A vida do velho prior passava na verdade dura e trabalhosa! Como todas as cousas deste mundo, o egoismo da tia Jeronyma não era acabado e completo, ou, para falarmos em estylo de philosophia fidalga, não era absoluto. O limitado e imperfeito é o signal que o Creador estampou na fronte do homem e na face da terra para nos recordar a todo o instante a nossa origem; é a barreira que elle alevantou diante d’este grande mysterio de energia e de audacia chamado a intelligencia. Sabedoria, força, paixões, affectos, tudo tem um horisonte commensuravel; horisonte para as virtudes como para a dor. O espirito mede e abrange o que ha mais vasto e profundo, os ermos, os mares, o coração humano; porque ao cabo d’isso tudo está o finito. Immensa, eterna, absoluta só ha uma idéa, que está fora do universo. Esta é a idéa de Deus.

Por isso, grande é somente Deus!

Mas dizia eu que o egoismo da tia Jeronyma era incompleto: digo mais; era incompletissimo. Quando o sacristão vinha alta noite quebrar o dormir risonho e variamente resonado do padre prior; quando á voz roufenha do ostiario aldeião, despertando o pastor para ir levar as consolações extremas á ovelha moribunda, e tira-la lá, porventura, dos dentes e garras do cão tinhoso, se ajunctava o trovejar ao longe da tempestade, o fustigar da chuva nas vidraças progressivas das meias janellas, e o ramalhar da ventania nos dous platanos do adro, era sem duvida que o resmungar da tia Jeronyma, apparecendo da banda da sua pocilga com a candeia mortiça na mão e as roupinhas vermelhas do envez, tinha o que quer que fosse repugnante e vil. A boa da velha pensava, acaso, que a morte não seria tão descortez que negasse ao espirito do pobre moribundo o tempo necessario para poder, ao abandonar o corpo, subir como chammasinha tenue, e galgar para o céu sobre um raio do sol nascente? Póde ser que sim. Não seria, porém, antes, que ella preferisse o deixar frigir por alguns seculos nas caldeiras do purgatorio aquella pobre alma christan, largando a sua veste mortal sem os ultimos sacramentos, á necessidade de erguer-se por noite fria e tempestuosa para tomar nos hombros uma parte da cruz do ministerio parochial? Tambem isto póde ser. O que se passava no abysmo da sua consciencia cousa era que ella não revelava a ninguem; mas em todo o caso era um pensamento egoista.

Todavia é preciso confessar que com elle se misturava um sentimento puro e nobre: dizia-o esse cuidado pressuroso com que a tia Jeronyma trazia as botas de côr terrea, o berneo de saragoça, o capote de barregana, o chapeirão oleado, e a aguardente de ginjas, sem um copo da qual o prior não ousaria transpôr o limiar da porta, e investir com as furias da noite procellosa: diziam-n’o a attenção com que mirava se elle ía agasalhado, e as mil vezes repetidas ponderações hygienicas, que lhe fazia com admiravel volubilidade de lingua. A affeição da sancta velha mostrava-se em tudo isso viva e sincera; e o seu resmonear, que no meio das idas e das voltas, e do perguntar e do responder, ía rareando e abatendo como o assobio do furacão pelo valle, perdia gradualmente a expressão de egoismo, e convertia-se pouco a pouco na de um pensamento moral.

E o padre prior calado!—­Calado enfiava as botas; envergava o gabinardo; cobria-se com o capote; punha o amplo sombreiro; enchia um copinho do excellente cordial que a boa da ama lhe havia posto diante; virava-o d’um golpe; fazia uma visagem fechando os olhos com força e estendendo os beiços; dava um estalído com a lingua no céu da bôca; exprimia o intimo conforto que n’elle gerára o ethereo licor com um brrahhh prolongado; estendia a pequena taça, cheia de novo, ao sacristão, que, mestre nos estylos de cortezia, se curvava formando com o corpo um angulo obtuso de noventa e cinco graus, despresadas as fracções, e arqueando o braço para levar o copo á bôca sequiosa, como se curva e arqueia um peralvilho de guedelhas sansimonianas e miolos de agua chilra, ao conduzir em sala de baile a deusa dos seus affectos de vinte e quatro horas ao meio do turbilhão doudo e (perdoe-se-nos a blasphemia) um tanto parvo das valsas e contradanças.

Depois duas palavras magicas saíam da bôca do reverendo pastor:—­“Até logo!”—­O seu effeito era instantaneo: o sacristão, pegando n’uma lanterna, com as chaves da igreja na mão encaminhava-se para o adro seguido do padre prior: a tia Jeronyma fechava a porta após elles; e o tentador, como se estivesse esperando por esse momento, travava-lhe novamente do espirito, e o resmoninhar da impaciencia recomeçava em breve, acompanhado do ranger do linho na roca, e do espirrar da candeia a espaços, e do respiro asthmatico do nedio gato do presbyterio, que, enroscado na lareira, abria de quando em quando os olhos amortecidos, e cerrava-os logo com philosophica indifferença, emquanto a tia Jeronyma esperava por seu velho amo, e se lhe apertava o coração sentindo o temporal que passava lá fóra, e lembrando-se de que o enfermo poderia ter guardado para hora mais decente e commoda a agonia do passamento.

E pela serra fóra, caminho de casal remoto, vae o velho prior: adiante o sacristão com a lanterna e a ambula da extrema-unção, e elle atrás com o ciborio. As poças de agua reflectem essa debil claridade que as alumia, e fazem um continuo plach, plach, debaixo dos pés dos dous caminhantes, cujo passo apressam as cordas de chuva batida pelos furacões do sudoeste. Os pinheiros balouçando-se gemem tristemente, e os enxurros, estrepitando pelos corregos, tiram com o pinhal uma toada soturna.

No céu profundamente negro não apparece uma estrella: na terra ao longe, bem ao longe, não se descortina uma luz. A natureza debate-se comsigo mesma: tudo dorme, entretanto, nos casaes e na aldeia, salvo o velho parocho e a familia daquelle que em trances mortaes espera o representante do Christo, que lhe traz as derradeiras consolações e esperanças. Entre a philantropia humana e as agonias extremas dos pequenos e humildes a noite e a tempestade ergueram uma barreira quasi insuperavel: esta barreira desapparece, porém, diante da caridade que a todos nos ensina o Evangelho, e que ao parocho impõem como dever imprescriptivel a sua missão sacerdotal e o seu caracter de pae dos pobres e affligidos.

A esta mesma hora, em que o velho prior assim vagueava por sendas alpestres exposto ás inclemencias de noite invernosa, talvez em aposento bem resguardado, no fim de ceia brilhante, entre as taças cheias de vinhos generosos, no meio de mulheres formosas e voluptuarias, embriagado em todos os deleites dos sentidos, algum famoso espirito forte cirzia remendos das paginas soporiferas d’Holbach ou de Diderot, e dissertava profundamente sobre a mandriice, egoismo e cubiça do clero, ou carpia a superstição do povo, que, para ser completamente feliz de nada mais precisa do que de abandonar as crenças do christianismo e de amaldiçoar as esperanças de Deus, o conforto unico da sua vida de miseria, de trabalho e de amargura. E naturalmente os neophitos daquella triste philosophia extasiavam-se em redor do sabio philantropo, que, impando de iguarias delicadas, de vinhos custosos, e de grossa sciencia, só lamentava a ignorancia daquelles a quem muitas vezes faltava então, falta hoje, e faltará de futuro um bocado de pão negro para matar a fome; extasiavam-se alli diante da sensualidade e bruteza de um insensato vanglorioso, emquanto a virtude do velho clerigo, exercitada nos desvios dos montes e no silencio da noite, não tinha por testemunhas senão um céu humido e cerrado, e o vulto impetuoso e bramidor da ventania; mas que, em vez das lisonjarias de parvos, tinha para o applaudir a voz sincera, consoladora e sancta da propria consciencia.

Havia, porém, no fim de tudo, uma differença entre o homem do evangelho e o da falsa sciencia. Era o systema das compensações. O padre prior, depois de cumprir com o seu dever, voltava ao presbyterio tranquillamente: tirava o capote alagado, despia o gabinardo felpudo, sacudia a uma distancia razoavel as ponderosas botas, e enfiando-se entre os grosseiros lençoes, atava o fio do somno no ponto em que o deixára; e emballado brandamente por sonhos apraziveis, só acordava sol nado e alto, ao bradar da tia Jeronyma, e ao cheiro da açorda fumegante; almoço que, como tudo o que era consagrado pelos seculos e pela tradição, elle profundamente respeitava.

E o nosso philosopho? O nosso philosopho, recolhendo-se alta noite, ía todo o caminho provando a si mesmo que não ha diabos no mundo, nem almas, nem talvez Deus; mas sentindo arripiarem-se-lhe os cabellos ao vêr dançar a phosphorescencia d’algum marnel, rezando o credo em cruz ao passar por algum cemiterio, benzendo-se ao ouvir piar algum mocho. E depois de se deitar e adormecer sonhava.... Em quê? Nas combinações infinitas da materia eterna de que deve, segundo as boas doutrinas, ter rebentado o universo? Não! Sonhava com as penas do inferno; e ao acordar pela manhan com defluxo, pedia confissão e sacramentos.

Já lá vão vinte annos! Bom tempo era esse, ao menos para mim, que ainda nem sabia da existencia do animal chamado philosopho, classificavel entre os rodentia, pelo medroso e damninho. Em vinte annos que voltas tem dado o mundo! Aquella especie vae-se acabando de todo. Auctores de comedias apressae-vos! Antes que se perca o typo, levae o incredulo ostentoso á scena. Dae-nos algumas noites de rir doudo e inextinguivel.

Os dias do padre prior corriam assim placidamente para o seu viver intimo, posto que o duro mister de parocho lhe entenebrecesse muitas vezes os horisontes da vida material. E que importava, se todos na aldeia lhe queriam bem; se todos o acatavam como a summa bondade, e o que não era menos, como a summa intelligencia da parochia? Até o barbeiro, o proprio barbeiro, homem entendido e grave em materias de eloquencia sagrada, não constava houvesse jámais torcido o nariz ás praticas e sermões do padre prior, que elle, com a mão sobre a consciencia, punha acima dos melhores de frei Timotheo, um fradalhão arrabido, cousa brava em gritarias ao divino, que por via de regra se incumbia das domingas de quaresma naquella freguezia e nas circumvizinhas com acceitação e applauso universal do auditorio, mas cuja fama era offuscada pelos periodos singelos do velho sacerdote, repassados de uncção, e daquella eloquencia de missionario, que, apesar de rude, lá vae fazer vibrar o coração do povo, afinado pela crença viva, como a harmonia que se tira das cordas de dous instrumentos accordes.

Agora por isso, o que será feito de frei Timotheo?! Era naquelle tempo um frade guapo e alentado! O que será feito delle? Se ainda vive, tiraram-lhe o burel e a corda de esparto, o seu capital; venderam-lhe o convento, o seu tonel de Diogenes; prohibiram-lhe o capuz e as sandalias, o seu direito inauferivel de andar trajado como lhe aprouvesse; e mandaram-no, desarmado de tudo isso, pedir para o mendigo a esmola que se dava ao burel, ao esparto, ao convento, ao capuz e ás sandalias. Bom passaporte para frei Timotheo transitar pela valla plebea do cemiterio nos braços morbidos e suavissimos da fome! Foi um progresso de civilisação, que se completou pelo lado moral com o augmento das loterias, das casas de cambio, e das traducções de novellas e dramas francezes. Bemaventurada a tão esperta nação que assim comprehende o progresso!

Duas cousas, porém, mais que as práticas e sermões, serviam para engrandecer e glorificar o padre prior, não só diante dos homens, mas tambem diante de Deus. Era a primeira o incansavel zêlo com que se applicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a concordia domestica, a prégar o trabalho, a guerrear a embriaguez, e sobretudo a sanctificar pelo casamento as affeições illicitas: era a segunda o fervor modesto e o innocente luxo com que procurava celebrar as festas religiosas, principalmente a de S. Pantaleão, orago da freguezia, e de quem tanto os aldeiões como o velho presbytero criam affincadamente possuir o metacarpo da mão direita, o qual devia ser de outro sancto, ou não-sancto, se acreditarmos (eu cá pela minha parte acredito) os parochianos da sé do Porto, que se gabam de ter debaixo de chave S. Pantaleão in totum, sem lhe faltar dedo de pé nem de mão, quanto mais um metacarpo inteiro.