Tendo-me ocupado em algumas coisas sérias, nunca me renderam nada. Eu, que sempre fui muito inclinado a traduzir línguas alheias, ainda que, a falar verdade, não sei muito bem a minha, encontrando este manuscrito em poder de um Mouro, que esteve cativo em Argel, e achando os caracteres muito estranhos, porque alguns pareciam-me caranguejos, fui desenganado pelo dito Mouro, mas debaixo de muito segredo, (e o mesmo peço a todos, que este lerem) que era língua piolha, obra anti­quíssima, feita no tempo em que se inventaram as esteiras. E todos sabem que as esteiras é invenção dos Orientais, e que ainda hoje são as suas camas.

Esta obra foi achada numa terra que ainda se não descobriu, mas que brevemente se espera esteja descoberta.

Pode-se supor qual seria o meu trabalho a traduzir uma língua que nem por Microscópio se vê e que não tem Dicionário, ainda que no fim desta obra eu darei um à luz, parto de nove meses do meu engenho. Mas, enfim, consegui-o, e estou tão senhor dela, que será muito difícil ao Piolho mais esperto enganar-me. Eu os desafio a todos em campo raso, e sem cabelos.

De toda a obra, o que me deu mais trabalho foi a tradução dos versos que se acham espalhados pelo corpo dela, e que constam de uns amores que teve o Piolho com uma Lêndea, e a paixão que teve por uma rapariga indiana de quinze anos, em cuja cabeça viajou seis meses, e uma Elegia à morte do Piolho, Autor desta obra, feita por um Piolho seu amigo. E é pena que eu não pilhasse mais obras deste Autor, por­quanto lhe achei muita novidade, como lerão os meus Leitores, senão com aquela força que a língua Piolha tem, ao menos com toda aquela que lhe pude pôr. E eu não sou nenhum galego de pau e corda, antes sou bastante débil, por cuja causa peço esta desculpa.

A língua Piolha é toda a mesma, ainda que sejam diferentes as Na­ções, com a única excepção que os Piolhos das Amazonas fazem dos bre­ves, longos. Esta língua não tem nenhuma Ortografia; usa de pevide, como as Galinhas e foi providência isto, pois se falasse tudo o que entendesse, e quisesse, não haveria língua mais impertinente. Quando a ver­dade é guia, a linguagem é a da natureza: tal no Piolho, que escreveu esta História, pela clareza de modo de explicar-se e simplicidade de termos. Seguiu o génio sem forçar e todos deveriam assim escrever. Creio que tenho dado a clareza que basta para conhecimento da minha tradução e trabalho; e a grande utilidade que tirará em a ler aquele que a ler andar aprendendo; pois como a obra é grande, e de todas as semanas, será muito rude se não ficar sabendo letra redonda, e sem escrúpulo se lhe poderá chamar um redondo...

A murmuração
É quente de Inverno,
Fresca de Verão

Guilganguetas na Sua História dos
Camafeus, liv. 100, p. 30000, 1. c.