Como a philosophia é triste e arida! Ás vezes, na primavera, o vento norte atira-se pelas encostas, tombando dos visos da serra, como se uma intelligencia vivesse n’elle, intelligencia de maldade e destruição. De noite e de dia os troncos das arvores torcem-se e gemem, as ramas açoutam-nos, e despedaçam-se involtas nos braços longos e flexiveis da ventania: o demonio do septentrião sibilla no meio dellas um zumbido entre de lamento e d’escarneo. Debalde o bosque estende saudoso por um momento os seus mais altos raminhos para o sol que se vae alevantando no oriente: a rajada despega de novo da cumiada da montanha; o bosque curva-se para o meio-dia; e galgando por cima daquellas mil frontes inclinadas das plantas gigantes, das rainhas magestosas da vegetação, os turbilhões da atmosphera agitada rolam pela planicie coberta já de relva entresachada das primeiras florinhas. Então, relva e florinhas murcham-se esmagadas pelas mãos da procella, que tudo alcançam, fustigam e desbaratam. Os carvalhos frondosos e as boninas rasteiras, com a fronte pendida para a terra, como outros tantos symbolos do desalento, não ousam ergue-la para o céu. É que, rugindo, a rajada cahe da montanha em perenne catadura. Ás vezes, como por brinco infernal, o vento finge adormecer um instante, e depois remoinha e apruma os topos das arvores e as corolas das flores, mas é para logo as vergar com mais força, e apupar com o silvo insolente aquella rapida esperança, que se desvaneceu tão breve.
E quando o vento acalma é para saltar ao ponente ou ao sul. A rajada já não silva da montanha: uma bafagem tepida vem da banda do mar; mas o ceu está toldado e o ar humido: o dia passa melancholico e pesado sobre a bonina que a nortada açoutou: ella não pôde saudar o sol no oriente: está pendida e murcha como a ventania a deixára. A noite vem encontra-la n’uma especie de torpor, que é existir, mas que não é vegetar, e ainda menos viver.
Como a florinha do campo a alma por onde passou a procella da philosophia, esse turbilhão transitorio de doutrinas, de systemas, de opiniões, de argumentos, pende desanimada e triste; e na claridade baça do septicismo, que torna pesada e fria a atmosphera da intelligencia, não póde aquecer-se aos raios esplendidos do sol de uma crença viva.
Com Kant o universo é uma duvida: com Locke é duvida o nosso espirito: e n’um destes abysmos vem precipitar-se todas as philosophias.
A arvore da sciencia, transplantada do Eden, trouxe comsigo a dor, a condemnação e a morte: mas a sua peior peçonha guardou-se para o presente: foi o scepticismo.
Feliz a intelligencia vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacille, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça! Para ella não ha abraçar-se com a cruz em impeto de agonia, e clamar a Jesus:—“Creio, creio, oh Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque eras humilde e virtuoso; porque filho da raça soffredora e austera chamada o povo, eras meu irmão, e não podias, tão bom, tão singelo, tão puro enganar teu pobre irmão. Creio, creio, oh Nazareno! porque até a hora do expirar na ignominia, até a hora da grande prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, oh Nazareno! porque tu só nos explicaste o mysterio desta associação monstruosa da saude e do ouro, do poderio e dos crimes a um lado; a da enfermidade e da pobreza, da servidão e da innocencia a outro; porque nos explicaste como os destinos humanos se compensavam além do sepulchro. Creio, creio, oh Nazareno! porque só tu soubeste revelar a consolação á extrema miseria sem horisonte, e os terrores á completa felicidade sem termo na vida, collocando no logar do destino a providencia, e do nada a immortalidade! Creio, creio, oh Nazareno! porque a intensidade do teu viver é um impossivel humano; a victoria da tua doutrina severa contra a philosophia e o paganismo um milagre; a gloria do teu nome de suppliciado maior que todas as glorias das mais altas e virtuosas intelligencias do mundo. Mas foste, na verdade, um Deus?”
Não, o animo vulgar que nunca vacillou na fé, que nunca discutiu o Verbo, nunca julgou o Christo, possuido do insensato orgulho da sciencia, esse não sabe a dolorosa oração do que pede a Deus o crer; ignora quanto fel encerra a interrupção contínua de cada phrase, de cada palavra daquelle tormentoso orar; ignora o que é atirar-se aos pés da cruz por um impulso quasi phrenetico do coração, sentir a voz gelida, pesada, cruel do entendimento dizer-lhe tranquillamente—quem sabe!”—e cahir desanimado no lethargo da duvida, d’onde muitas vezes bem tarde se alevanta o espirito, opprimido e quebrado, porque nelle pelejaram horas largas o instincto religioso e o demonio implacavel a que chamam sciencia.
A sociedade é bem injusta quando ás faces do desgraçado, que assim lucta comsigo mesmo, sacode o lodo da injuria, dizendo-lhe: —hypocrita!—porque escondeu aos que o rodeiam, não as certezas, que não as tem, mas as duvidas terriveis da intelligencia, e lhes revelou só as inspirações, os desejos, as saudades do coração! —Hypocrita?! Tanto como o que, havendo-se transviado da estrada e cahido em fojo profundo, dorido, coberto de pisaduras e feridas, e ensanguentando as mãos e o rosto nas urzes do despenhadeiro, lidasse por saír delle e voltar ao caminho suave e plano, e bradasse aos que visse ao longe:—“não vos affasteis para aqui!”—Hypocritas são aquelles que mentem aos que os escutam; que simulam a paz do descrer tranquillo, quando vae lá dentro o tumultuar das incertezas. Como Satanaz elles dizem que o inferno é o ceu; dizem que a irreligiosidade tem o segredo do repouso e da ventura, quando o que ella dá é inquietação e desesperança.
Feliz a alma vulgar e rude que crê, e nem sequer sabe que a duvida existe no mundo! Está certa de que além da morte ha vida; conhece as suas condições; conhece-as como lh’as ensinaram, como conhece as condições dos corpos. Para ella as noites não tem os pesadellos monstruosos, nem os dias as meditações febris em que o sceptico involuntario se debate na orla do possivel, que toca por um lado nas solidões do nada, por outro na immensidade de Deus.
Mas ainda mais feliz a intelligencia superior ás do vulgo, aquella que a Providencia destinou á missão do poeta, nos annos da infancia e da juventude, antes que o arido bafo da sciencia a queimasse passando por cima della! Nesse espirito e nessa idade a religião não está só nos preceitos e nos dogmas; está na natureza inteira. A alegria de Deus, o aspirar das fragrancias celestes, a toada suavissima dos hymnos dos anjos, descem a ella nos raios do sol quando nasce e quando desapparece; tremulam no espelhar-se da lua nas aguas; misturam-se no cicio das arvores; entretecem-se com os mil gemidos da noite; vivem nas affeições domesticas, e sanctificam o primeiro bater do coração pelo amor. Tudo então é viçoso e puro, porque a alma poetica lhe empresta viço e pureza. As harmonias moldadas, na virilidade, pelas leis das linguas e das escholas, são apenas um eccho frouxo desses canticos da meninice e da primeira mocidade, que se evaporam sem se escreverem, que são um oceano de delicias ineffaveis em que se embala mollemente a imaginação e o sentir do homem, a quem o mundo ha-de chamar poeta. Nessa epocha da vida elle não abstrahe do real para salvar verdadeira e intacta a sua idealidade: faz mais; derrama esta, que é a seiva intima do seu viver, pelo universo, e converte-o n’uma cousa formosa, sancta, ideal, que o mundo está bem longe de ser.
Depois vem outra epocha da vida, em que a felicidade é mentida, mas ainda é felicidade, posto que já eivada de vaga inquietação, de ambições desregradas, de esperanças mesquinhas e contradictorias. São os annos qnc precedem e seguem immediatamente os vinte.
Abrem-se ante nós os caminhos do mundo como uma conquista. Gloria d’artistas, poderio, opulencia, acções generosas e grandes, amor sem termo, amizade sem perfidias, vida multiplicada indefinidamente pela infinidade de affectos; que ha, emfim, que não sonhemos nessa epocha de fervente loucura? A innocencia morreu, a poesia intima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam; os applausos das multidões aos nossos hymnos descorados, que ellas ainda julgam energicos e brilhantes; applausos que nos desvairam: fica-nos uma philosophia orgulhosa e insensata, que se crê profunda, uma sciencia superficial, que se crê completa, pela qual dormimos tranquillos sobre a negação de todas as idéas mysticas, e de todas as lembranças de Deus.
Desta idade em diante é que chega o desfazer das illusões, até das illusões do orgulho. A poesia suave e pura da infancia e da puberdade passou: passa também o iris das paixões férvidas, das ambições insaciaveis, da crença na propria energia. Começa então o pardo crepusculo deste scepticismo, que, semelhante a herpes lentos, vae lavrando por todas as nossas opiniões e affectos, e os prostra e subjuga. Desde essa epocha a vida tem largas horas de tedio, em que o existir é uma carga pesada, porque nos falta um alicerce em que possamos firmar-nos; porque fluctuamos sobre as nevoas densas do duvidar de tudo.
O materialismo incredulo já tirou das phases espirituaes dos altos engenhos argumento contra a immortalidade. Com a sua logica miope persuadiu-se de que via as enfermidades e a decadencia da alma acompanharem as enfermidades e a decadencia do corpo; que via o entendimento cachetico esmorecer com a decrepidez; quiz que elle na morte ficasse perdido e annullado entre as cinzas da sepultura. Se o materialismo soubesse que a vida das summas intelligencias é a poesia, e que essa vida segue a ordem inversa do desinvolvimento physico; se conhecesse que a energia intima tem o seu apogeu nos annos debeis da infancia, e começa a desvanecer-se quando os orgãos se fortalecem, elle não teria achado a explicação do phenomeno nas suas tristes doutrinas. Nos destinos eternos dos homens iria encontrar a razão desse facto, que então veria á sua luz verdadeira. Os olhos da alma vão-se pouco a pouco ennevoando no meio das trevas do mundo: nesta atmosphera grosseira e corrupta ella resfolga a custo, e com o diminuir dos alentos diminuem-se-lhe successivamente os brios: cada dia lhe desfolha um affecto, lhe discute uma crença, lhe mata uma esperança, lhe traz um desengano cruel. Entre o espirito e o mundo partiram-se um a um todos os laços. Vós crêdes que a mente se definha, e ella apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrás do sepulchro.
Tomae-me esse octogenario tonto que foi um alto engenho: cavae no deserto do seu coração gasto e frio, e arrancae-me de lá uma daquellas paixões que ardem até o ultimo instante da existencia: vibrae uma corda das que lhe davam na idade viril um som estridente: dizei-lhe:—“teu filho querido foi arrastado ao tribunal como criminoso; espera-o o supplicio se não houver uma voz eloquente que o defenda: se ella se erguer será salvo; e tu foste na mocidade o mais eloquente dos homens!”—Dizei-lhe isto, e vereis esse engenho, que crêdes moribundo, atirar-se como um tigre ao meio dos juizes, e achar toda a energia dos vinte e cinco annos para defender aquella vida que a natureza ligou á sua pelas harmonias mysteriosas da paternidade. Se as palavras, se o orgão extenuado da linguagem não podér exprimir o pensamento daquella alma remoçada subitamente, o gesto, o olhar, os meneios substituirão a lingua, e se cansados e debeis não bastarem á violencia da idéa, o espirito despedaçará o quasi cadaver, e despedindo-se da terra provará que, se dormitava, não se extinguia, e que, despertando, partia o vaso fragil que já não o podia conter.
Tal é o destino da intelligencia neste breve desterro: dous dias conserva as recordações verdadeiras e puras da sua origem immortal: outros dous alumia-se ao fogo fatuo das paixões e esperanças: o resto delles revolve-se na lucta tormentosa das idéas, dos affectos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice, e a regeneração da morte.
Eu, que já vou áquem do marco, onde começa o terceiro periodo da vida humana, a sós ás vezes com as minhas recordações infantis, ponho-me a comparar o aspecto prosaico e triste, que tem actualmente para mim o universo, com as fórmas suaves e poeticas em que elle me apparecia involto nesses tempos dourados. É uma comparação amarga; mas a saudade que encerra consola do seu amargor.
Hoje a lua no crescente alevanta-se ao anoitecer de um dia sereno do estio, e estende o manto de lhama de prata sobre a face levemente crespa das aguas: os seus raios, transparecendo por entre o verdenegro das copas do arvoredo, que se balouçam somnolentas, descem tremulos sobre o chão pardo, e mosqueam-lhe a superficie como um dorso de panthera. A viração tenuissima da tarde passa e murmura um cicio quasi imperceptivel na folhagem. Em volta do circulo alvacento que o luar esparge no ceu, scintillam algumas estrellas no azul do firmamento, que parece o leito recamado de saphyras em que se reclina a rainha da noite.
Ha quinze ou vinte annos uma tal noite tinha para mim um sem numero de mysteriosas harmonias, que eu não sabia explicar, mas que sabia sentir. Agora sei dizer-vos o que é a lua, a sua luz refracta, a noite, a viração, o vulto das aguas encrespadas, as estrellas, e as solidões do espaço; mas o que eu já não sei é verter lagrymas de ineffavel contentamento, que se me escoavam tepidas pelas faces ao contemplar as harmonias immateriaes e intimas, que vagavam pela atmosphera tranquilla, como uns echos longinquos de harpa angelica, tombando de astro em astro até se derramarem na terra.
Dae-me uma nota só dos canticos que eu então escutava; dar-vos-hei em troca toda a minha estupida e inutil sciencia!
Mas essa epocha da vida não voltará mais, porque não póde retroceder uma unica onda do rio impetuoso do tempo! Depois da taça do mel esgotada resta a do absinthio. Que se resigne e espere aquelle que vae devorando os dias da duvida e do desalento. Chegará a hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a da morte. A Providencia foi ainda generosa comnosco, consentindo-nos que a espaços affastemos dos labios o calix do fel, e deixando que nestes momentos rasguem o nosso longo e tedioso crepusculo alguns raios transitorios de luz. A memoria é o instante de repouso, e a saudade o clarão suave que nos illumina.
Recordar-se—consolar-se.