A Criadinha era uma cabecinha e mais alguma coisa. Tinha sete CC. Criada, coxa, chamava-se Clara, era clara de pele, caridosa, casadoira e tinha uma cara de páscoa. A criadinha valia um reino. Até sabia assobiar. Tinha-lhe ensinado um que alugava seges no tempo em que trazia cinco ao socairo: um moço de casa, um moço de rua, um vizinho que contratava em aparas, um primo (traste que nunca falta a estas senhoras) e um, a quem ela era mais agarrada, e que negociava em coisas alheias. Tinha ela todas as prendas de uma boa criada: escutava, era lambareira, gulosa, bebia o primeiro caldo da panela e mentia sempre. Resto de vinho, era seu. Se achava algum dinheiro por cima de uma mesa, não punha escritos pelas esquinas. Vestia a roupa das amas, quando saía fora. Tinha a sua pobrezinha de todos os sábados a quem dava esmola do que era seu; a qual também lhe servia de lhe levar algumas coisas e de lhe trazer outras. Tinha uma amiga que lhe lia as cartas e lhas respondia, pois tinha a desgraça de não saber ler nem escrever. Mas sempre há gentes que façam bem, principalmente quando as coisas são para bom fim. Sabia jogar o truque, a douradinha, a bisca coberta e o estenderete. Era respondona de todos os quatro costados e, se tivesse cinco, de cinco o seria. No seu tanto, bastante enxovalhada. Se lhe davam roca para fiar, fazia dela travesseiro porque achava o linho macio, quero dizer, dormia (eu, enquanto não falo claro não estou descansado). Se falavam na vizinhança, não pregava olho. Sabia a história da carochinha e a das três cidras do amor. Andava aprendendo a do drago de que já sabia mais de meia. Tirava também o quebranto. Quando havia de trabalhar, dormia, e quando havia de dormir, trabalhava. Sabia o punho punhete e a vassourinha. Era uma boca de risos para todos e dava à taramela um dia inteiro. Falava todos os dias em que era muito pouco o ordenado que ganhava, que se não fora o muito amor que tinha ao moço (queria dizer, às meninas) há muito tempo que já ali não estava. Se pilhava alguém de fora, dizia mal dos da casa. Aos da casa dizia mal dos de fora. Sempre andava caindo de fome e dizia que a ama era uma unhas da dita. Na sua boca ninguém havia bom. Tocava berimbau, cantava a comporta e sabia bailar o fandango. Se lhe dissessem que entregasse um escrito não dizia que não porque era muito bem mandada. Tinha flatos histéricos. Sabia arremedar. Contava a vida de seus pais e mais não era muito para contar. Praguejava contra um irmão que lhe tinha comido meia moeda mas tinha um primo que lhe devia vinte mil réis e não lhe davam cuidado. Tinha as suas devoções muito boas, jejuava de tudo o que era saber servir bem. Mas não é só esta que vive do seu ofício sem o saber. Fugia de defuntos e chegava-se para vivos. Ia, de tempos a tempos, a casa de uma amiga levantar a espinhela, moléstia que a perseguia muito a miúdo. Punha o seu bocadinho de cor e trazia um bocado de espelho na algibeira. Não se levantava vez alguma que não se chegasse à janela. Pela manhã, sempre se erguia depois de a terem chamado cinco vezes ou mais. A noite nunca era preciso mandá-la deitar. Pedia o pão-por-Deus e as amêndoas a todas as pessoas que vinham a casa. Andava sempre a ralhar com o moço e a dizer mal dele, mas o melhor bocadinho era para o dito, para que não dissessem que era odienta. Nunca lhe caiu candeia que tivesse azeite, nem quebrou prato que não fosse à rua sem ninguém o saber. Sempre as amas tinham pior génio que os amos. Com eles, toda a vida mas com elas, nem uma hora, era isto do costume. Queixava-se que nunca lhe tinham dado uma figa e que se o tinha, com o suor do seu rosto o tinha ganho. Pedia à ama que quando ela casasse houvesse de ser sua madrinha. De quando em quando dizia com voz baixa, mas de forma que o amo ouvisse: — Forte bondade do Senhor! Nem sei como ele atura tal!
Tinha vinte e dois sestros e o comer fazia-o insonso e, se se queixavam, no outro dia vinha salgado. O seu gosto era ouvir cantar a desgarrada a uns aguadeiros que moravam defronte e tocavam, num maxinho, um vilão sem ser ruim, que a ser ambas as coisas não se poderia aturar.
Eis aqui os costumes da minha bela criada, isto é, pelo alto, porque a mim não me pode lembrar tudo. Falta o melhor e o mais bonito. Ainda eu lhe não falei nas prendas porque ela não sabia fazer meia. Cosia mal, queimava tudo que engomava. Botava a perder o comer. Mas, para isso, ganhava só cinco moedas e meia, coitadinha! E, sendo assim, aturavam-na porque não achavam outra. Então havia falta deste género e, lá na Ásia, todos querem ser servidos. Por isso não há quem sirva e, mesmo a respeito do género criadas, o que havia bom acabou-se e o que não presta tem muita extracção.
Eu estava aborrecido da tal cabeça porque isto era Inverno e a tal menina, em sendo uma hora da noite, era então que lhe dava de se pôr à janela para falar com um seu parente em coisas que a mim não me importavam. Até que chegou um dia, véspera de São João, e quis ela comprar umas alcachofras. Mas as amas não consentiram. A noite, não se queria deitar porque queria fazer umas nigromancias com um ovo, as quais eu não pude perceber como eram, mas sei que era coisa que respeitava a casar. Ela, picada disto, no outro dia despediu-se e foi para casa de uma mulher que contratava em moças de servir. Dava umas, tirava outras. Mas eu adiante falarei desta linda mulher pois foi para a cabeça para onde eu passei porque a tal criada não esteve lá mais de cinco dias. Foi servir para a casa de uma engomadeira e eu não quis ir com ela. A tal mulher, nesse dia em que ela foi, esteve-a penteando e dando-lhe conselhos e eu, nessa ocasião, fui-lhe ao casco que é a minha carapuça XLI.