivel. As letras de um livro que tinha aberto diante de mim percorri-as com a vista pelo espaço de tres ou quatro paginas, machinalmente, sem comprehender o sentido de uma só palavra. Deixei o livro e fiquei por algum tempo inerte, estupido, neutro, com a vista fixa nas orbitas ôcas de uma caveira que tinha sobre a mesa, e que se ria para mim com o escancellado sarcasmo que trazem da cova os esqueletos desenterrados. Aborrecia-me a vida. Apaguei a luz, despi-me e deitei-me.

Tinham-me feito a cama n’esse dia com dois d’esses lençoes de folhos engommados, com que minha mãe enriquecera liberalmente o meu bahú de estudante. Estes lençoes tinham a aspereza do linho novo e o cheiro caracteristico do bragal da provincia.

— Pobre mãe, coitada! pensava eu, deitado e embebido n’essa longinqua exhalação olphactica da casa paterna. Coitada de ti, que na simplicidade dos teus juizos julgaste dotar-me com um luxo que faria commoção em Lisboa, orlando-me dois lençoes com esta enorme renda longamente trabalhada por ti mesma nos teus bilros infatigaveis! Se soubesses que este paciente lavor das tuas mãos em dois annos de applicação consecutiva, ninguem aqui o admirou, ninguem o viu, ninguem attentou n’elle, a não ser a criada, que esta manhã me perguntou, entre risadas sacrilegas, se os padres na minha terra se embrulhavam nos meus lençoes em dias de missa cantada! Que importa porém que o não apreciem os outros?... Toda esta gente é má, corrupta, perversa! Agradeço-t’o eu, minha obscura, minha velha amiga. Nos arabescos d’esta renda, que eu estou apalpando na mão e que tu me consagraste, figura-se-me sentir o correr caprichoso e ondeado das lagrimas que choraste emquanto o vento ramalhava nas arvores, a saraiva estrepitava nas janellas, e tu desvelavas as tuas noites de inverno, resignadamente ajoelhada junto do berço em que rabujava o teu pequeno. Quando sinto no rosto o aspero contacto dos teus eriçados folhos bordados, beijo-os piedosamente, beijo-os eu, como se fosse um anjo bom que me tocasse com a ponta das suas azas purificadoras e brancas!

Mas além do cheiro do bragal, que me envolvia como um afago mandado de longe, havia na minha cama outro perfume que contrastava singularmente com este. Era o que aromatisava a pelle d’aquella mulher desconhecida, e que me ficara na mão que ella apertou. Respirei-o com uma curiosidade irritante, que me pungia e me dilacerava. Ai de mim! collei os labios na mão aberta sobre o meu rosto, e principiei a sorver esse mysterioso respiro de um paraiso ignoto e longinquo.

É monstruoso, infernal, o turbilhão das idéas que esse aroma extranho, penetrante e cálido, me revolveu na cabeça.

Sentia os fogachos, as palpitações, a hallucinação da febre.

Quando pela manhã me levantei, sem haver dormido em toda a noite, tinha o travesseiro inundado em lagrimas...

Perdôa-me, Therezinha! minha Therezinha, perdôa-me...

Não foi pensando em ti, meu puro anjo, que eu chorei tanto n’essa noite!

II

 

Soube d’ahi a dias que a senhora com quem me encontrára era a condessa de W. A figura d’ella tinha-me ficado moldada na memoria como o rosto de um cadaver em uma mascara de gesso. Estava no Rocio quando me disseram o seu nome, ao vêl-a passar em carruagem descoberta.

Ia reclinada para o canto de uma victoria, quasi deitada, morbida, abstrahida, indifferente, como se uma aureola invisivel a segregasse dos aspectos e dos ruidos da rua, grosseiros de mais para lhe tocarem. Tinha uma seducção hallucinante, vestida de verão, com uma simplicidade cheia de mimo e de frescura, uma graça que se adivinhava mais do que se via e que menos appetecia ver do que respirar. Levava no seio uma rosa côr de palha, e uma pequena madeixa de cabellos finos, dourados, transparentes, soltos do penteado, cahia-lhe na testa.

Cravei os olhos n’ella e tirei o meu chapeu; ella viu o meu cumprimento, olhou-me, como se eu lhe apparecesse pela primeira vez, com a mesma indifferença com que olharia para uma vidraça vasia ou para uma taboleta sem distico, e proseguiu inalteravel e immovel como a imagem preguiçosa da formosura arrebatada do seu pedestal por um cocheiro agaloado e por dois cavallos a trote.

Continuei a passear com um amigo com quem estava e cobri tanto quanto[1] pude com algumas palavras rancorosas a respeito da politica a commoção que sentia.

Momentos depois, passou na mesma direcção que tinha tomado a carruagem da condessa, um coupé escuro, sem letras nem armas, com todas as cortinas cerradas. Esta circumstancia, aliás naturalissima, encheu-me de indignação e de rancor. Imaginei possivel que aquelle trem seguisse o da condessa e, não sei por que processo do coração ou do espirito, nasceu-me o desejo de arrombar essa carruagem e calcar aos pés o homem que lá estivesse dentro.

— Estás a tremer! disse-me o amigo a quem eu dera o braço.

— Não é nada... um estremecimento nervoso.

— Impallideceste, tens os beiços brancos e as orelhas encarnadas...

— Foi uma vertigem. Dá-me isto ás vezes.

— Ahi tens! é o effeito das vigilias e do abuso do tabaco nas funcções do coração.

— E debilidade resultante da fome, exclamei eu sorrindo e mal podendo conservar-me de pé. Adeus que vou jantar!

E entrei na primeira carruagem de praça que passou por nós, emquanto o meu companheiro accrescentava:

— Agora estás afogueado e vermelho como lacre: toma ferro e bromureto.

Quando cheguei a casa tinha febre, e via por fóra do casaco o bater do coração.

Não tornei mais a encontral-a senão na noite da catastrophe.

O meu romance mysterioso e absurdo acabou então, cedendo o seu logar á tragedia em que entramos juntos.

III

 

Foi na noite de 20 de julho passado. Eu voltava de casa de Z... com quem tinha estado até ás duas horas; ía chegar quando senti atraz de mim os passos de duas mulheres. Parei. Ellas passaram por mim, descendo do passeio em que eu estava, e caminhando apressadamente. Entrevi-as á luz de um candieiro. Uma era alta, sêcca, direita, edosa; a outra — para que hei de descrevel-a? — era ella. Um relance de olhos, e conheci-a logo.

Ia inquieta, arquejante, abafada em pranto e em soluços. Commoveu-me tanto o aspecto passageiro d’essa grande angustia, d’essa dôr suprema n’aquella formosa mulher ha poucos dias ainda tão patentemente feliz, radiosa, intemerata, que eu daria n’esse momento a minha vida inteira, para a não vêr assim dobrada na lama de uma rua escura e deserta, pelo que ha mais violento, mais voluntario, mais hostil, mais implacavelmente humano: a desgraça... Ella, a viva imagem da delicadeza e do mimo, expressão suprema da belleza, do dominio, da omnipotencia terreal, via-a de repente succumbir envolvida pela serpente cuja cabeça eu imaginava segura pelo seu pé sobre um crescente de lua!

Fiquei por um momento perplexo. Por fim os meus passos apressaram-se para ella, sahi-lhe ao encontro e disse-lhe convulsivamente:

— Senhora condessa de W..., vejo que chora. É certamente um successo extraordinario e terrivel. V. Exª parece-me só e desprotegida n’este bairro; sómente em tão excepcionaes circumstancias eu poderia permittir-me a liberdade de lhe fallar. Disponha de mim, minha senhora, como se dispõe de um amigo ou de um escravo para a vida e para a morte.

Ella parecia escutar sem me comprehender, n’uma grande inquietação. Á ultima palavra que proferi:

— Para a morte! — repetiu ella n’um grito de delirio. Quem lh’o disse? Como o soube?

E apoiando-se no braço da senhora que a acompanhava, segurou-se n’ella com um movimento convulso de pavor, ergueu o rosto para mim e fitou-me, trémula, supplicante, com os olhos hallucinados e lacrimosos.

— Que quer? Diga! — accrescentou ella. Vem prender-me? aqui me tem. Leve-me.

E tendo dito isto, voltou-se successivamente para todos os lados, olhando a rua com a mais exaltada expressão da confusão, da vergonha e do medo. Era a angustia personificada pela maneira mais viva e mais lancinante. Eu sentia o coração cheio de lastima e de piedade.

— Perdão, — disse-lhe, — socegue, por quem é! Eu nada sei. Não venho prendel-a, nem venho interrogal-a. Não sou um juiz, nem um espião, nem um carrasco. É esta a terceira vez que a vejo em minha vida. A primeira foi n’esta mesma rua ha cerca de um mez, no momento em que um cocheiro lhe pedia o aluguer de um trem. A segunda vez foi de passagem no Rocio ha quinze dias. Sou um amigo seu desconhecido, obscuro, anonymo. Suppunha-a no apogeu da fortuna e da felicidade. Tive-lhe inveja e odio. Encontro-a, ao que parece, á beira de um abysmo e não acho na minha alma doente e magoada senão enternecimento e dedicação! é, então, desgraçada como os outros... coitadinha! coitadinha!

E a minha dôr era profunda e sincera, a minha compaixão illimitada.

— Não sei, tornou ella, estou tão perturbada que não o comprehendo bem; estou tão afflicta que não o reconheço bem, entrelembro-me apenas... Mas parece-me generoso e compadecido... Ah! eu não posso ter-me em pé!

Dei-lhe o braço, que ella acceitou, e ficou um momento amparada em mim e na pessoa que a acompanhava, immovel, com a cabeça reclinada para traz e a bocca aberta, bebendo ar a longos sorvos.

— Vamos! disse ella depois de uma pausa. Não posso ficar, não posso morrer aqui; tenho que escrever, preciso de chegar a casa quanto antes.

E fazendo um grande esforço continuou a caminhar apoiada como estava, com passo vacilante e vagaroso, anciada, arquejante, parando a todo o momento para receber nos pulmões o ar que lhe faltava.

Eu ia absorvido pelo aspecto de tamanha dôr. Acudia-me de longe a longe uma palavra, que não me atrevia a pronunciar, receiando que ella podesse imaginar que eu tentava perscrutar a causa do seu infortunio com uma indiscrição grosseira.

A rua em que iamos andava-se concertando e estava coberta de uma camada de seixos britados e soltos, por cima de cujos angulos percucientes e cortantes eramos obrigados a caminhar. Chegavamos á esquina da rua quando ella, voltando-se para a pessoa que a acompanhava, e que então vi ser uma criada, lhe disse:

— Betty, calça-me o sapato. Saiu-me do pé.

A criada ajoelhou-se, e exclamou:

— O setim está espedaçado! O pé deita sangue!

A condessa pareceu não ouvir, e continuou a caminhar resolutamente.

Maravilhava-me e compungia-me o valor d’alma d’aquella debil natureza, e sentia-me arrebatado a levantar do chão e a transportar nos meus braços aquelle formoso corpo tão corajosamente subjugado. Felizmente, de uma travessa proxima desembocou pouco depois um trem de praça, vasio. A condessa, que tinha visivelmente a maior pressa de chegar, entrou, com a criada que a acompanhava, na carruagem que eu mandei approximar. Fechei a portinhola e disse á condessa baixo, quasi ao ouvido, dando-lhe o meu bilhete:

— Minha senhora, quaesquer que sejam as causas, quaesquer que sejam as consequencias da extranha aventura que acaba de approximar-se de v. Exª, vá na firme certeza de que ninguem no mundo saberá do encontro que acabamos de ter. Se nunca precisar de mim, continuarei como até hoje sendo na sua existencia um homem inteiramente desconhecido, o qual de ora ávante considerará as suas relações com v. exª exactamente no estado em que estavam antes de a ter visto pela primeira vez.

Ella respondeu-me enternecidamente:

— Bem haja por essas palavras de bondade, que são talvez as ultimas benevolas que eu tenho de ouvir n’este mundo. Quando souber — porque tem de se saber isto, meu Deus! — o que, desde esta horrorosa noite eu fico sendo perante a justiça e perante a sociedade, diga á sua mãe, á sua irmã, á sua amante, se tem amante, que me não odeiem ellas, ao menos! que eu sou menos criminosa do que lhes hei de parecer, que lhe confessei isto, ao despedir-me de si, entre a vida e a morte. Adeus!... Não lhe dou a mão... Sou indigna da amisade das pessoas de bem. O mais que eu posso pedir, eu, é piedade... Tenha piedade de mim... Adeus!

A carruagem tinha rodado a distancia de alguns passos quando parou outra vez a um gesto da condessa; ella mesma abriu a portinhola, desceu e dirigiu-se a mim. Fui ao seu encontro.

— Quero fallar-lhe ainda, disse ella.

E depois de uma pequena pausa, em que parecia coordenar idéas dispersas, accrescentou:

— Foi talvez providencial o nosso encontro aqui, a esta hora, n’esta rua... É talvez a unica pessoa que Deus quer permittir que me proteja, que seja por mim. Tenho um parente a quem vou escrever immediatamente entregando-lhe este segredo. Receio que elle se não ache em Lisboa. Sendo assim, não sei de quem me confie. Se tiver no seu coração tanta misericordia e tanta bondade que queira valer-me, procure-me em minha casa, ámanhã, ás 11 horas.

E dando-me a sua morada em Lisboa, entrou outra vez no trem que partiu.

Singular commoção a que produziu em mim essa mulher de quem acabava de saber que tinha commetido um crime; sentia-me inclinado a ajoelhar-me aos seus pés dilacerados e adoral-a!

IV

 

No dia seguinte á hora assignada apresentei-me em casa da condessa.

Era um predio de um só andar, simples, branco, todo fechado. Abriu-se-me a porta da rua, appareceu-me um criado vestido de casaca azul com botões brancos, collete encarnado, calção curto. Era um homem velho, de cabellos brancos, polido e nedio como um embaixador, serio como uma estatua, penteado como um gentleman. Fallou-me em francez e conduziu-me.

As escadas eram pintadas e envernizadas de branco, luzidias como o peito engommado de uma camisa. Ao meio dos degraus corria um tapete de veludo passado em varetas de cobre reluzente. No patamar projectava-se da parede uma concha de alabastro, cheia de plantas de longas folhas, em cima das quaes gotejava a agua de uma pequena fonte. No alto da escada a mobilia era branca, as paredes forradas de verde, cobertas de molduras doiradas encerrando quadros a oleo. A luz, suave e alta, vinha atravez de vidros baços. Havia o ar sereno e o perfumado silencio de uma tranquillidade elegante e feliz. Não me parecia o palacio de um fidalgo, nem o palacete de um burguez, mas sim o ninho domestico de um poeta ou de um artista.

Levantou-se um reposteiro e entrei em uma sala forrada de coiro, circumdada de sophás e de poltronas com estofos de marroquim cravejado de aço, grandes vasos de porcelana e alguns bronzes, um dos quaes representava o busto da condessa, assignado e datado de Milão. Um dos espessos reposteiros que cobriam as portas estava corrido e deixava ver, no meio da casa proxima, que era um salão antigo, um piano de ebano volumoso e longo em cujo flanco se lia em grandes caracteres de prata o nome de Erard. Junto do piano, inclinado sobre um fauteuil, achava-se um violoncello defronte de uma estante de marfim. Sobre as chaminés de marmore havia alguns livros e vasos com flores. Os moveis estavam dispostos de maneira que parecia conversarem baixinho em coisas delicadas e intimas. Sentia-se que estava ali, domiciliada n’um aconchego feliz, uma existencia espirituosa e contente: percebia-se no ar e no aspecto das coisas, o vago prestigio do perfume, da harmonia, do calor, que as pessoas que ahi tivessem estado haviam derramado em volta de si, conversando, lendo, fazendo musica. Eu tinha levantado os olhos de um livro sobre a mesa do centro da sala, quando vi defronte de mim, ao fundo de um grande espelho, uma figura immovel, tectrica, espectral. Voltei-me rapidamente, e não pude reprimir um grito de pasmo e de terror. Era a condessa.

Horrivel transformação por que ella passára! Durante as poucas horas que haviam mediado entre esse momento e a ultima vez que a vira, a condessa de W... tinha envelhecido dez annos. Os olhos profundamente encovados haviam tomado uma expressão apagada e immovel; a carne tinha uma côr terrea e opaca; os musculos faciaes, contrahidos na mais violenta oppressão, davam-lhe ao rosto, transversalmente vincado por dois sulcos escuros, o aspecto de uma magreza extrema; os cabellos apanhados todos para traz, alizados e seguros n’um rolo sobre a nuca, avultavam-lhe o nariz afilado e despegavam-lhe do craneo as orelhas lividas, de uma saliencia rija e cadaverica.

Fez-me signal que a acompanhasse. Segui-a com a sensação enregelada de quem entra nos dominios da morte. Atravessámos uma sala e entrámos em um dos quartos d’ella. Apontou para um sophá e sentou-se ao meu lado, olhando para mim, impassivel.

Ficou assim por um momento na mudez de uma dôr intraduzivel, pausa terrivel em que a alma emerge de um abysmo de lagrimas e se debate violentamente antes de apparecer na voz. Tinha os labios entre-abertos como os de quem vae soltar um grito, e o queixo tremulo oscillava-lhe como o das creanças subjugadas pelo terror no instante de lhes rebentar o pranto. Por fim disse-me lentamente, com palavras pesadas, firmes, entrecortadas, como se estivesse retalhando o coração e dando-m’o em bocados!

— Peço-lhe que não me condemne pelas primeiras palavras que vae ouvir.

E, em voz baixa, depois de um breve silencio, accrescentou:

— Eu matei um homem.

— Que diz?! gritei eu estupefacto. Está louca! enlouquceu!

— Não. Não estou louca, tornou ella grave e serenamente. Não enlouqueci ainda. E admiro isto. Como têem decorrido estas horas, minuto por minuto, segundo por segundo, sem que a minha razão succumbisse n’esta desgraça infinita, sem remedio, sem termo, sem remissão! Matei um homem... Involuntariamente, sim, mas matei-o. Quero entregar-me aos tribunaes, estou prompta, estou deliberada. Estendendo os olhos ao meu futuro, não vejo senão uma esperança, senão um lenitivo unico no prazer de morrer em tormentos, que eu abençoarei como os maiores beneficios do ceu, de morrer de fome, de desprezo, de miseria, prostrada no fundo de uma enxovia, no porão de um navio, ou abandonada em uma praia da Africa, abrazada pelo sol, sobre as areias ardentes, roida pelo cancro, devorada pela sede e pela febre. Por mim uma só cousa temo: a loucura que um momento em minha vida me consinta a alegria horrivel de cuidar que ainda sou amada e feliz; ou a morte repentina que me arrebate a consolação unica que Deus concede aos grandes culpados: a liberdade de soffrer. Mas elle... O seu nome descoberto! o seu cadaver profanado! o seu segredo trahido!...

E fallando, como n’um sonho, abstractamente:

— Desventurado homem! que fatal destino o encaminhou para mim arremessando-o, de encontro ao meu coração, em que estava a sua morte? Porque não amou outras mulheres que o mereciam mais do que eu? Porque não se deixou amar por Carmen Puebla, que o adorava e que morreu por elle? Que cego, que imprudente, que desgraçado que foi!...

E escondendo a face nas mãos, desatou a chorar n’um pranto convulso e desfeito, em que a vida parecia despedaçar-lhe o seio e jorrar para fóra em borbotões de lagrimas e de soluços.

— Vamos, — disse-lhe eu quando esta crise abrandou, — serenemos um momento, e pensemos no que importa fazer. É então positivo que o conde está morto?

— O conde?... interrogou ella, erguendo-se de subito e enxugando os olhos. Sim, tem rasão, eu ainda lhe não disse tudo... O homem que eu matei não é meu marido.

E, postando-se defronte de mim, fitou-me com um olhar hallucinado, e accrescentou com voz demudada e profunda:

— É o meu amante.

Em seguida ficou immovel, esperando as minhas palavras na postura de um reu que vae escutar a sentença da bôca de um juiz.

A sensação que experimentei ao ouvir essa confissão breve, sêcca, inesperada, foi a da surpreza primeiro, de uma instinctiva repulsão depois. Ergui-me machinalmente e dei alguns passos na casa. A condessa permanecia na mesma posição, n’uma insensibilidade que tanto podia ser a prostração do arrependimento como o cynismo da culpa. Eu estava surprehendido e revoltado. Aquella mimosa e pura estatua, á qual eu levantára quasi um altar no meu coração, assim repentinamente baqueada n’um lamaçal, causava-me horror. Poderia supportal-a criminosa; não podia consideral-a prostituida. Medi-a com um olhar em que senti dardejar o despreso que ella n’esse momento me inspirava, e depois de um silencio repassado de magoa:

— É horrivel isso!

Ella estremeceu, cerrou desfallecidamente os olhos e amparou-se vacillante ao espaldar de uma cadeira.

— Extranha talvez a lastima e o horror que me causa? insisti eu. É natural. Tendo ouvido que em Lisboa, a sociedade vê benevolamente essas quedas como incidentes triviaes da existencia domestica. Eu porém que sou um selvagem, eu que me criei no principio de que a fidelidade é no caracter de uma mulher um dever tão sagrado como a honra no caracter de um homem, eu protesto, em nome das unicas mulheres que a minha inexperiencia me tem permittido conhecer no mundo — em nome d’aquella que me gerou e em nome d’aquella que eu amo — contra similhante interpretação da liberdade de amar. Não comprehendo que cáia em tal erro uma pessoa limpa. O adulterio é uma indecencia e uma porcaria. Matar um homem em taes circumstancias, é mais do que faltar ferozmente ao respeito devido á inviolabilidade da vida humana; é faltar egualmente ao respeito da morte... É atirar um cadaver a um cano de esgoto... É tragico — e coisa ainda mais horrivel — é sujo...

Ella escutava-me em silencio, extatica, como hypnotisada pela minha instinctiva mas cruel grosseria.

De repente, sem uma exclamação, sem um grito, sem um gesto, caiu desamparadamente no chão, fulminada, inerte, como se estivesse morta.

Quiz chamar alguem, ia a tocar no botão de uma campainha quando me occorreu a inopportunidade de qualquer intervenção n’esta scena. Fui para ella, que ficára estirada de costas sobre o tapete. Levantei-lhe a cabeça. Não lhe senti o pulso. Ergui-a em peso, tomei-a nos meus braços. A fronte d’ella pendeu sobre o meu hombro, ficando perto dos meus labios a sua face desmaiada.

Approximei-me de um sophá. Depois, por um sentimento supersticioso de respeito, colloquei-a n’uma cadeira de braços, e corri aos aposentos contiguos áquelle em que estavamos. O quarto proximo era um gabinete de vestir. Trouxe um frasco de agua de Colonia que estava n’um lavatorio. Humedeci-lhe as fontes e os pulsos, fiz-lhe respirar o alcool. Auscultei-a. O coração começava a bater. O pulso reapparecia.

Eu tinha-me ajoelhado junto da poltrona em que ella jazia e contemplava melancholicamente a sua figura exanime.

Os olhos cerrados, a bocca entre-aberta deixando vêr os dentes miudos e côr de perola, a cabeça reclinada ao espaldar, davam ao seu rosto, assim em escorso, a expressão de uma figura d’anjo, ascendendo de um tumulo. Os pés estreitos e finos, calçados em meias de seda e sapatos de setim preto sobresaíam da orla do vestido n’uma immobilidade sepulchral. Uma das mãos, atravez de cuja lividez se via a rede tenue e azul das veias, tendo no dedo annular um circulo de grossos brilhantes entremeiados de rubis, repousava-lhe no regaço, e do seu roupão de rendas pretas exhalava-se o mesmo perfume, o perfume d’ella, que ficára na minha mão a primeira vez que a vi.

Lembrei-me então da sua figura entrevista de noite, ao gaz de um candeeiro da rua, tornada a vêr depois, á luz do dia, no Rocio, passando em carruagem descoberta. E estas coisas, tão vivas na minha lembrança, faziam-me todavia, a impressão de haverem passado ha muitos annos.

Ella estava velha!

Muitos dos seus cabellos, seccos, baços, como mortos, tinham embranquecido nas fontes e no alto da cabeça.

A contracção violenta de todos os musculos da dôr transformara n’uma só noite as suas feições e desfigurára a sua physionomia. Os cantos da bocca tinham descaído ao peso das lagrimas como ao peso dos annos, e dois vincos profundos sulcavam-lhe as faces flaccidas na mesma direcção obliqua que tinham tomado os sobr’olhos, riscando-lhe a testa em rugas curvilineas e transversaes.

Que medonha, que tenebrosa, que incomparavel angustia devia ter passado em algumas horas por este desgraçado corpo para o devastar assim!

Na rua, a pequena distancia, um realejo tocava um pot-pourri de varias operas, e, ao som d’esse corrido martellar idiota da musica mecanica, pareceu-me ver desfilar em louca debandada no ar, entre mim e a pobre senhora, como n’uma especie de evocação ao mesmo tempo tragica e grotesca, todos os grandes symbolos das educações sentimentaes, ladainha viva das paixões elegantes, girando sob a manivella do seu realejo, n’um redemoinho funebre, de dança dos mortos, em torno d’esse corpo desfallecido, como as visões da vida passada, figuradas nos velhos retabulos, em torno do leito das monjas moribundas.

Era como se, no decorrer d’essa musica, automatica como um andar de somnambulo, eu visse perpassar no espaço a grande ronda das tentações que na vida levaram comsigo o destino d’esta creatura: os pallidos Manriques e os febris Manfredos, trazendo sob a capa das poeticas aventuras a bravura cavalleirosa de campeador Ruy de Bivar ou do paladino Rolando, a melancolia de Hamlet, a exaltação sentimental de Werther, a revolta do Fausto, a sociedade de D. Juan, o tedio de Childe Harold; e toda a legião dramatica das bellas mulheres amadas: Francesca, Margarida, Julietta, Ophelia, Virginia e Manon.

E, em grinalda de beijos seccos, de beijos de pau, matraqueados no instrumento da rua, todas essas figuras d’amorosas legendas bailavam mysteriosamente ao som da Traviata, da Lucia, do Balle in maschera.

Amor! amor! amor! — tal foi de certo a letra da grande aria que constantemente lhe cantaram atravez de toda a sua existencia de mulher bella, instruida e rica.

Foi n’esse mundo moral que a sua imaginação habitou e que se fez o seu pobre espirito de linda creatura ociosa e desejada.

Como poderia ella adivinhar a honesta serenidade dos destinos simples no meio de uma existencia tão complicadamente artificial como a sua?

Fóra dos interesses da elegancia, da moda, talvez da arte, que conhecia ella de serio e de grave na vida senão a religião e o amor? Tinha um missal e um marido. É pouco para o equilibrio de uma alma, principalmente desde que o missal cessa de convencer e o marido cessa d’amar.

As que tem um salão, uma carroagem, um camarote na opera, um cofre cheio de joias, um quarto cheio de vestidos, não pódem ser as singelas mulheres que passam a vida a dar de mamar aos filhos e a vender cerveja, como diz o Iago, de Shakespeare; nem podem resumir o seu destino facil em ter filhos, chorar e fiar na roca, como diz Sancho Pansa. Esta não vendia cerveja, não a ensinaram a fiar... Chorou apenas.

Quem sabe se na sua dourada existencia a amargura das lagrimas a não compensou hoje de tudo quanto ignora da amargura da vida!

E tive uma paixão sincera com um remorso profundo das palavras crueis que lhe dissera.

Que poderia eu fazer para a salvar? Não o sabia. Achava-me porém resolvido a tudo, a sacrificar-me inteiramente, para lhe valer.

Devo dizer tambem que, vendo-a, ouvindo-a, eu não suppuz nem por um momento que no homicidio de que ella se accusava podesse haver o que se chama verdadeiramente um crime, isto é, uma intenção infame ou perversa. Um criminoso, um cobarde, um assassino, nem chora assim, nem falla assim, nem se denuncia, nem se inculpa, nem se entrega por esta fórma a uma pessoa quasi extranha, quasi desconhecida. Ella tinha-m’o dito com a mesma simplicidade com que o gritaria da janella para a rua, sem a minima preoccupação de se salvar. Cheguei a pensar por um momento que não tinha deante de mim senão uma extranha nevrose, um caso de hallucinação, de delirio raciocinado. Mas o delirio não faz padecer tanto. Tenho visto muitos loucos no hospital. A expressão d’elles, ainda a mais dolorida, não apresenta nunca a profundidade d’esta. É preciso ter toda a integridade da sensibilidade e da rasão para soffrer assim. No padeccimento dos loucos ha um não sei quê, sem nome talvez na symptomatologia do soffrimento, mas a que poderiamos chammar — a isolação da alma.

Ao voltar a si, a condessa parecia um pouco mais calma. Para evitar um recrudescimento de excitação proveniente de uma longa narrativa de episodios que me pareceu discreto evitar, um pouco como estudante de medicina, principalmente como homem honrado, disse-lhe:

— Sabe mais alguem d’este caso? — Sabe-o a minha creada de quarto, a que me acompanhava hontem quando nos viu, e sabel-o-ha dentro em pouco meu primo H... a quem hoje escrevi. Meu primo porém está em Cascaes. O morto é um extrangeiro. Ninguem, a não ser meu primo, o conhece em Lisboa. Ignorava-se mesmo que elle existisse aqui. Entregal-o aos tramites policiaes, ter de revelar o seu nome, descobrir a sua naturalidade, a sua familia, eis o que principalmente eu queria evitar. Conseguido isto, entrego-me aos tribunaes, mato-me, fujo, enterro-me viva... como quiserem!

— E sabe seu primo como elle morreu?

— Não. Vai saber apenas que está morto...

— Póde contar com o silencio da sua creada, por alguns dias ao menos?

— Posso. Por toda a vida.

— Evite, se póde, que seu primo receba hoje a sua carta. E... elle, onde está?

— Na mesma rua em que nos encontrámos hontem, no predio n.^o...

— Para entrar na casa...

— Ha uma chave — respondeu ella.

E tendo meditado um momento:

— Hontem — prosseguiu — quando lhe disse que viesse hoje a minha casa, estava louca de desesperação e de horror. Parecia-me que tudo quanto se approximava de mim me trazia a punição, o castigo, e que tudo quanto se affastava fugia para longe com o meu ultimo amparo, com o derradeiro soccorro que eu ainda poderia ter n’este mundo!... Foi n’este delirio que lhe pedi a V..., um extranho, um desconhecido, que viesse vêr-me... Para quê?.. nem eu sabia para quê... Para contar isto a alguem, para me decidir, para ter uma solução, para apressar um desenlace qualquer, para fugir de mim mesma... Ir á policia era entregar esse infeliz á mais horrorosa das profanações. Dirigir-me a alguma das senhoras que conheço, ir bater á porta de uma familia tranquilla, que me receberia na casa de jantar ao levantar da mesa, que me apertaria as mãos, que me traria os seus filhos para eu beijar, e depois dizer-lhes de repente: Eu, que aqui estou, tinha um amante, e matei-o; venho convidal-os para esta festa de vergonha e de ignominia!... Não. Era melhor fugir para o desconhecido, entregar-me ao acaso... Em tudo isto pensei confusamente, não sei como, sem continuidade, sem nexo, aos pedaços, depois que o vi, durante esta noite medonha. Não tenho hoje mais lucidez de espirito do que tinha hontem... Não sei o que hei de fazer... Sinto apenas que estou perdida, que é preciso que alguem venha, que é preciso que me levem... O senhor parece-me um homem generoso, leal, compadecido e bom... Sabe já o que me succedeu, sabe onde elle está. Disse-lhe qual era a casa, disse-lhe o numero da porta. Aqui tem a chave.

E tirando do seio uma corrente de ferro, de elos angulosos como de um cilicio, que trazia suspensa do pescoço por dentro do roupão, abriu uma argola que lhe servia de remate, soltou uma pequena chave, e entregou-m’a.

Deixou-se cahir n’um fauteuil, inclinou a cabeça para traz e ficou prostrada, silenciosa, no abatimento, no abandono, no entorpecimento profundo que d’ordinario se succede ás grandes crises nevralgicas.

Sem saber o que fizesse, pensando todavia que uma ideia qualquer me occorreria mais tarde como desfecho possivel para esta situação tão imprevista, tão extraordinaria, guardei a chave. Senti que me era preciso, primeiro que tudo, sahir d’alli, retomar o ar livre, achar-me a sós commigo mesmo, reflectir, raciocinar.

— Minha senhora — disse-lhe então — se amanhã, até ao meio dia, eu lhe não tiver reenviado esta chave, será signal que me prenderam, que está tudo perdido. Se não souber mais de mim, quero dizer, se lhe não fôr restituida esta chave, fuja, esconda-se, faça como quizer. Interrogada, negue tudo. Eu preferirei mil vezes acceitar a responsabilidade d’esta morte a imputar-lh’a, e, por caso algum do mundo, será jámais o seu nome proferido por mim. D’aqui até lá, para coordenar as suas ideias, para equilibrar a sua razão, para não enlouquecer, se quer um conselho de physiologista, violente-se um pouco, abra uma janella, sente-se deante de um caderno de papel e escreva o que se passou. Depois queime o que escrever. O unico meio de dominar uma situação como a sua, o unico meio de verdadeiramente a comprehender, é analysal-a. Houve um philosofo que deixou aos infelizes esta maxima: «Se a tua dôr te afflige, faze d’ella um poema.» Vá escrever. Faça as suas memorias ou faça o seu testamento, mas escreva, e queime depois. Agora, adeus. Adeus até amanhã, ou quando não, adeus para sempre.

Ella conservava sempre a attitude extatica em que cahira na cadeira de braços. Tinha a bocca entre-aberta, o labio inferior tremia-lhe, com esse tocante gesto infantil que toma a desolação no rosto das mulheres, e grossas lagrimas silenciosas, corriam-lhe em fio pelas faces e gotejavam lentamente nas rendas do vestido. Fez um movimento para se erguer, procurando articular uma palavra d’agradecimento. Profundamente enternecido, dei um passo para traz, inclinei-me com respeito, e sahi.

V

 

Tendo fechado a porta do aposento em que ella ficára, ao passar na sala em que primeiro estivera, occorreu-me de repente uma ideia. Sobre uma das mezas achavam-se dois grandes albuns. Folheei-os rapidamente. Um d’elles encerrava apenas uma serie de apontamentos de viagem tomados por uma só pessoa, segundo se via da uniformidade da letra a lapis e em portuguez. Entre os apontamentos escriptos estavam collados ou pregados nas paginas alguns especimens de plantas e de flôres, e viam-se delineados varios esboços de construcções e de fragmentos architectonicos. Era um album de estudos. O outro continha uma collecção de pensamentos, de maximas, de versos, de desenhos, de aquarellas, firmados por muitos nomes diversos. Eu devorava com os olhos o conteúdo de cada lauda.

Não ousára perguntar á condessa o nome do seu amante. Comprehendia que a bocca d’ella nunca mais poderia pronuncial-o, e não obstante, eu precisava de sabel-o, de ver letra d’elle. Estava certo de que esse nome desconhecido figuraria indubitavelmente entre os que eu estava lendo, que a letra desejada se encontraria no meio dos escriptos que me estavam passando pelos olhos. Como poderia porém adivinhal-o, sem tempo, sem vagar, sem o socego de espirito necessario para meditar a intenção de cada uma das phrases que ia lendo?... Era-me forçoso abandonar este recurso, e o album que tinha nas mãos era todavia, talvez, o unico meio que me restava de poder descobrir o que desejava! Hesitei um momento, e sahi por fim, levando o livro comigo.

Apenas me achei na rua tomei um trem, que dirigi para minha casa, acantoei-me na carroagem e puz-me a ler successivamente cada um dos trechos em verso e em prosa, de que se compunha a collecção.

Sabia pela condessa que o morto era estrangeiro. Esta informação era insufficiente para que eu o distinguisse n’aquella torre de Babel. De pagina para pagina ia-me surprehendendo uma nova lingua. Havia francez, italiano, allemão, inglez, hispanhol... O nome de Ernesto Renan apparecia sobposto a duas palavras chaldaicas; Garcin de Tassy, orientalista na Sorbonne, firmava um periodo em lingua hindustanica; Abd-el-Kader tinha deixado simplesmente o seu nome arabe; a princesa Dora Distria assignava de Turim um pequeno texto albanez. Nomes portuguezes, apenas dois.

A leitura dos textos não me adiantava mais do que a simples inspecção da variedade dos nomes e da differença de linguas.

Ao chegar a casa, vi que o numero que a condessa me indicara era o de um predio de um só andar, pobre de apparencia, quasi fronteiro á casa que eu habitava, perto de uma esquina, collocado ao lado de um predio mais saliente, e tendo a porta n’um angulo reintrante que a escondia da parte principal da rua. Para o lado opposto até á esquina proxima havia uns armazens deshabitados. Defronte corria um velho muro, ao alto do qual sobresaiam as ramas seccas de um canavial. A situação topographica da casa onde estava o morto permittia-me pois entrar e sair d’ella sem ser visto.

Ali dentro haveria talvez um papel, uma carta, uma nota, que me revelasse o nome que desejava conhecer.

Dei a volta á chave e entrei. No alto da escada, junto de uma porta cerrada, estava caida uma luva e dois bocados de papel. Um era meia folha pequena, lisa, em branco. O outro era um pedaço de enveloppe; tinha no alto um carimbo do correio de Lisboa com a data do dia anterior; a um canto havia inutilizada uma estampilha franceza; no subscripto lia-se: Mr. W. Rytmel.

Este nome achava-se no album da condessa por baixo de dois versos inglezes.

A luva, que levantei do chão, era de mão de homem, e de pellica branca com cordões pretos. Por dentro tinha em letras azues a marca de um luveiro de Londres. Era evidente que tinha achado o que procurava. Rytmel era o nome do morto.

Abri em seguida a porta que tinha em frente de mim e estremeci de horror. Estendido n’um sophá estava o cadaver. A expressão do seu rosto inculcava um socego feliz. Parecia dormir. Apalpei-o; estava frio como marmore. Collocado perto d’elle estava um copo com um pouco de liquido. Era opio.

Percorri o aposento com um relance d’olhos. No forro de setim preto do chapeu, que estava caído no chão, vi bordadas em vermelho uma corôa de barão e duas grandes lettras — um W. e um R.

Não podia perder tempo. Fui para casa, sentei-me pacientemente á minha banca e abri o album defronte de mim na pagina em que estavam os versos assignados por W. Rytmel.

É de saber que tenho aquella especie de habilidade que Alexandre Dumas considera aviltante e vilipendiosa para a intelligencia: sou, como terá visto pela letra d’estas cartas, um excellente calligrapho. Copiei escrupulosamente, desenhando letra a letra, por trinta ou quarenta vezes consecutivas, os dois versos que tinha patentes. Depois principiei a construir, com letras da mesma fórma das que tinha copiado, outras palavras differentes. Finalmente, depois de muito estudo e de muitos ensaios, peguei na meia folha de papel que tinha encontrado na casa em que se dera a catastrophe, e fiz em inglez com escripta que ninguem no mundo duvidaria ser a da pessoa que escreveu no album os versos assignados pelo nome de Rytmel, uma declaração pessoal do suicidio por meio do opio. D’este modo, quer mais tarde me occorresse, quer não, o meio mais conveniente de sepultar o cadaver, as suspeitas de homicidio desappareciam.

A condessa estava salva desde que, antes de mais ninguem, eu entrasse na casa e collocasse junto do corpo o bilhete que escrevera.

Mas eu ficava sendo um falsario. Repeti a mim mesmo esta palavra sinistra e estremeci de horror. Era preciso achar outro meio, que eu procurava debalde. E no entanto o tempo corria. Veio a noite. Lembrei-me que o primo da condessa poderia vir de Cascaes prevenido por ella, e cheguei a sahir de casa com pregos e um martello para encravar a fechadura da porta e retardar a entrada no predio onde se achava o morto. Occorreram-me mil idéas phantasticas, cada qual mais absurda. Passeei por muito longe, a pé, meditando, inquieto, nervoso, congestionado, estafado, devorado de febre, palpando no fundo do bolso o bilhete terrivel com que poderia desviar a responsabilidade da cabeça de um criminoso, tomando todavia para mim uma parte egual no seu remorso.

Finalmente, por volta da meia noite, sem bem saber porquê, nem para quê, levado por uma attracção terrivel, atraz de uma suprema inspiração, cingi-me com o muro, abri a porta, penetrei na casa. Então me encontrei inesperadamente com o doutor e com a pessoa conhecida no decurso d’esta historia pelo nome de mascarado alto.

O primo da condessa, tendo chegado de Cascaes ao meio dia, acompanhado de dois amigos intimos, inquieto pelo desapparecimento de Rytmel, que era seu hospede e vivia como homiziado em casa d’elle em Lisboa, foi ao predio mysterioso de que possuia uma chave e que sabia ser frequentado regularmente pelo inglez, e encontrou ahi o cadaver. Conhecendo as relações de Rytmel com a condessa, ponderando quanto havia de delicado na necessidade de manter o maior sigillo em volta d’aquella catastrophe, e julgando por outro lado indispensavel que o testemunho de um medico constatasse a morte, que poderia ser apenas apparente, planeou e realisou a emboscada em que surprehendeu o doutor ***, que elle sabia casualmente que passaria n’essa tarde pela estrada de Cintra.

Sabem o que se passou n’essa noite.

VI

 

No dia seguinte ás onze horas da manhã, todos nós, os que haviamos ficado n’essa casa fatal, nos achavamos reunidos, de rosto descoberto, em torno do cadaver.

O doutor havia sido conduzido ao ponto da estrada de Cintra, em que fôra tomado na vespera.

F..., encarcerado durante a noite em um quarto interior da casa, havia communicado com um allemão que habitava o predio contiguo, e passára-lhe de manhã por um buraco feito no tabique, a carta ao doutor, publicada mais tarde no Diario de Noticias. Em seguida arrombou a porta do quarto que lhe servia de carcere, e depois de uma altercação violenta, arrancou a mascara ao primo da viscondessa. Os outros dois mascarados, vendo o seu companheiro descoberto, tiraram egualmente as mascaras. Um d’elles era intimo amigo de F...

— Que é isto?... Como póde isto ser?... gritou F... exaltado.

E apontando em seguida para o cadaver, continuou:

— Aquelle homem está morto, e foi roubado. Depressa expliquem-se! como póde isto ser?

— Meus senhores, — exclamou o mascarado alto — o segredo que eu tenho tido em meu dever guardar dentro dos muros d’esta casa, e que espero fique para sempre sepultado n’ella, pertence a uma senhora. Uma parte d’este segredo, aquella que mais particularmente nos interessa, a que explica a presença d’aquelle cadaver diante de nós, conhece-a este senhor.

E voltando-se para mim ao dizer estas palavras, accrescentou:

— Em nome da nossa dignidade, emprazo-o pela sua honra a que declare o que sabe.

— Jurei não o dizer — respondi eu — não o direi nunca. Ao entrar aqui, em presença de um perigo que julguei imminente sobre a cabeça das pessoas mais particularmente envolvidas n’este mysterio, perdi os sentidos, desmaiei mulheril e miseravelmente. Falta-me diante do perigo a energia physica, que é a feição visivel do valor. Não imaginem por isso que tambem careço de força moral precisa para guardar um segredo, á custa que seja da minha propria vida! Interrogado por gente mascarada, que não conhecia, era-me licito mentir, pôr tambem na resposta uma mascara. Diante de gente de bem, que me interroga invocando a sua honra, o meu dever é calar-me. Previno-os de que são absolutamente inuteis todas as tentativas que fizerem para me obrigarem a outra coisa.

— Não é difficil de cumprir o seu dever! observou com ironia o mascarado alto. O corpo d’aquelle desgraçado não póde ficar ali por mais tempo. É urgente que tomemos uma deliberação decisiva e que salvemos a responsabilidade que pesa sobre nós, de modo tal que fique para sempre tranquilla a consciencia que nos dictar o conselho que houvermos de seguir. Visto que este senhor se recusa a principiar, começarei eu.

E traçou sobre uma folha de papel as seguintes linhas, que ia pronunciando ao mesmo tempo que as escrevia:

«Minha prima.

«Na rua de... n.^o... acham-se n’este momento reunidos diante de um cadaver os seguintes homens: (seguiam-se os nossos nomes). É um tribunal supremo constituido pelo acaso e que vae julgar em derradeira e unica instancia o crime sujeito pela fatalidade á nossa jurisdicção. Se em presença d’este tribunal a minha prima tiver que depôr, peço-lhe que o faça.»

— Perdão... — observei eu. — Peço licença para accrescentar uma linha:

«A. M. C. não devolve a chave.»


✻ ✻ ✻

Elle escreveu o que dictei, assignou, dobrou o papel, e disse a um dos seus amigos:

— Vae já entregar este escripto á condessa de W...

Meia hora depois uma carruagem que percorrera a rua a galope parou á porta do predio em que estavamos. Rolámos para dentro da alcova o sofá em que se achava o cadaver, e cerrámos o reposteiro da sala. Abriu-se a porta, e a condessa entrou.

Seguira o alvitre que lhe propus. As vinte e quatro horas decorridas desde que eu a deixára até ao momento de partir para ali, tinha-as empregado em escrever com uma eloquencia apaixonada e febril a historia da sua desgraça. O caderno que lhe remetto encerra, senhor redactor, a copia da longa carta dirigida por ella a seu primo. Cedo o logar que estava occupando nas columnas do seu periodico á publicação d’este documento, que verdadeiramente se poderia chamar O auto de autópsia de um adultério.

Depois direi o destino que démos ao cadaver, e o fim que teve a condessa.