Dizem os gramáticos, gente detestável nestes tempos de discor­dância, que o nome é uma voz com que se dão a conhecer as coisas. Quando nos tempos de colégio de minha memória, rebelde às exigên­cias do decurião, recusava guardar no seu arquivo esta triste definição, é que o meu espírito, agora o conheço, pressentia-lhe já todo o absurdo e falsidade. Nunca em verdade uma mentira tão grande se escreveu em letra redonda.

Aquilo por que as coisas menos se dão a conhecer neste mundo é pelo seu nome.

O nome é hoje, e não sei se o deixou de ser em algum tempo, a primeira mentira de todas as coisas: é como um cunho do pecado original impresso sobre tudo o que existe.

A tradição da Torre de Babel parece-me errada até certo ponto; o que ali se confundiu não foram as línguas, foram os nomes das coisas.

Daí datou, segundo penso, em falta de origem mais remota, essa confusão à custa da qual tanta gente vive.

Com efeito, se as coisas se chamassem pelo seu nome, muitas leis não seriam leis, muitos legisladores não seriam legisladores, muitos governos não seriam governos, muitos sentimentos não seriam senti­mentos, e até muitos homens não seriam homens, nem mulheres muitas mulheres.

Quando se fala em confusão não se pode deixar de falar em mulheres, que são os entes mais confusos da criação. É também nelas que a mentira do nome é mais constante e mais manifesta. Tenho visto algumas, feias como um pesadelo, a quem todos, desde o padre que com o batismo santificou a peta, até elas mesmas — e nisto vai o maior escândalo — chamam pelo nome de Rosa, por exemplo.

Algumas há a quem a menor contrariedade encoleriza no mais subido grau, que cospem blasfêmias contra a terra e o céu porque se lhes desarranjou a mais pequenina prega do vestido. Pois se numa ocasião dessas alguém lhe perguntar o nome, responderá com voz de tempestade: Angélica! Há outras que passam dia e noite prostradas ante o altar do espelho adorando a imagem de uma divindade, que às vezes não tem segundo devoto, que nunca põem a mão no peito para ver se o coração palpita, e que morrem no dia em que se convencem da existência da primeira ruga no rosto e do primeiro fio de prata na cabeça. Verdade é que muitas destas ficariam eternas se a morte esperasse tal convicção.

Já perguntei o nome a uma criatura nestas circunstâncias, e respondeu-me que se chamava Modesta!

Os homens a esse respeito não terão também muito de que gabar-se. Daqui se pode concluir que há muita gente neste mundo que mente de cada vez que assina o seu nome.

Há algumas coisas que se diz não terem nome; nisto há uma economia de mentiras. Há porém uma infinidade de coisas que tem uma infinidade de nomes. Entre estes contemos os príncipes, o que por certo não lhes deve ser muito lisonjeiro.

Um homem, ou uma coisa com muitos nomes, devia representar uma idéia pelo menos por cada um deles; se isto se não dá, há mentira em cada nome de mais.

É por isso que ninguém se batiza com uma série de nomes; a igreja não quer santificar senão uma mentira, e já não faz pouco.

Não sei qual foi o povo que primeiro pôs em uso ter um indivíduo muitos nomes; isso não deixa talvez de ser uma invenção espanhola. Os Ingleses por certo não estabeleceram semelhante uso.

Entretanto — eis aqui uma prova das misérias humanas — um nome é às vezes a história de urna vida; entretanto há épocas em que os lábios não sabem pronunciar mais do que um nome, em que os ouvidos não escutam em todas as vozes da natureza senão um nome, em que não se tem escrito na memória senão um nome. Sabe Deus quantas vezes entre estas palavras que se estão lendo o autor não escreveu sem querer um nome!

Isto porém, como já disse, não prova senão a que misérias está sujeita a pobre humanidade.

Queria que me dissesse qual a razão por que quando um homem se eleva acima do comum, ninguém o conhece nem o chama pela enfiada de nomes com que o obrigam a carregar; por que é que se diz: Lamartine, Chateaubriand, e todo o mundo sabe logo de quem se trata?

Há gente que trabalha a vida inteira para conquistar um nome, que deixa em breve à humanidade, às vezes nas mãos de um descen­dente, que nem lhe pode com o peso, e o atira de lado para tomar outro mais leve e que mais lhe quadre.

E morre-se por um nome!

E morre-se para manter ileso um nome de honra! Nome de honra! Estas palavras invertidas dão: honra de nome, espécie muito comum e vulgar, cuja conquista não vale o menor trabalho.

Havia em Roma, perto do Coliseu, que dele tirara o nome, um colosso de mármore representando o filho de Agripina. A respeito desta magnífica obra de arte dava-se um fato muito curioso: cada soberano que subia ao trono dos Césares queria que o colosso servisse a perpetuar sua memória. Para isso o que fazia? Nada mais simples: mandava copiar em mármore sua cabeça, e fazendo tirar a que a estátua tinha primitivamente, colocava-se-lhe a nova sobre os ombros. Alguns Césares houve menos pretensiosos que fizeram apenas subs­tituir a cabeça do colosso por uma que representava o sol.

Aquele colosso e suas diversas cabeças representam com exati­dão o que se passa no mundo em relação ao nome das coisas: um capricho de César decide o batismo: o que era ontem verdade chama­-se hoje mentira, o que era ontem soberano chama-se hoje vassalo, só porque isto aprouve a uma seita ou a um homem.

Mas tudo vai como deve ir, e nem se pode dar que fosse de outro modo. O nome verdadeiro das coisas só Deus o há de dar quando a sua obra imensa se achar consumada: o nome há de então caber perfeitamente a tudo, porque há de compreender a essência e o modo; será a última palavra da Divindade, o selo da grande obra.

Enquanto porém este tempo não chega — e eu pressinto que ele está bem longe — vamo-nos servindo com o nome de empréstimo que temos; o que quero apenas é que não se lhe dê grande importância, porque em resumo o nome é a origem de quase todas as questões com que quebra a cabeça a pobre humanidade, e isso explica ainda a razão por que tanta gente se mete a questionar.

A.