Vou falar de um estudante que tendo os seus trinta e cinco anos, tinha gasto trinta nos estudos, como vou a dizer.
Seu pai, que não se tinha descuidado na sua educação, apenas lhe contou cinco pregou com ele na escola. Tinha tanta habilidade e aplicação que aos catorze sabia ler, escrever e as quatro espécies. Louvado seja o mestre que tanto trabalho teve com ele! Passou para o Latim onde estudou os seus dez e, para alcançar o passe houve muitos empenhos, apesar de que o mestre pôs-lhe um passe. Foi para o Grego e aí fez maravilhas. Ficou um grego perfeito. E, então, em muito pouco tempo! Só em seis anos. Na Retórica andou três e na Filosofia dois. Passou para a Universidade, foi reprovado em tudo. Vendo-se tão adiantado, deixou-se de estudos e ficou com a alcunha de estudante que bastante lhe custou, que para a adquirir gastou todo o tempo que disse. Daqui se pode julgar que não era qualquer cabeça e muito tentado com livros. No dia que eu lhe passei para a cachimónia, vendeu ele a Prosódia e o Quintiliano para comprar Bertoldo, umas comédias e umas pinturas do jogo do pau.
A mãe morria por ele e dizia que juízo como o do seu Michael não havia, que estava muito adiantado, que era a sua consolação. Que já não se lhe dava o morrer pois que via o pequeno naquele estado. E ela tinha razão, que ele em algumas coisas ninguém lhe punha o pé adiante.
Quantas vezes chamava ele tola à mãe e ela respondia a rir-se: — Ele que o diz bem o entende. Ela tinha tido muito cuidado na sua educação mas ele também lhe pagava bem, essa é a verdade.
Sabia todos os jogos: Pião, bilharda, concora, passarás-não-passarás, escondidas, bassourinha, punhete, carapeta-da-sécia, chinquilho, lasca, truque, covinha, chapas, seve, oito-primeiro-que-treze, quinze-nove, pacau, burro, o estenderete, &c.
Vamos agora a habilidades de mãos. Sabia Moer taco, fazia rabos-levas, abanicos de papel, seges, gaitinhas, bonecos, corações, moinhos de vento, casas de papelão &c.
Agora as dos pés: dançava o solo de London, sabia cortar calos, dava o seu coice, bailava as tripecinhas, punha-se nos bicos dos pés, sustinha-se nos calcanhares, &c.
Agora de corpo: catava o seu piolho, matava a sua pulga, apertava o seu percevejo e assoprava depois os dedos &c.
Da cabeça já dei conta dos seus estudos e não pode haver de tudo. O que falhava na cabeça supria bem no resto do corpo. Nem todos são para tudo. Que culpa tem ele do pai lhe mandar ensinar coisas para que ele não tinha jeito? Todos nascem com uma propensão e o caso está em acertar-lhe com ela. Os pais têm a culpa de torcer as inclinações aos filhos. Se o pai do meu estudante o põe logo a garoto, que assombro que não seria! Vejam lá! Ele sem educação nenhuma para este fim quanto estava adiantado.
Tinha condiscípulos que não sabiam senão metade, qual quê metade! Apenas sabiam o que os mestres lhes tinham ensinado. Mas cá destas artes do meu não pescavam nada. Tinham seguido os estudos com brio, tinham feito a vontade a seus pais. Estudavam na carreira de serem úteis à Pátria. Cá, não senhor, seguia outro trilho. Recolhia-se pelo meio da noite, não jantava em casa, zombava do pai, ralhava com a mãe, dava nas irmãs. Isto era outro melro, era capaz de tom. Taful, moço de gosto, tinha amigos, conhecia muitas senhoras, tinha sociedade, bebia as suas quatro garrafas, cachimbava, etc.
Tinha distribuído tão bem as horas do dia que nunca tinha que fazer coisa que lhe fosse útil, nem a si, nem aos seus semelhantes. Que rapaz! Que moço! Que pérola! Então o pai e a mãe concorriam muito para isto e estavam tão contentes por verem a esperteza do pequeno que, às vezes, dizia o pai: — Parece impossível que este rapaz saiba tanto sem ter estudado nada. Replicava a mãe: — E que amigos que ele tem adquirido! Conhece meia cidade! Ele, se casar, há-de fazer boa escolha, que ele tem juízo. Tornava o pai: — E é o que eu desejo ver, para assentar. — Pois não!, triplicava a mãe, ele está uma criança. Com estes louvores, o rapaz crescia a palmos e os vícios às varas. Mas todos andavam contentes e satisfeitos, que era o principal.
Um dos amigos entrou-lhe a meter na cabeça que visto ele ter jeito para tudo, que faria bem se aprendesse a lapidário, visto ter lapidado tão bem os pais e a falta de meios para sustentar os vícios. Porque o cabedal dos pais estava expirando, pois que tinha sofrido uma moléstia todo este tempo.
Não teve muita dúvida, mas faltava-lhe o ânimo, e ele mesmo dizia: — Eu, por astúcia, sou capaz de furtar um milhão, mas cara a cara, pôr uma faca aos peitos duvido que saia bem. O certo é que muitos, se não furtam, não é por falta de ânimo.
Enfim, a precisão crescia, o caso era sério, resolveu-se à vida e já sacava o seu lenço com a maior limpeza do mundo e isto sem mais estudos. E dizem que é preciso estudar! História! Tomara-lhe eu jeito e propensão. Isto de livros é uma seca e não deixa nada. Quem burro nasce, burro fica. Nem eu sei de que sirva um homem ter uma grande livraria. Ouvi dizer uma vez, a um de muito boa cabeça, que tinha comprado, por doze vinténs, um livro de novelas cujo lhe servia para ler. E lhe servia para toda a vida, era o caso. Dizia ele: — Quando eu chego à última página do livro já me não lembra nada do principio e quando torno a começar não sei nada do fim. Então para que preciso eu mais livros que um?
Isto é que é ser um homem arrazoado e de juízo. De que diabo serve estar a ler, a ler, se eu não entendo o que leio, se me não fica nada na cabeça, ou, se acaso fica, e entendo, não sigo as máximas úteis e honradas? Quanto a isto, louvo eu o meu estudante, que não se cansava em coisa de que não tirava utilidade.
Mas que péssimo costume que eu tenho de escrever, que fujo da estrada para ir meter a cabeça nas casas alheias e depois entrar a badalar! Hei-de vencer a poder que eu possa!
Enfim, furtava o seu lenço, já ia metendo as mãos nas algibeiras sem o sentirem e o negócio ia dando de si. Mas tudo tem seus contras. Um tolo, que se chamava seu amigo, e que lhe soube da prenda entrou a aconselhá-lo. Que aquilo não era vida. Que se emendasse. Que podia dar desgostos a seus pais, etc.
Gabo-lhe a pachorra. Perguntara eu a esta gente para que se metem com as vidas alheias? Que lhe importam que cada um seja ladrão ou não seja? Para que metem a foice na seara alheia? Quando a gente quer um conselho, paga-o. Se o pede a um amigo, escusa-se, dizendo: — Mais sabe o tolo no seu que o avisado no alheio. Quando a gente não o pede nem o quer, então vêm estes abelhudos dar a sua colherada. Que lhe importa a ninguém se eu tenho bons ou maus costumes? Cada qual enterra seu pé como pode. Metam-se lá com a sua vida. Catem-se, que não lhes há-de faltar que espiolhar. Está forte a história! Sempre tive aborrecimento a gente entremetida.
O tal amigo, com estes conselhinhos, entrou a suster o meu estudante que, receoso de que isto passasse de boca em boca, pôs-se a caminho, andando por diferentes terras, vindo a parar na casa onde eu pela primeira vez o vi e lhe ferrei o dente. Os pais não tardaram muito atrás dele pelo muito amor que lhe tinham e pelas saudades que lhes apertavam. De novo se ajuntaram e aí é que soube quanto tenho dito.
O estudante tomou amizade com um velho de bom tempo, boa têmpera e bons miolos. E desde que ganhou este conhecimento, eu tive sempre vontade de lhe ir à cabeça. Ainda que ele não tivesse muito cabelo, eu tinha muito apetite em lhe ferrar.
Um dia que passaram por mar para ir a uma função, o estudante enjoou, entrou a lançar fora. O velho segurava-lhe a testa, em cuja ocasião eu lhe passei para a cabeça e é ela a causa da minha.