A grande arte de mentir é a que entre todas as mais tem tido mais aceitação. Ela tem chegado ao último ponto da aceitação, tem sido adoptada por todas as nações com diferentes nomes. Apenas temos uso da razão, já nossos pais no-la vão ensinando com todo o cuidado e vigilância e insensivelmente nos entranhamos nela com tanto gosto que uma pequena conversa, quando não é marchetada com trezentas ou quatrocentas mentiras, é o mesmo que comer sem sal: não tem graça alguma e, a poucos passos, estão todos a dormir.

Uma criança apenas nasce é logo lançada para fora dos braços de sua mãe e da sua ternura. A ama, que toma conta dela, a julga uma carga que só a dinheiro se pode suportar. Dá-lhe o peito bem como uma cabra que foge do mungidor, apenas lhe larga a teta. Assim é a criança arrancada do carinho de sua mãe a qual, quando a cria, ainda depois a ver satisfeita e lhe ter largado o peito, a afaga, a une a si e a beija e entre meiguices dorme. E isto também nutre os filhos. As avessas, nos braços de uma ama, que logo a lança no berço, com um pé a embala para não perder a fiadura e a pobre criança é acalentada com os seus mesmos choros.

Tendo sido criada sem amor, chega a casa dos pais, estranha-os e antes quisera tornar para onde foi mantida, apesar do desalinho e indigência, só pelo nome de filha que a ama lhe dava e continua a dar, enquanto chupa alguma coisa da casa.

Chegada à idade dos cinco anos fica entregue ao cuidado de uma criada, porque a mãe não tem lá tempo para essas coisas. Tomara ela tempo para pentear-se, jogar e tratar de algumas modas. A criada vai-a tratando à proporção do ordenado. Por consequência vai sendo muito malcriada, teimosa, enxovalhada, gulosa &c. Mas a criada diz a isso: — Se aos pais não lhe importa, que farei eu, que a não pari nem vi nascer? Chega à idade de sete anos e a pobre criança não ouve senão mentir. Os criados dão Senhoria aos pais e é mentira; dá-se dom a uma amiga, e é mentira; procura um credor o pai, diz-se-lhe que não está em casa e é mentira, que ele está-se penteando e divertindo com o cabeleireiro que lhe está dando notícia das moças do bairro e, no fim, pede-lhe para tomar neve e leva o seu cruzado-novo. E o credor vai andando, que não leva real. E se quiser refrescar a boca, há-de ir beber a um chafariz porque a caridade vai estando tão apurada que já em qualquer parte onde se pede água se nega com toda a frescura. Já lá vai o tempo em que água, sal e lume era comum de todos, a qualquer parte onde se chegava. Hoje, o que se encontra de certo a cada porta, são dois ou três cães que ladrem e que botem uma perninha abaixo, de que o dono e os vizinhos se riem muito por verem a esperteza e a galantaria do cão. Algum dia só uma quinta tinha cão, que era preso de dia e solto de noite. Ou alguma casa rica para lhe guardar o coscorrilho. Agora, não senhor, já os cães não guardam as casas. Os donos e as donas é que guardam os cães.

Ora eu, agora, merecia unha! Que disparates que tenho dito! Que tem nada disto com o mentiroso de cuja cabeça trato? Eu sempre sou bem fastidioso a ler. É preciso muita paciência para me aturar. Vejam que embrulhada fiz para dizer que um homem mente! Meus senhores, perdoem, valha-me a indulgência de piolho e de piolho autor, e de autor novo. E agora vou a falar no réu mentiroso, sem me apartar mais dele.

Se as mentiras tivessem extracção por dinheiro para outras terras, que negociante não seria este! Que carregações não faria! Mas graças para sempre, já ninguém precisa deste género e todos se vão remediando com a prata da casa. O tal amigo era solteiro. Quando se lhe ia um criado (que ele era de tão bom génio que nunca os despedia e, apesar disso, era tão desgraçado que o mais que lhe duravam eram dois meses) e vinha outro, perguntava-lhe logo: — Sabes escrever, bolear, fazer chocolate e limpar botas? — Sim senhor, respondia o moço (que às vezes, ou quase sempre, ou sempre, era um refinado velhaco com o sobrenome de brejeiro e o cognome de ladrão, sem haver aqui mentira nenhuma, porque sou eu que falo, não é o mentiroso). — Muito bem. Eu costumo dar, cada mês, oito mil réis a seco. (Mentira, que não lhe dava senão o seco e por isso lhe não aturavam). O fato velho é todo teu, e o calçado, isto é, depois de me teres servido os primeiros três meses. (Mentira, porque não o serviam mais que um ou dois). É preciso que me entendas pelas acções que eu não gosto de falar muito. Por exemplo: procura-me um homem que me traz um pouco de dinheiro. Se tu me vires de beiço caído, não estou para lhe falar e tu deves logo despedi-lo. (Mentira, porque quem o procurava era para pedir-lho, que ele era tão desgraçado que ninguém lhe devia nada). Procura-me uma rapariga que não é feia. Deves logo dizer-lhe: Eu não sei se lhe poderá falar, veio agora um rendeiro trazer-lhe dinheiro e está a contá-lo. Mas eu lhe dou parte. Finges que vens dentro e manda-a entrar. Percebes o que te tenho dito?

— Sim senhor, já o outro amo donde eu saí era o mesmo. — E então porque o deixaste?

— Porque não me pagava.

— Isso não há-de a ti suceder comigo. (Mentira, que é o que sucedia a todos. Estava tão costumado a mentir e a negar que negava quantas dívidas tinha e uma só vez na sua vida não tinha falado verdade, à excepção do dia em que eu lhe fui à cabeça, que se chamou tolo a si mesmo).

Era de uma boa família e todos sabem que quem não mente não é de boa gente. Já seu quinto avô mentia, e dele até ele não tinha havido quebra na geração.

Estava uma tarde à janela, passaram dois amigos e perguntaram-lhe se morava ali. Respondeu-lhes logo que não, só por mentir, e mais precisava de falar a um deles. Mas para não perder o costume não disse que sim.

Perguntou-lhe um dia um padre se sabia ajudar à missa; disse-lhe que sim, e era mentira, que mal a sabia ouvir. Pediu-lhe que lhe fizesse mercê e o pobre nem para trás nem para diante sabia responder.

Mentia por costume e teima e estava tão acreditado que, em abrindo a boca, logo diziam todos: mente. Quem queria as suas duas mentiras de repente e não tinha mulher em casa para lhas dizer, ia ter com ele (era comer feito) e logo ali de pé para a mão lhe dava meia dúzia. Muitas vezes em quatro palavras dizia quatro mentiras e quatro asneiras e acomodava oito pessoas com pouco mais de nada.

Uma ocasião é que eu fiquei bem de uma mentira que pregou. Estava a coçar na cabeça com muita força. Diz-lhe uma Senhora. Tem muito piolho, senhor Fulano?

— Nada, minha Senhora. Tenho a cabeça limpa como uma pedra de amolar. (Mentira no caso, a limpeza era toda por dentro da cabeça). E nunca mais se tornou a coçar diante da dita. Era um gosto vê-lo com qualquer a quem ele devesse. O que lhe prometia! O que jurava! Numa palavra, o que mentia! Perguntou-lhe uma vez um sujeito: — Vossa mercê não é filho do senhor Fulano?

— Não senhor, lhe respondeu logo.

O outro, que o conhecia muito bem, tornou a instar: — Pois vossa mercê não é o senhor Fulano, filho do senhor Sicrano e da senhora D. Tal?

— Da senhora D. Tal, concedo; do senhor Sicrano, nego. — Pois a senhora sua mãe foi casada outra vez?

— Não senhor, mas eu tenho cá as minhas desconfianças que sou filho de coisa mais alta.

— Basta, basta, meu senhor, já estou calado.

E o meu mentiroso, antes quis deixar a honra da sua mãe em dúvida que a sua mentira.

O mentir é um vício que em se arreigando é uma espécie de cancro. Bota tantas raízes e tão fundadas que não se arrancam sem muitas dores. A mentira é uma planta que se semeia no coração de uma criança. Os pais regam-lha, os criados tiram-lhe o fruto, o terreno é próprio porque o coração do homem é próprio para todos os vícios, assim como para todas as virtudes. O inocente cresce. E como pode ele lançar fora de si o veneno com que foi criado e que se senhoreou de todo o coração? As bexigas ou o sarampo são moléstias anexas à inocência. O mentir não. O cavalo une a anca à parede, salta um fosso, perde o medo daquilo que mais o intimida porque lho ensinaram. O homem mente porque lho ensinaram também ou porque sempre se comunicou com quem o usava.

O mentir não é muito antigo. É do tempo que nasceu a Política e tomou a sua maior força do tempo, que os homens quiseram passar com mais do que tinham. No fim daquele tempo em que os homens que não tinham rendas para andar em sege se contentavam com andar a pé; no fim daquele tempo que as mulheres atavam um fita ao redor da cabeça e, depois de lhe ter durado um ano, a lavavam para lhe botar fora mais um semestre.

A semente Luxo é quem produziu os mentirosos. No tempo em que as Matronas romanas fiavam e teciam aos panos para seus maridos, estes maridos foram os heróis de Roma. No tempo em que o luxo e a magnificência entraram em Roma, os netos daquelas Matronas e daqueles heróis foram flautistas e rabequistas.

Enfim, tudo muda. Cada idade traz diferentes costumes e cada costume vai mudando o homem. Mas o tempo não vai mau para os piolhos. Assim é que este século é de mais luxo, de mais riqueza, de maior miséria. Mas de muito mais porcaria que os séculos passados. Meus pais me contavam que, algum dia, todos os sábados[1] ao mais tardar, se limpava a cabeça[2], lavava os pés, cortava as unhas. Hoje, não senhor! Há tal que não cuida da cabeça senão de sábado a sábado, isto é, de Aleluia. Hoje já ninguém corta as unhas. Tomaram alguns ter mais, ainda sem ter mais dedos. Isto de lavar os pés e o corpo é só de Verão, porque vão tomar banhos. Em se acabando esta moda, adeus lavagem. Mas, na verdade, é bonita moda, ao menos das mais asseadas do meu tempo e, então, é remédio para tudo. Hoje pouco custa o curar, é mandar tomar banhos. Tem dor de dentes? Banhos. Tem calos? Banhos. Tem estéricos? Banhos. Tem maligna? Banhos. Tem espinhela caída? Banhos. Está para morrer? Banhos, &c. e nem por isso morre muita gente. Quando muito duram menos, é o mais que fazem. Outro dia caiu um homem ao mar, andou perto de três horas a lutar com as águas. Trouxeram-no para terra, entraram a trabalhar nele com a máquina fumigatória e vendo um que ali estava que o homem não tornava a si, acudiu muito depressa a dizer: Metam-no em água, banhos e mais banhos que tenho visto fazer milagres com este remédio. E é verdade que sim. Eu sei de uma rapariga que se pegou com tanta fé com os banhos para o fim de casar, que ao cabo de vinte e cinco banhos tinha achado noivo e tinha casado e já estava com esperanças que o morgado não fosse à Coroa.

Que me dizem vossas mercês a tanto destempero que eu tenho dito? E ainda me hei-de escandalizar se não me lerem e não tiver saída! E coisa galante! Jamais posso contar coisa que não lhe meta a minha moralidade, como que eu fosse capaz de dizer alguma coisa. Como mal sei contar o que passo e vejo nas cabeças dos mais, também quero meter coisas da minha cabeça. E estou ouvindo, por instantes, chamarem-me pedaço de asno, ficando quem mo chamar, já se sabe, com o resto desse pedaço.

Senhores, não quero secá-los mais. Fiquem sabendo que o homem mentia muito, que o costume é mau, que tem más consequências, que se algum de vossas mercês que lerem este, tem a manha, que a deixe que não perde nada. E se não a quiser deixar, não a deixe. Se a vossas mercês se lhes não dá disso, menos dá a mim. Saúde. Eu vou agora fazer a minha carapuça para a cabeça de um que era amigo de todo o mundo. Todos eram seus amigos, (dizia ele), e ele era amigo de todos. E fiz esta passagem de cabeça numa ocasião que o tal abraçava o mentiroso e lhe apertava a mão, e lhe dava um beijo que era o cumprimento que fazia a todos. Guarde Deus a vossas mercês.

Notas editar

  1. Isto é, no tempo em que havia sábados, porque hoje tudo são dias santos para alguns, que nunca trabalham. [N. do A.]
  2. No tempo em que os corpos tinham cabeça. [N. do A.]