Se eu sei que o Galego era de canga eu não ia à tal cabeça por coisa nenhuma. Porque eu sempre fui muito tentado com a cova-do-ladrão, o que aqui não podia fazer senão de noite, pois de dia era um lugar de muito risco para amor do chouriço. E, demais a mais, o tal cuidava na cabeça e não deixava de ser pressentido. E, então, nunca se embebedava, e até era impossível, porque ele bebia o seu almude sem tirar o chapéu e um quartilho, que bebesse de água, já estava doente. Mas em toda a sua vida só uma única vez o esteve. Era muito amigo de vinho, sem o qual nada fazia. Quando veio da terra, tinha-lhe dito o pai que nada fizesse sem lhe pagarem, que tivesse cuidado em o não enganarem. E tomou tão bem a lição que, na vinda, tendo apenas oito anos, encontrando um homem a cavalo que teve dó dele pelo ver a pé, e tão criança, perguntando-lhe para onde ia e respondendo-lhe que para Lisboa, lhe disse: — Queres tu vir a cavalo comigo? — Sim senhor, lhe respondeu ele, muito contente. — Mas vossa mercê quanto me dá? E como o homem teimou em lhe não dar nada, pois que bastante era o benefício que lhe fazia, ele também teimou e antes quis vir a pé que a cavalo, não ganhando nada. Daqui podem conjecturar se teria dinheiro ou não. As suas funções consistiam em vinho e era um dos maiores devotos deste licor. Nunca quis amo certo; quem sucedia, quem pagava mais e antes queria três vinténs que meio tostão. Por dez réis deixava um freguês. Comprava uma ração a um donato por meia moeda por mês e comiam três dela. Quando eu lhe passei para a cabeça, tinha ele comprado fato novo e cama, tinha cortado o cabelo e era a segunda vez que fazia a barba. Andava trabalhando na obra de umas polainas que esperava acabar dentro de um ano e que eram as mais historiadas que eu tenho visto. Tinha já as suas quatro camisas e, mandando para a terra dinheiro por três vezes, estava-se aprontando para lá ir só para o fim de dar uma maçada na mulher por ter emprestado a burra a um primo para a jornada de uma légua. Acabado este negócio, voltava. O que lhe dava tanto cuidado, — que muito pouco dormia —, na consideração de que o andava ganhando e mourejando para o primo lá lhe montar na burra. Um amigo é que foi causa disto, que lhe veio meter estas onzonas na cabeça. Nunca ninguém lhe pilhou um recado de graça, ainda que fosse freguês de ano. Só uma única vez lhe vi perder quinze réis ao pilha e, vinte e cinco ao truque e dois vinténs que botou de sortes, e por um és-não-és que não se enforca. O que lhe valeu foi não ter corda de graça. Pediam-lhe oito vinténs por uma cordinha que não era suficiente. Deixou-se disso. Comprou um pandeiro por trinta réis e era o seu divertimento. Mas não tocava diante dos amigos, tangia sozinho e dizia a isso: — Se se querem divertir, que gastem, que também eu fiz o mesmo.

No que ele andava com muito gosto era em comprar um relógio e andava no ajuste de um que lho davam por três mil e duzentos. Mas era um relógio muito criança, ainda não andava, só se andassem com ele. E já prometia três mil réis e deu arrancos quando os prometeu, porque reflectia: — Com três mil réis compro eu uma quinta com sua estrebaria e tenho quinta e casa. Mas o relógio era só para dar figas aos da sua freguesia, porque só o Abade e um tal Alonso é que o tinham. Eu andava com muito medo da tal ida à terra e andava fazendo todas as diligências para me safar. Mas não era possível pilhar ocasião porque, na tal casa, aonde assistia, não havia senão companheiros do mesmo lote e ofício e o tal tratante do jogador. Mas lá a essa cabeça não tornava eu nem que me matassem. Se eu lhe tinha um ódio mortal! Enfim, nesta espera levei um bom par de dias sempre à espreita de uma nova cabeça, sem ser possível encontrá-la, e a jornada cada vez mais a aproximar-se, de forma que eu já tinha botado o coração à larga e resolvido de ir até à Galiza. Neste tempo recebeu o Galego uma carta da terra em que lhe pediam que levasse um freio para a burra, umas campainhas para os bois e alguns pregos para segurar tacões. Entra-me o amigo com estas compras e trava-se de amizade com um ferro-velho que também era muito boa vasilha. Era ferro-velho de ofício; era velho de idade e sabia-lhe a boca a ferro velho. Entre as compras e os beberes fiz eu a minha passagem, e com ela a minha