Também não passei má vida e jamais passei pelo receio do pente de bichos, que foi traste que nunca lhe foi à cabeça. Mas vi-me ao princípio num perigo iminente. O Pai da tal minha Senhora contratava em pedras[1], e esmorecia pela filha, de forma que em ela lhe doendo um dedo, doía ao pobre homem o corpo todo. A rapariga entrou a queixar-se, uma vez dores de cabeça, outra vez moimento do corpo, depois espinhela caída, constipação &c. Entraram a dizer que eram lombrigas, mas passados alguns tempos que a moléstia eram calos, e com efeito eram, que os pregou ao Pai de maço e mona. Assentaram os peritos que era preciso banhos. A menina, que estava com apetite na receita, quis logo ao outro dia tomá-los. O Pai opôs-se, dizendo que era preciso preparar o corpo. Veio o mezinheiro e disse que o preparo do corpo para tomar os banhos era despir a camisa. A menina conveio nisso e, no outro dia, apresentou-se no mar. Depois de mil bichancros e ridicularias do costume, como por exemplo: Está muito fria! Ai, que me mordeu um caranguejo! Meti uma ostra num pé! Não posso tomar o fôlego! Ai ...! Ai...! quem me acode! Perdi o fundo! etc., e outras coisas deste mesmo calibre, apresenta-me com a cabeça debaixo da água. Agora o verás: nunca me vi tão quente, apesar da água estar fria. O que me valeu foi uma coifa que a tal Senhora levava, quando não, alguma barriga de linguado me esperava. Quando me vi fora da água não o podia crer. Mas, passado este primeiro susto, reconheci em mim mais agilidade, desembaraço de cabeça, apetite de chuchar e vim no conhecimento que muita gente melhora tomando os outros o remédio.
Enfim, botei o medo para trás das costas e continuei nos banhos e cheguei a estar tão gordo que de gordo estava feio. Meus companheiros e amigos me desconheciam. Mas isto durou pouco tempo porque o Pai entrou-se-lhe a meter na cabeça que os banhos da filha lhe haviam dar nele, proibindo-lhos, sendo o prelúdio desta proibição meia dúzia de bofetões bem puxados que a tal Senhora recebeu com desgosto, apesar do Pai lhos dar com a melhor vontade. Mas isto a mim não me importa, nem tem nada com a minha história.
Assim fui vivendo até que um dia meteu-lhe o diabo na cabeça o lavá-la com aguardente. Bagatela. Julguei que dava a casca. Fiquei tão atordoado que, quando tornei a mim, não sabia onde estava. Tremiam-me as pernas, andava-me a cabeça à roda, amargava-me a boca, não fazia senão espreguiçar-me e eu cuidei que tinha uma maligna às costas. Mas não foi nada. Melhorei e melhorei celebremente por uma casualidade. A moléstia, que me tinha ficado desta bebedeira, eram afrontamentos e uma espécie como de asma. Faltava-me o ar de forma que, estando na cama, julgava morrer de aflição. Mas pouco durou isto.
Um sujeito que tinha vindo de viajar[2] agradou-se da menina. E, como o Pai lhe fechava a janela logo à noite, ela tomou a rebendita de a abrir pela meia-noite e punha-se a falar até às duas e três horas com o tal suplicante. Isto foi o que me deu vida a mim, e a ela. Aquele fresco que tomava, inteiramente me restabeleceu. A fala, já se sabe, que era para bom fim. Ajustou-se o casamento. Concluiu-se e a noite do noivado jamais me esquecerá. Tive um trabalho incrível. Em que lhes havia de dar a essas duas criaturinhas! Começa o marido, com o dedinho, a catar a cabeça da mulher. Eu que percebo isto, e o perigo em que estava, passo para a cabeça do marido. Passado um instante, larga o marido a catadela e salta a mulher a catá-lo. Torno para a cabeça da mulher e assim passaram toda a noite e eu aos saltos de cabeça em cabeça. Pela madrugada descansei alguma coisa mas protestando de me safar apenas pudesse, o que concluí no dia imediato, deixando-me ficar na cabeça do marido que, indo fazer a barba, me passei para a cabeça do barbeiro e aí fiz a minha