Pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na véspera até deixara cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Uf!

— O caldinho há de estar pronto, hem! - disse, adocicando a voz. - Tira-mo, Sra. Joana, faz favor?

— Vossemecê hoje está com outra cara - notou a cozinheira.

— Ai! Sinto-me outra, Sra. Joana! Pois olhe que adormeci com dia, já luzia o dia!

— E eu! - Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma cor de fogo a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na boca do estômago, como quem pisava uvas num lagar!

— Enfartamento - disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:

— Pois eu sinto-me outra. Há meses que me não sinto tão bem!

Sorri com os seus dentes amarelados. O caldo que Joana deitava na malga branca com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça dava-lhe uma alegria gulosa. Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janelas abertas.

O sol retirara-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor; sobre uma tábua a um canto, numa velha panela bojuda, verdejava um pé de salsa muito tratado; o gato dormia sobre um esteirão; esfregões secavam numa corda; e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente, as árvores dos quintais tinham tons ardentes do sol, os telhados pardos com as suas vegetações esguias coziam no

calor e pedaços de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.

— Está de apetite, Sra. Joana, está de apetite! - dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé, com os braços cruzados

sobre o seu peito abundante, regozijava-se:

— O que se quer é que esteja a gosto.

— Está a preceito.

Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras. - E a campainha da porta que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.

Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam; ouvia-se ferver a panela no fogão, e fora o martelar incessante da forja; às vezes o arrulhar triste de duas rolas que viviam na varanda, numa gaiola de vime, punha na tarde abrasada uma sensação de suavidade.

A campainha retilintou, sacudida com impaciência.

— Com a cabeça, burro! - disse Juliana.

Riram. Joana fora sentar-se à janela, numa cadeira baixa; estendia os seus grossos pés, calçados de chinelas de ourelo; coçava-se devagarinho, no sovaco, toda repousada.

A campainha retiniu violentamente.

— Fora, besta! - rosnou Juliana, muito tranqüila.

Mas a voz irritada de Luísa chamou debaixo:

— Juliana!

— Que nem uma pessoa pode tomar a sustância sossegada! Raio de casa! Irra!

— Juliana! - gritou Luísa.

A cozinheira voltou-se, já assustada:

— A senhora zanga-se, Sra. Juliana.

— Que a leve o diabo!

Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu furiosa.

— Você não ouve, mulher? Estão a bater há uma hora!

Juliana arregalou os olhos espantada; Luísa tinha vestido um roupão novo de fular cor de castanho, com pintinhas amarelas!

— "Temos novidade! Temo-la grossa!" - pensou Juliana pelo corredor.

A campainha repicava. E no patamar, vestido de claro, com uma rosa ao peito, um embrulho debaixo do braço, estava o "sujeito do negócio das minas!"

— Aquele sujeito de ontem! - veio dizer, toda pasmada.

— Mande entrar...

— "Viva!" - pensou.

Galgou a escada da cozinha, disse logo da porta, com a voz aguda de júbilo:

— Está cá o peralta de ontem! Está cá outra vez! Traz um embrulho! Que lhe parece, Sra. Joana? Que lhe parece?

— Visitas... - disse a cozinheira.

Juliana teve um risinho seco. Sentou-se, acabou o seu caldo, à pressa.

Joana indiferente cantarolava pela cozinha, o arrulhar das rolas continuava langoroso e débil.

— Pois, senhores, isto vai rico! - disse Juliana.

Esteve um momento a limpar os dentes com a língua, o olhar fixo, refletindo. Sacudiu o avental, e desceu ao quarto de Luísa; o seu olhar esquadrinhador avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas da despensa; podia subir, beber um trago de bom vinho, engolir dois ladrilhos de marmelada... Mas possuía-a uma curiosidade urgente, e, em bicos de pés, foi agachar-se à porta que dava para a sala, espreitou. O reposteiro estava corrido por dentro; podia apenas sentir a voz grossa e jovial do sujeito. Foi de volta, pelo corredor, à outra porta, ao pé da escada; pôs o olho à fechadura, colou o ouvido à frincha. O reposteiro dentro estava também cerrado.

— "Os diabos calafetaram-se!" - pensou.

Pareceu-lhe que se arrastava uma cadeira, depois que se fechava uma vidraça. Os olhos faiscavam-lhe. Uma risada de Luísa sobressaiu; em seguida um silêncio; e as vozes recomeçaram num tom sereno e contínuo. De repente o sujeito ergueu a fala, e entre as palavras que dizia, de pé decerto, passeando, Juliana ouviu claramente: "Tu, foste tu!"

— Oh, que bêbeda!

Um tilintlim tímido da campainha, ao lado, assustou-a. Foi abrir. Era Sebastião muito vermelho do sol, com as botas cheias de pó.

— Está? - perguntou, limpando a testa suada.

— Está com uma visita, Sr. Sebastião!

E cerrando a porta sobre si, mas baixo:

— Um rapaz novo que já cá esteve ontem, um janota! Quer que vá dizer?

— Não, não, obrigado, adeus.

Desceu discretamente. Juliana voltou logo a encostar-se à porta, a orelha contra a madeira, as mãos atrás das costas; mas a conversação, sem saliência de vozes; tinha um rumor tranqüilo e indistinto. Subiu à cozinha.

— Tratam-se por tu! - exclamou. - Tratam-se por tu, Sra. Joana! E muito excitada:

— Isto vai à vela! Cáspite! Assim é que eu gosto delas!

O sujeito saiu às cinco horas. Juliana, apenas sentiu abrir-se a porta, veio a correr; viu Luísa no patamar, debruçada no corrimão, dizendo para baixo, com muita intimidade:

— Bem, não falto. Adeus.

Ficou então tomada de uma curiosidade que a alterava como uma febre. Toda a tarde, na sala de jantar, no quarto, esquadrinhou Luísa com olhares de lado. Mas Luísa, com um roupão de linho mais velho, parecia serena, muito indiferente.

— "Que sonsa!"

Aquela naturalidade despertava a sua bisbilhotice.

— "Eu hei de te apanhar, desavergonhada!" - calculava.

Afigurou-se-lhe que Luísa tinha os olhos um pouco pisados. Estudava-lhe as posições, os tons de voz. Viu-a repetir o assado - pensou logo:

— "Abriu-lhe o apetite"!

E quando Luísa ao fim do jantar se estendeu na voltaire com um ar quebrado.

— "Ficou derreada".

Luísa que nunca tomava café, quis nessa tarde "meia chávena, mas forte, muito forte".

— Quer café! - veio ela dizer à cozinheira, toda excitada. - Tudo à grande. E do forte. Quer do forte! Ora o diabo!

Estava furiosa.

— Todas o mesmo! Uma récua de cabras!

Ao outro dia era domingo. Logo pela manhã cedo, quando Juliana ia para a missa, Luísa chamou-a da porta do quarto, deu-lhe uma carta para levar a D. Felicidade. Ordinariamente mandava um recado; - e a curiosidade de Juliana acendeu-se logo diante daquele sobrescrito fechado e lacrado com o sinete de Luísa, um L gótico dentro de uma coroa de rosas.

— Tem resposta?

— Tem.

Quando voltou às dez horas, com um bilhete de D. Felicidade, Luísa quis saber se havia muito calor, se fazia poeira. Sobre a mesa estava um chapéu de palha escuro, que ela estivera a enfeitar com duas rosas de musgo.

Fazia um bocadinho de vento, mas para a tarde abrandava, decerto. E pensou logo: -"Temos passeata, vai ter com o gajo!"

Mas durante todo o dia, Luísa em roupão não saiu do seu quarto ou da sala, ora estendida na causeuse lendo aos bocados, ora batendo distraidamente no piano pedaços de valsas. Jantou às quatro horas. A cozinheira saiu, e Juliana pôs-se a passar a sua tarde à janela da sala de jantar. Tinha o vestido novo, as saias muito rijas de goma, a cuia dos dias santos - e pousava solenemente os cotovelos num lenço, estendido sobre o peitoril da varanda. Defronte os pássaros chilreavam na figueira brava. Dos dois lados do tabique que cercava o terreno vago, agachavam-se os tetos escuros das duas ruazitas paralelas; eram casas pobres onde viviam mulheres, que pela tarde, em chambre ou de garibaldi, os cabelos muito oleosos, faziam meia à janela, falando aos homens, cantarolando com um tédio triste. Do outro lado do terreno, verduras de quintais, muros brancos davam àquele sítio um ar adormecido de vila pacata. Quase ninguém passava. Havia um silêncio fatigado; e só às vezes o som distante de um realejo, que tocava a Norma ou a Lúcia, punha uma melancolia na tarde. - E Juliana ali estava imóvel até que os tons quentes da tarde empalideciam, e os morcegos começavam a voar.

Pelas oito horas entrou no quarto de Luísa - ficou pasmada de a ver vestida toda de preto, de chapéu! Tinha acendido as serpentinas na parede, os castiçais no toucador; e sentada à beira da causeuse calçava as luvas devagar, com a face muito séria, um pouco esbatida de pó-de-arroz, o olhar cheio de brilho.

— O vento abrandou? - disse.

— Está a noite muito bonita, minha senhora.

Um pouco antes das nove horas uma carruagem parou à porta. Era D. Felicidade, muito encalmada. Abafara todo o dia! E à noite nem uma aragem! Até tinha mandado buscar uma carruagem descoberta, que num cupê, credo, morria-se.

Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa. Onde iriam? Onde iriam? D. Felicidade, amplamente sentada, de chapéu, tagarelava; uma indigestão que tivera na véspera com umas vagens; a cozinheira que a tinha querido comer em quatro vinténs; uma visita que lhe fizera a Condessa de Arruela...

Enfim, Luísa, disse, baixando o seu véu branco:

— Vamos, filha. Faz-se tarde.

Juliana foi-lhes alumiar, furiosa. Olha que propósito, irem duas mulheres sós por aí fora, numa tipóia! E se uma criada então se demorava na rua mais meia hora, credo, que alarido! Que duas bêbedas!

Foi à cozinha desabafar com a Joana. Mas a rapariga, estirada numa cadeira, dormitava.

Fora com o seu Pedro ao Alto de São João. E toda a tarde tinham passeado no cemitério, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitáfios, beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se do ar dos e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram a um quartilho no Espregueira... Tarde cheia! E estava derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto túmulo rico, do homem, e da pinguita d'vinho.

O que ia, era refestelar-se para a cama!

— Credo, Sra. Joana, vossemecê está-se a fazer uma dorminhoca! Olha que mulher! Com pouco arreia! Cruzes!

Desceu ao quarto de Luísa, apagou as luzes, abriu as janelas, arrastou a poltrona para a varanda - e, repimpada, os braços cruzados, pôs-se a passar a noite.

O estanque ainda não se fechara, e a sua luzita lúgubre como a estanqueira, estendia-se tristemente sobre a pedra miúda da rua; as janelas ao pé estavam abertas, por algumas, mal-alumiadas, viam-se dentro serões melancólicos; noutras, vultos imóveis, luzia às vezes a ponta de um cigarro; aqui, além tossia-se do padeiro; e o moço do padeiro, no silêncio quente da noite, harpejava baixinho a guitarra.

Juliana pusera um vestido de chita claro; dois sujeitos que estavam à porta riam, erguiam de vez em quando os olhos para a janela, para aquele de mulher: Juliana, então, gozou! Tomavam-na decerto pela senhora, pela do Engenheiro; faziam-lhe olho, diziam brejeirices... Um tinha calça branca e chapéu alto, eram janotas... E com os pés muito estendidos, os braços cruzados, de lado, saboreava, longamente, aquela consideração.

Passos fortes que subiam a rua, pararam à porta; a campainha retiniu de leve

— Quem é? - perguntou muito impaciente.

— Está? - disse a voz grossa de Sebastião.

— Saiu com a D. Felicidade; foram de carruagem.

— Ah! - fez ele.

E acrescentou:

— Muito bonita noite!

— De apetite, Sr. Sebastião! De apetite! - exclamou alto.

E quando o viu descer a rua, gritou, afetadamente:

— Recados a Joana! Não se esqueça! - mostrando-se íntima, madama, com olho terno para os homens.

Aquela hora D. Felicidade e Luísa chegavam ao Passeio.

Era benefício; já de fora se sentia o bruaá lento e monótono, e via-se uma névoa alta de poeira, amarelada e luminosa.

Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram Basílio. Fez-se muito surpreendido, exclamou:

— Que feliz acaso!

Luísa corou; apresentou-o a D. Felicidade.

A excelente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se dele, mas se não lhe dissessem talvez o não conhecesse! Estava muito mudado!

— Os trabalhos, minha senhora... - disse Basílio curvando-se. E acrescentou rindo, batendo com a bengala na pedra do tanque:

— E a velhice! Sobretudo a velhice!

Na água escura e suja as luzes do gás torciam-se até uma grande profundidade. As folhagens em redor estavam imóveis, no ar parado, com tons de um verde lívido e artificial. Entre os dois longos renques paralelos de árvores mesquinhas, entremeadas de candeeiros de gás, apertava-se, num empoeiramento de macadame, uma multidão compacta e escura; e através do rumor grosso, as saliências metálicas da música faziam passar no ar pesado, compassos vivos de valsa.

Tinham ficado parados, conversando.

— Que calor, hem? Mas a noite estava linda! Nem uma aragem! Que enchente!

E olhavam a gente que entrava: moços muito frisados, com calças cor de flor de alecrim, fumando cerimoniosamente os charutos do dia santo; um aspirante com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado; duas meninas de cabelo riçado, de movimentos gingados que lhe desenhavam os ossos das omoplatas sob a fazenda do vestido atabalhoado; um eclesiástico cor de cidra, o ar mole, o cigarro na boca, e lunetas defumadas; uma espanhola com dois metros de saia branca muito rija, fazendo ruge-ruge na poeira; o triste Xavier, poeta; um fidalgo de jaquetão e bengalão, de chapéu na nuca, o olho avinhado; e Basílio ria muito de dois pequenos que o pai conduzia com um ar hilare e compenetrado - vestidos de azul-claro, a cinta ligada numa faixa escarlate, barretinas de lanceiros, botas à húngara, cretinos e sonâmbulos.

Um sujeito alto então passou rente deles, e voltando-se, revirou para Luísa dois grandes olhos langorosos e prateados; tinha uma pêra longa e aguçada; trazia o colete decotado mostrando um belo peitilho, e fumava por uma boquilha enorme que representava um zuavo.

Luísa quis-se sentar.

Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu a arranjar cadeiras; e acomodaram-se ao pé de uma família acabrunhada e taciturna.

— Que fizeste tu hoje, Basílio? - perguntou Luísa.

Tinha ido aos touros.

— E que tal? Gostaste?

— Uma sensaboria. Se não fosse pelo trambolhão do Peixinho tinha-se morrido de pasmaceira. Gado fraco, cavaleiros infelizes, nenhuma sorte! Touros em Espanha! Isso sim!

D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto em Badajoz, quando estivera de visita em Elvas à tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando. O sangue, as tripas dos cavalos... "Puh! E muito cruel!"

Basílio disse, com um sorriso:

— Que faria se visse os combates de galos, minha senhora!

D. Felicidade tinha ouvido contar - mas achava todos esses divertimentos bárbaros, contra a Religião.

E recordando um gozo que lhe punha um riso na face gorda:

— Para mim não há nada como uma boa noite de teatro! Nada!

— Mas aqui representam tão mal! - replicou Basílio com uma voz desolada. - Tão mal, minha rica senhora!

D. Felicidade não respondeu; meio erguida na cadeira, o olhar avivado de um brilho úmido, saudava desesperadamente com a mão:

— Não me viu - disse desconsolada.

— Era o Conselheiro? - perguntou Luísa.

— Não. Era a Condessa de Alviela. Não me viu! Vai muito à Encarnação, sou muito dela. É um anjo! Não me viu. Ia com o sogro.

Basílio não tirava os olhos de Luísa. Sob o véu branco, à luz falsa do gás, no ar enevoado da poeira, o seu rosto tinha uma forma alva e suave, onde os olhos que a noite escurecia punham uma expressão apaixonada; os cabelinhos louros, frisados tornando a testa mais pequena, davam-lhe uma graça ameninada e amorosa; e as luvas gris perle faziam destacar sobre o vestido negro o desenho elegante das mãos, que ela pousara no regaço, sustentando o leque, com uma fofa renda branca em torno dos seus pulsos finos.

— E tu, que fizeste hoje? - perguntou-lhe Basílio.

Tinha-se aborrecido muito. Estivera todo o santo dia a ler.

Também ele passara a manhã deitado no sofá a ler a Mulher de Fogo de Belot. Tinha lido, ela?

— Não, que é?

— É um romance, uma novidade.

E acrescentou sorrindo:

— Talvez um pouco picante; não to aconselho!

D. Felicidade andava a ler o Rocambole. Tanto lho tinham apregoado! Mas era uma tal trapalhada! Embrulhava-se, esquecia-se... E ia deixar, porque tinha percebido que a leitura lhe aumentava a indigestão.

— Sofre? - perguntou Basílio, com um interesse bem-educado.

D. Felicidade contou logo a sua dispepsia. Basílio aconselhou-lhe o uso do gelo. - De resto felicitava-a, porque as doenças de estômago, ultimamente, tinham muito chique. Interessou-se pela dela, pediu pormenores.

D. Felicidade prodigalizou-os; e falando, via-se-lhe crescer no olhar, na voz a sua simpatia por Basílio. Havia de usar o gelo!

— Com o vinho, já se sabe?

— Com o vinho, minha senhora!

— E olha que talvez! - exclamou D. Felicidade, batendo com o leque no braço de Luísa, já esperançada.

Luísa sorriu, ia responder - mas viu o sujeito pálido de pêra longa que fitava nela os seus olhos langorosos, com obstinação. Voltou o rosto importunada. O sujeito afastou-se, retorcendo a ponta da pêra.

Luísa sentia-se mole; o movimento rumoroso e monótono, a noite cálida, a acumulação da gente, a sensação de verdura em redor davam ao seu corpo de mulher caseira um torpor agradável, um bem-estar de inércia, envolviam-na numa doçura emoliente de banho morno. Olhava com um vago sorriso, o olhar frouxo; quase tinha preguiça de mexer as mãos, de abrir o leque.

Basílio notou o silêncio. - Tinha sono?

D. Felicidade sorriu com finura.

— Ora, vê-se sem o seu maridinho! Desde que o não tem está esta mona que se vê.

Luísa respondeu, olhando Basílio instintivamente:

— Que tolice! Até estes dias tenho andado bem alegre!

Mas D. Felicidade insistia:

— Ora, bem sabemos, bem sabemos. Esse coraçãozinho está no Alentejo!

Luísa disse, com impaciência:

— Não hás de querer que me ponha aos pulos e às gargalhadas no Passeio.

— Está bem, não te enfureças! - exclamou D. Felicidade. E para Basílio:

— Que geniozinho, hem!

Basílio pôs-se a rir.

— A prima Luísa antigamente era uma víbora. Agora não sei...

D. Felicidade acudiu:

— É uma pomba, coitada, é uma pomba! Não, lá isso, é uma pomba.

E envolvia-a num olhar maternal.

Mas a família taciturna ergueu-se, sem ruído - e as meninas adiante, os pais atrás, afastaram-se lugubremente, sucumbidos.

Basílio imediatamente apossou-se da cadeira ao pé de Luísa - e vendo D. Felicidade a olhar distraída:

— Estive para te ir ver de manhã - disse baixinho a Luísa.

Ela ergueu a voz, muito naturalmente, com indiferença:

— E por que não foste? Tínhamos feito música. Fizeste mal. Devias ter ido...

D. Felicidade quis então saber as horas. Começava a enfastiar-se. Tinha esperado encontrar o Conselheiro; por ele, para lhe parecer bem, fizera o sacrifício de se apertar! Acácio não vinha, os gases começavam a afrontá-la; e o despeito daquela ausência aumentava-lhe a tortura da digestão. Na sua cadeira, o corpo mole, ia seguindo a multidão que girava incessantemente, numa névoa empoeirada.

Mas a música, no coreto, bateu de repente, alto, a grande ruído de cobres, os primeiros compassos impulsivos da marcha do Fausto. Aquilo reanimou-a.

Era pot-pourri da ópera - e não havia música de que gostasse mais. Estaria para a abertura de São Carlos, o Sr. Basílio?

Basílio disse, com uma intenção, voltando-se para Luísa:

— Não sei, minha senhora, depende...

Luísa olhava, calada. A multidão crescera. Nas ruas laterais mais espaçosas, frescas, passeavam apenas, sob a penumbra das árvores, os acanhados, as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado. Toda a burguesia domingueira viera amontoar-se na rua do meio, no corredor formado pelas filas cerradas das cadeiras do asilo; e ali se movia entalada, com a lentidão espessa de uma massa derretida, arrastando os pés, raspando o macadame, num amarfanhamento a garganta seca, os braços moles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente para cima e para baixo, com um bamboleamento relaxado e um rumor grosso sem alegria e sem bonomia, no arrebanhamento passivo que agrada às raças mandrionas; no meio da abundância das luzes e das festividades da música, um tédio morno circulava, penetrava como uma névoa; a poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam sob os candeeiros, nas zonas mais diretas de luz, viam-se desconsolações de fadiga e aborrecimento de dia santo.

Defronte as casas da Rua Ocidental tinham na sua fachada o reflexo claro das luzes do Passeio; algumas janelas estavam abertas, as cortinas de fazenda escuras destacavam sobre a claridade interior dos candeeiros. Luísa sentia como uma saudade de outras noites de verão, de serões recolhidos. Onde? Não se lembrava. O movimento então retraía-a; e encontrava em face, fitando-a numa atitude lúgubre, o sujeito de pêra longa. Debaixo do véu sentia a poeira arder-lhe nos olhos; em redor dela gente bocejava.

D. Felicidade propôs uma volta. Levantaram-se, foram rompendo devagar; as filas das cadeiras apertavam-se compactamente, e uma infinidade de faces a que a luz do gás dava o mesmo tom amarelado olhavam de um modo fixo e cansado, num abatimento de pasmaceira. Aquele aspecto irritou Basílio, e como era difícil andar lembrou - "que se fossem daquela sensaboria".

Saíram. Enquanto ele ia comprar os bilhetes, D. Felicidade, deixando-se quase cair num banco sob a folhagem de um chorão, exclamou aflita:

— Ai, filha! Estou que arrebento!

Passava a mão no estômago; tinha a face envelhecida.

— E o Conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio...

Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:

— É muito simpático, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro fidalgo. Que eles conhecem-se, filha!

Declarou-se muito fatigada, apenas saíram o portão. Era melhor tomarem um trem.

Basílio achava preferível subirem a pé até ao Largo do Loreto. A noite estava tão agradável! E o andar fazia bem à senhora D. Felicidade!

Depois diante do Martinho, falou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade; Luísa tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.

No Rossio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca "do Arsenal"; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu abafava - e na noite escura, a coluna da estátua de D. Pedro tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada.

Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. "Que horror de cidade!" - pensava. -"Que tristeza!" E lembrava-lhe Paris, de verão; subia, à noite, no seu faéton, os Campos Elísios devagar; centenares de vitórias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura aveludada, e os castanheiros espalham um aroma sutil. Dos dois lados, dentre os arvoredos, saltam as claridades violentas dos cafés cantantes, cheios do bruaá das multidões alegres, dos brios impulsivos das orquestras, os restaurantes flamejam; há uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sai das janelas dos palacetes, através dos estores de seda, a luz sóbria e velada das existências ricas. Ah! Se lá estivesse! - Mas ao passar junto dos candeeiros olhava de lado para Luísa; o seu perfil fino sob o véu branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava a linha da cinta de um modo lânguido e prometedor.

Veio-lhe uma certa idéia, começou a dizer: Que pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se pudesse ir tomar uma asa de perdiz e beber uma garrafa de champanhe frappe!

Luísa não respondeu. Devia ser delicioso - pensava. - Mas D. Felicidade exclamou:

— Perdiz, a esta hora!

— Perdiz ou outra qualquer coisa.

Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!

Subiam pela Rua Nova do Carmo. Os candeeiros davam uma luz mortiça; as altas casas dos dois lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem ruído, sinistra e sutil.

Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria; a sua voz aguda e chorosa prometia a fortuna, muitos contos de réis. D. Felicidade ainda parou, com uma tentação... Mas uma troça de rapazes bêbedos que descia de chapéu na nuca, falando alto, aos tropeções, assustou muito as duas. Luísa encolheu-se logo contra Basílio; D. Felicidade enfiada agarrou-lhe ansiosamente o braço, quis-se meter numa carruagem; e até ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem largar o braço de Basílio. Da fileira de tipóias, ao lado das grades da Praça de Camões, um cocheiro lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada apanhando confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, excitado, gritando:

— Pronto, meu amo, pronto!

Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou - e Luísa desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito da pêra.

Entraram para a caleche. Luísa ainda se voltou para ver Basílio imóvel no largo, com o seu chapéu na mão; depois acomodou-se, pôs os pezinhos no outro assento e balançada pelo trote largo viu passar, calada, as casas apagadas da Rua de São Roque, as árvores de São Pedro de Alcântara, as fachadas estreitas do Moinho de Vento, os jardins adormecidos da Patriarcal. A noite estava imóvel, de um calor mole, e desejava, sem saber por que, rolar assim sempre, infinitamente, entre ruas, entre grades cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino, sem cuidados, para alguma coisa de feliz que não distinguia bem! Um grupo defronte da Escola ia tocando o Fado do Vimioso; aqueles sons entraram-lhe na alma como um vento doce, que fazia agitar brandamente muitas sensibilidades passadas, suspirou baixo.

— Um suspirozinho que vai para o Alentejo - disse D. Felicidade, tocando-lhe no braço.

Luísa sentiu todo o sangue abrasar-lhe o rosto. Davam onze horas quando entrou em casa.

Juliana veio alumiar. - O chá estava pronto, quando a senhora quisesse...

Luísa subiu daí a pouco com um largo roupão branco, muito fatigada; na voltaire; sentia vir-lhe uma sonolência; a cabeça pendia-lhe; cerravas as pálpebras... E Juliana tardava tanto com o chá! Chamou-a. Onde estava? Credo!

Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luísa. E aí tomando o vestido, as saias engomadas que ela despira e atirara para cima da causeuse, desdobrou-as, examinou-as, e com uma certa idéia, cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo lavado e quente, com uma pontinha de suor e de água-de-colônia. Quando a sentiu chamar, impacientar-se em cima, subiu, correndo. - Fora abaixo dar uma arrumadela. Era o chá? Estava pronto...

E entrando com as torradas:

— Veio aí o Sr. Sebastião, haviam de ser nove horas...

— Que lhe disse?

— Que a senhora tinha saído com a senhora D. Felicidade. Como não sabia, não disse para onde.

E acrescentou:

— Esteve a conversar comigo, o Sr. Sebastião... Esteve a conversar mais de meia hora!...

Luísa recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magníficas. Cultivava-as ele na quinta de Almada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos vasos da sala; e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e sufocante:

— Olhe - disse a Juliana - abra as janelas.

— "Bem" - pensou Juliana - "temos cá o melro."

O melro veio com efeito às três horas. Luísa estava na sala, ao piano.

— Está ali o sujeito do costume - foi dizer Juliana.

Luísa voltou-se corada, escandalizada da expressão:

— Ah! Meu primo Basílio? Mande entrar.

E chamando-a:

— Ouça, se vier o Sr. Sebastião, ou alguém, que entre.

Era o primo! O sujeito, as suas visitas perderam de repente para ela todo o interesse picante. A sua malícia cheia, enfunada até aí, caiu, engelhou-se como uma vela a que falta o vento. Ora, adeus! Era o primo!

Subiu à cozinha, devagar - lograda.

— Temos grande novidade, Sra. Joana! O tal peralta é primo. Diz que é o primo Basílio.

E com um risinho:

— É o Basílio! Ora o Basílio! Sai-nos primo à última hora! O diabo tem graça!

— Então que havia de o homem ser senão parente? - observou Joana.

Juliana não respondeu. Quis saber se estava o ferro pronto, que tinha uma carga de roupa para passar! E sentou-se à janela, esperando. O céu baixo e pardo pesava, carregado de eletricidade; às vezes uma aragem súbita e fina punha nas folhagens dos quintais um arrepio trêmulo.

— "É o primo!" - refletia ela. - "E só vem então quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda no ar quando ele sai; e é roupa branca e mais roupa branca, e roupão novo, e tipóia para o passeio, e suspiros e olheiras! Boa bêbeda! Tudo fica na família!"

Os olhos luziam-lhe. Já se não sentia tão lograda. Havia ali muito "para ver e escutar". E o ferro, estava pronto?

Mas a campainha embaixo, tocou.

— Boa! Isto agora é um fadário! Estamos na casa do despacho!

Desceu; e exclamou logo, vendo Julião com um livro debaixo do braço:

— Faz favor de entrar, Sr. Julião! A senhora está com o primo, mas diz que mandasse entrar!

Abriu a porta da sala bruscamente, de surpresa.

— Está aqui o Sr. Julião - disse com satisfação.

Luísa apresentou os dois homens.

Basílio ergueu-se do sofá languidamente, e, num relance, percorreu Julião desde a cabeleira desleixada até às botas malengraxadas, com um olhar quase horrorizado.

— "Que pulha!" - pensou.

Luísa, muito fina, percebeu, e corou, envergonhada de Julião.

Aquele homem de colarinho enxovalhado e com um velho casaco de pano preto malfeito - que idéia daria a Basílio das relações, dos amigos da casa! Sentia já o seu chique diminuído. E instintivamente, a sua fisionomia tornou-se muito reservada - como se semelhante visita a surpreendesse! Semelhante toalete a indignasse!

Julião percebeu o constrangimento dela; disse, já embaraçado, ajeitando a luneta:

— Passei por aqui por acaso, entrei a saber se há algumas notícias de Jorge...

— Obrigada. Sim, tem escrito. Está bem...

Basílio, recostado no sofá, como um parente intimo, examinava a sua meia de seda bordada de estrelinhas escarlates, e cofiava indolentemente o bigode, arrebitando um pouco o dedo mínimo - onde brilhavam, em dois grossos anéis de ouro, uma safira e um rubi.

A afetação da atitude, o reluzir das jóias irritaram Julião.

Quis mostrar também a sua intimidade, os seus direitos; disse:

— Eu não tenho vindo fazer-lhe um bocado de companhia, porque tenho estado muito ocupado...

Luísa acudiu para desautorizar logo aquela familiaridade:

— Eu também não me tenho achado bem. Não tenho recebido ninguém - a o ser meu primo, naturalmente!

Julião sentiu-se renegado! E todo vermelho, de surpresa, de indignação, - a balançar a perna, calado, com o livro sobre o joelho; como a calça era curta, via-se quase o elástico esfiado das botas velhas.

Houve um silêncio difícil.

— Bonitas rosas! - disse enfim Basílio, preguiçosamente.

— Muito bonitas! - respondeu Luísa.

Estava agora compadecida de Julião; procurava uma palavra; disse-lhe enfim muito precipitadamente:

— E que calor! É de morrer! Tem havido muitas doenças?

— Colerinas - respondeu Julião. - Por causa das frutas. Doenças de ventre.

Luísa baixou os olhos. Basílio então começou a falar da Viscondessinha de Azeias; tinha-a achado acabada; e que era feito da irmã, da grande?

Aquela conversação sobre fidalgas que ele não conhecia isolava mais Julião; sentia o suor umedecer-lhe o pescoço; procurava um dito, uma ironia, uma agudeza; e maquinalmente abria e fechava o seu grosso livro de capa amarela.

— É algum romance? - perguntou-lhe Luísa.

— Não. É o tratado do Dr. Lee sobre doenças do útero.

Luísa fez-se escarlate; Julião também, furioso da palavra que lhe escapara. E Basílio, depois de sorrir, perguntou por uma certa D. Rafaela Grijó, que costumava ir à Rua da Madalena, que usava luneta, e tinha um cunhado gago...

— Morreu-lhe o marido. Casou com o cunhado.

— Com o gago?

— Sim. Tem um filhito dele, gago também.

— Que conversação, em família! E a D. Eugênia, a de Braga?

Juilão, exasperado, ergueu-se; e com uma voz de garganta seca:

— Estou com pressa, não me posso demorar. Quando escrever a Jorge, os meus recados, hem?

Abaixou bruscamente a cabeça a Basílio. Mas não achava o chapéu; tinha rolado para debaixo de uma cadeira. Embrulhou-se no reposteiro, topou violentamente contra a porta fechada, e saiu enfim desesperado, desejando vingar-se, odiando Luísa, Jorge, o luxo, a vida - trasbordando agora de ironias, de ditos, de réplicas. Devia-os ter achatado, o asno e a tola... E não lhe acudira nada!

Mas apenas ele tinha fechado a cancela, Basílio pôs-se de pé, e cruzando os braços:

— Quem é esse pulha?

Luísa corou muito; balbuciou:

— É um rapaz médico...

— É uma criatura impossível, é uma espécie de estudante.

— Coitado, não tem muitos meios...

Mas não era necessário ter meios para escovar o casaco e limpar a caspa! Não devia receber semelhante homem! Envergonha uma casa. Se seu marido gostava dele, que o recebesse no escritório!...

Passeava pela sala, excitado, com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves.

— São frescos os amigos da casa!... - continuou. - Que diabo! Tu não foste educada assim. Nunca tiveste gente deste gênero na Rua da Madalena.

Não tivera; e pareceu-lhe que as ligações do casamento lhe tinham trazido um pouco o plebeísmo das convivências. Mas um respeito pelas opiniões, pelas de Jorge fez-lhe dizer:

— Diz que tem muito talento...

— Era melhor que tivesse botas.

Luísa, por cobardia, concordou.

— Também o acho esquisito! - disse.

— Horrível, minha filha!

Aquela palavra fez-lhe bater o coração. Era assim que ele lhe chamava, houve um momento de silêncio; e a campainha da porta retiniu fortemente.

Luísa ficou assustada. Jesus! Se fosse Sebastião! Basílio achá-lo-ia ainda mais reles. Mas Juliana veio dizer:

— O Sr Conselheiro. Mando entrar?

— Decerto - exclamou.

E a alta figura de Acácio adiantou-se, com as bandas do casaco de alpaca deitadas para trás, a calça branca muito engomada caindo sobre os sapatos de entrada baixa, de laço.

Apenas Luísa lhe apresentou o primo Basílio, disse logo, respeitoso:

— Já sabia que Vossa Excelência tinha chegado; vi-o nas interessantes notícias do nosso high life. E do nosso Jorge?

Jorge estava em Beja... Diz que se aborrece muito...

Basílio, mais amável, deixou cair:

— Eu realmente não tenho a menor idéia do que se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso!

O Conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava o anel de armas, observou:

— É todavia a capital do distrito!

Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital do reino! - E Basílio repuxava, todo recostado, o punho da camisa. - Morria-se positivamente de pasmaceira.

Luísa, muito contente da afabilidade de Basílio, pôs-se a rir:

— Não digas isso diante do Conselheiro. É um grande admirador de Lisboa.

Acácio curvou-se:

— Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora.

E com muita bonomia:

— Conheço porém que não é para comparar aos Parises, às Londres, às Madris...

— Decerto - fez Luísa.

O Conselheiro continuou com pompa:

— Lisboa porém tem belezas sem igual! A entrada ao que me dizem (eu nunca entrei a barra) é um panorama grandioso, rival das Constantinoplas e das Nápoles. Digno da pena de um Garrett ou de um Lamartine! Próprio para inspirar um grande engenho!...

Luísa, receando citações ou apreciações literárias, interrompeu-o; perguntou-lhe o que tinha feito. Tinham estado domingo no Passeio, ela e D. Felicidade; tinham esperado vê-lo, e nada!

Nunca ia ao Passeio, ao domingo - declarou. - Reconhecia que era muito agradável, mas a multidão entontecia-o. Tinha notado - e a sua voz tomou o tom espaçado de uma revelação - tinha notado que muita gente, num local, causa vertigens aos homens de estudo. De resto queixou-se da sua saúde e do peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro e usando as águas de Vichy.

— Podes fumar - disse Luísa de repente, sorrindo, a Basílio. - Queres lume?

Ela mesma lhe foi buscar um fósforo, toda ligeira, feliz. Tinha um vestido claro, um pouco transparente, muito fresco. Os seus cabelos pareciam mais louros, a sua pele mais fina.

Basílio soprou o fumo do charuto, e declarou muito reclinado:

— O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!...

O Conselheiro refletiu e respondeu:

— Não serei tão severo, Sr. Brito! - Mas parecia-lhe que com efeito antigamente era uma diversão mais agradável. - Em primeiro lugar - exclamou com muita convicção, endireitando-se - nada, mas nada, absolutamente nada pode substituir a charanga da Armada! - Além disso havia a questão dos preços... Ah! Tinha estudado muito o assunto! Os preços diminutos favoreciam a aglomeração das classes subalternas... Que longe do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população... As suas idéias liberais eram bem conhecidas. - Apelo para a senhora D. Luísa! - disse. - Mas enfim, sempre era mais agradável encontrar uma roda escolhida! Em quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim, ia ver por fora das grades. Não por economia! Decerto não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os acidentes! É que os receava muito! Contou a história de um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furara o crânio. - E além disso nada mais fácil que cair uma fagulha acesa na cara, num paletó novo... - É conveniente ter prudência - resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de seda da Índia muito enrolado.

Falaram então da estação; muita gente fora para Sintra; de resto, Lisboa no verão era tão secante!... E o Conselheiro declarou que Lisboa só era imponente verdadeiramente imponente, quando estavam abertas as câmaras e São Carlos!

— Que estavas tu a tocar quando eu entrei? - perguntou Basílio.

O Conselheiro acudiu logo:

— Se estavam fazendo música, por quem são... Sou um velho assinante de São Carlos, há dezoito anos...

Basílio interrompeu-o:

— Toca?

— Toquei. Não o oculto. Em rapaz fui dado à flauta. E acrescentou, com um gesto benévolo:

— Rapaziadas!... Alguma novidade, o que estava tocando, D. Luísa?

— Não! Uma música muito conhecida, já antiga; a Filha do pescador, de Meyerbeer. Tenho a letra traduzida.

Tinha cerrado as vidraças, sentara-se ao piano.

O Sebastião é que toca isto bem, não é verdade, Conselheiro?

— O nosso Sebastião - disse o Conselheiro com autoridade - é um rival dos Thalbergs e dos Liszts. Conhece o nosso Sebastião? - perguntou a Basílio.

— Não, não conheço.

— Uma pérola!

Basílio tinha-se aproximado do piano devagar, frisando o bigode.

Tu ainda cantas? - perguntou4he Luísa, sorrindo.

— Quando estou só.

Mas o Conselheiro pediu-lhe logo "um trecho". Basílio ria. Tinha medo de escandalizar um velho assinante de São Carlos...

O Conselheiro animou-o; disse mesmo paternalmente:

— Coragem Sr. Brito, coragem! Luísa então preludiou.

E Basílio soltou logo a voz, cheia, bem timbrada, de barítono; as suas notas altas faziam a sala sonora. O Conselheiro, direito na poltrona escutava concentrado; a sua testa, franzida num vinco, parecia curvar-se sob uma responsabilidade de juiz; e as lunetas defumadas destacavam, com reflexos escuros, naquela fisionomia de calvo, que o calor tornava mais pálida.

Basílio dizia com uma melancolia grave a primeira frase, tão larga, da canção:

— Igual ao mar sombrio
Meu coração profundo...

Um poeta, com uma dedicação obscura, traduzira a letra no Almanaque das Senhoras; Luísa pela sua própria mão a tinha copiado nas entrelinhas da música. E Basílio debruçado sobre o papel sempre torcendo as pontas do bigode:

— Tem tempestades, cóleras,
Mas pérolas no fundo!

Os olhos largos de Luísa afirmavam-se para a música - ou a espaços, com um movimento rápido, erguiam-se para Basílio. Quando, na nota final, prolongada como a reclamação de um amor suplicante, Basílio soltou a voz de um modo apelativo:

— Vem! Vem
Pousar, ó doce amada,
Teu peito contra o meu...

os seus olhos fixaram-se nela com uma significação de tanto desejo que o peito de Luísa arfou, os seus dedos embrulharam-se no teclado.

O Conselheiro bateu as palmas.

— Uma voz admirável! - exclamava. - Uma voz admirável!

Basílio dizia-se envergonhado.

— Não, senhor, não, senhor! - protestou Acácio, levantando-se. - Um excelente órgão! Direi, o melhor órgão da nossa sociedade!

Basílio riu. Uma vez que tinha sucesso, então ia dizer-lhes uma modinha brasileira da Bahia. Sentou-se ao piano, e depois de ter preludiado uma melodia muito balançada, de um embalado tropical cantou:

— Sou negrinha, mas meu peito
Sente mais que um peito branco.

E interrompendo-se:

— Isto fazia furor nas reuniões da Bahia quando eu parti.

Era a história de uma "negrinha" nascida na roça, e que contava, com lirismos de almanaque, a sua paixão por um feitor branco.

Basílio parodiava o tom sentimental de alguma menina baiana; e a sua voz tinha uma preciosidade cômica, quando dizia o ritornelo choroso:

— E a negra pra os mares
Seus olhos alonga;
No alto coqueiro
Cantava a araponga.

O Conselheiro achou "delicioso"; e, de pé na sala, lamentou a propósito da cantiga a condição dos escravos. Que lhe afirmavam amigos do Brasil que os negros eram muito bem tratados. Mas enfim a civilização era a civilização! E a escravatura era um estigma! Tinha todavia muita confiança no imperador...

— Monarca de rara ilustração... - acrescentou respeitosamente.

Foi buscar o seu chapéu, e colando-lhe as abas ao peito, curvando-se, jurou que - havia muito tempo não tinha passado uma manhã tão completa. De resto nada havia como a boa conversação e a boa música...

— Onde está Vossa Excelência alojado, Sr. Brito?

Pelo amor de Deus! Que não se incomodasse! Estava no Hotel Central.

Não havia considerações que o impedissem de cumprir o seu dever - Cumpri-lo-ia! Ele era uma pessoa inútil, a senhora D. Luísa bem o sabia - Mas se necessitar alguma coisa, uma informação, uma apresentação nas regiões oficiais, licenças para visitar algum estabelecimento público, creia que me tem às suas ordens!

E conservando na sua mão a mão de Basílio:

— Rua do Ferregial de Cima, número três, terceiro. O modesto tugúrio de um eremita.

Tomou a curvar-se diante de Luísa:

— E quando escrever ao nosso viajante, que faço sinceros votos pela prosperidade dos seus empreendimentos. Por quem é! Criado de Vossa Excelência. E direito, grave, saiu.

— Este ao menos é limpo - resmungou Basílio, com o charuto ao canto da boca.

Sentara-se outra vez ao piano, corria os dedos pelo teclado. Luísa aproximou-se:

— Canta alguma coisa, Basílio!

Basílio pôs-se então a olhar muito para ela.

Luísa corou, sorriu; através da fazenda clara e transparente do vestido, entrevia-se a brancura macia e láctea do colo e dos braços; e nos seus olhos, na cor quente do rosto havia uma animação e como uma vitalidade amorosa.

Basílio disse-lhe, baixo:

— Estás hoje nos teus dias felizes, Luísa.

O olhar dele, tão ávido, perturbava-a; insistiu:

— Canta alguma coisa.

O seu seio arfava.

— Canta tu - murmurou Basílio.

E devagarinho, tomou-lhe a mão. As duas palmas um pouco úmidas, um pouco trêmulas, uniram-se.

A campainha, fora, tocou. Luísa desprendeu a mão, bruscamente.

— É alguém - disse agitada.

Vozes baixas falavam à cancela.

Basílio teve um movimento de ombros contrariado; foi buscar o chapéu.

— Vais-te? - exclamou ela toda desconsolada.

— Pudera! Não posso estar só contigo um momento!

A cancela fechou-se com ruído. Não é ninguém, foi-se - disse Luísa.

Estavam de pé, no meio da sala.

— Não te vás! Basílio!

Os seus olhos profundos tinham uma suplicação doce. Basílio pousou o chapéu sobre o piano; mordia o bigode um pouco nervoso.

— E para que queres tu estar só comigo? - disse ela. - Que tem que venha gente? - E arrependeu-se logo daquelas palavras.

Mas Basílio, com um movimento brusco, passou-lhe o braço sobre os ombros, prendeu-lhe a cabeça, e beijou-a na testa, nos olhos, nos cabelos, vorazmente.

Ela soltou-se a tremer, escarlate.

— Perdoa-me - exclamou ele logo, com um ímpeto apaixonado. - Perdoa-me. Foi sem pensar. Mas é porque te adoro, Luísa!

Tomou-lhe as mãos com domínio, quase com direito.

— Não. Hás de ouvir. Desde o primeiro dia que te tornei a ver estou doido por ti, como dantes, a mesma coisa. Nunca deixei de me morrer por ti. Mas não tinha fortuna, tu bem o sabes, e queria-te ver rica, feliz. Não te podia levar para o Brasil. Era matar-te, meu amor! Tu imaginas lá o que aquilo é! Foi por isso que te escrevi aquela carta, mas o que eu sofri, as lágrimas que chorei!

Luísa escutava-o imóvel, a cabeça baixa, o olhar esquecido; aquela voz quente e forte, de que recebia o bafo amoroso, dominava-a, vencia-a; as mãos de Basílio penetravam com o seu calor febril a substância das suas; e, tomada de uma lassidão, sentia-se como adormecer.

— Fala, responde! - disse ele ansiosamente, sacudindo-lhe as mãos, procurando o seu olhar avidamente.

— Que queres que te diga? - murmurou ela.

A sua voz tinha um tom abstrato, mal-acordado.

E desprendendo-se devagar, voltando o rosto:

— Falemos noutras coisas!

Ele balbuciava com os braços estendidos:

— Luísa! Luísa!

— Não, Basílio, não!

E na sua voz havia o arrastado de uma lamentação, com a moleza de uma carícia.

Ele então não hesitou, prendeu-a nos braços.

Luísa ficou inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados - e Basílio, pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a cabeça para trás, beijou-lhe as pálpebras devagar, a face, os lábios depois muito profundamente; os beiços dela entreabriram-se; os seus joelhos dobraram-se.

Mas de repente todo o seu corpo se endireitou, com um pudor indignado, afastou o rosto, exclamou aflita:

— Deixa-me, deixa-me!

Viera-lhe uma força nervosa; desprendeu-se, empurrou-o; e passando as mãos abertas pela testa, pelos cabelos:

— Oh meu Deus! É horrível! - murmurou. - Deixa-me! É horrível!

Ele adiantava-se com os dentes cerrados; mas Luísa recuava, dizia:

Vai-te. Que queres tu? Vai-te! Que fazes tu aqui? Deixa-me!

Ele então tranqüilizou-a com a voz subitamente serena e humilde. Não percebia. Por que se zangava? Que tinha um beijo? Ele não pedia mais. Que tinha ela imaginado, então? Adorava-a, decerto, mas puramente.

— Juro-to! - disse com força, batendo no peito.

Fê-la sentar no sofá, sentou-se ao pé dela. Falou-lhe muito sensatamente: - Via as circunstâncias, e resignar-se-ia. Seria como uma amizade de irmãos, nada mais.

Ela escutava-o, esquecida.

Decerto, dizia ele, aquela paixão era uma tortura imensa. Mas era forte, a Só queria vir vê-la, falar-lhe. Seria um sentimento ideal. - E os seus devoraram-na.

Voltou-lhe a mão, curvou-se, pôs-lhe um beijo cheio na palma. Ela estremeceu-se logo:

— Não! Vai-te!

— Bem, adeus.

Levantou-se com um movimento resignado e infeliz. E limpando devagar a seda do chapéu.

— Bem, adeus - repetiu melancolicamente.

— Adeus

Basílio disse então com muita ternura:

— Estás zangada?

— Não!

— Escuta - murmurou, adiantando-se.

Luísa bateu com o pé.

— Oh, que homem! Deixa-me! Amanhã. Adeus. Vai-te! Amanhã!

— Amanhã! - disse ele, baixinho.

E saiu rapidamente.

Luísa entrou no quarto toda nervosa. E ao passar diante do espelho ficou surpreendida: nunca se vira tão linda! Deu alguns passos calada.

Juliana arrumava roupa branca num gavetão do guarda-vestidos. Quem tocou há bocado? - perguntou Luísa.

— Foi o Sr. Sebastião. Não quis entrar; disse que voltava.

Tinha dito, com efeito, que voltava. Mas começava quase a envergonhar-se de vir assim todos os dias, e encontrá-la sempre "com uma visita!"

Logo no primeiro dia ficara muito surpreendido quando Juliana lhe disse:

— Um sujeito! Um rapaz novo que já cá esteve ontem!" Quem seria? todos os amigos da casa... Seria algum empregado da secretaria ou algum proprietário de minas, o filho do Alonso, talvez; um negócio de Jorge decerto...

Depois no domingo, à noite, trazia-lhe a partitura de Romeu e Julieta, de Gounod, que ela desejava tanto ouvir, e quando Juliana lhe disse da varanda que tinha saído com D. Felicidade de carruagem, ficou muito embaraçado com o grosso volume debaixo do braço, coçando devagar a barba. Onde teriam ido? Lembrou-se do entusiasmo de D. Felicidade pelo Teatro de D. Maria. Mas irem sós, naquele calor de julho, ao teatro! Enfim, era possível. Foi a D. Maria.

O teatro, quase vazio, estava lúgubre; aqui e além, nalgum camarote, uma família feia perfilava-se, com cabelos negríssimos carregados de postiços, gozando soturnamente a sua noite de domingo; na platéia, à larga nas bancadas vazias, pessoas avelhadas e inexpressivas escutavam com um ar encalmado e farto, limpando a espaços, com lenços de seda, o suor dos pescoços; na geral, gente de trabalho arregalava olhos negros em faces trigueiras e oleosas; a luz tinha um tom dormente; bocejava-se. E no palco, que representava uma sala de baile amarela, um velhote condecorado falava a uma magrita de cabelos riçados, sem cessar, com o tom diluído de uma água gordurosa e morna que escorre.

Sebastião saiu. Onde estariam? Soube-se na manhã seguinte.- Descia o Moinho de Vento, e um vizinho, o Neto, que subia curvado sob o seu guarda-sol, com o cigarro ao canto do bigode grisalho, deteve-o bruscamente, para lhe dizer:

— Ó amigo Sebastião, ouça cá. Vi ontem à noite no Passeio a D. Luísa com um rapaz que eu conheço. Mas de onde conheço eu aquela cara? Quem diabo é?

Sebastião encolheu os ombros.

— Um rapaz alto, bonito, com um ar estrangeirado. Eu conheço-o. Noutro dia vi-o entrar para lá. Você não sabe?

Não sabia.

— Eu conheço aquela cara. Tenho estado a ver se me recordo... Passava a mão pela testa. - Eu conheço aquela cara! Ele é de Lisboa. De Lisboa é ele!

E depois de um silêncio, fazendo girar o guarda-sol:

— E que há de novo, Sebastião?

Também não sabia. Nem eu!

E bocejando muito:

— Isto está uma pasmaceira, homem!

Nessa tarde, às quatro horas, Sebastião voltou à casa de Luísa. Estava com "o sujeito!" Ficou então preocupado. Decerto era algum negócio de Jorge; porque não compreendia que ela falasse, sentisse, vivesse, que não fosse no interesse da casa e para maior felicidade de Jorge. Mas devia ser grave então - para reclamar visitas, encontros, tantas relações. Tinham pois interesses importantes que ele não conhecia! E aquilo parecia-lhe uma ingratidão, e como uma diminuição de amizade.

A tia Joana tinha-o achado "macambúzio".

Foi ao outro dia que soube que o sujeito era o primo Basílio, o Basílio de Brito. O seu vago desgosto dissipou-se, mas um receio mais definido veio inquietá-lo Sebastião não conhecia Basílio pessoalmente, mas sabia a crônica da sua mocidade. Não havia nela certamente, nem escândalo excepcional, nem romance pungente. Basílio tinha sido apenas um pândego e, como tal, passara metodicamente por todos os episódios clássicos da estroinice lisboeta: - partidas de monte até de madrugada com ricaços do Alentejo; uma tipóia despedaçada num sábado de touros; ceias repetidas com alguma velha Lola e uma antiga salada de lagosta; algumas pegas aplaudidas em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de Colares nas tabernas fadistas; muita guitarra; socos bem jogados à face atônita de um polícia; e uma profusão de gemas de ovos nas glórias do Entrudo. As únicas mulheres mesmo que apareciam na sua história, além das Lolas e das Carmens usuais, eram a PisteIli, uma dançarina alemã cujas pernas tinham uma musculatura de atleta, e a Condessinha de Alvim, uma doida, grande cavaleira, que se separara de seu marido depois de o ter chicotado, e que se vestia de homem para bater ela mesma em trem de praça do Rossio ao Dafundo. Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai; que mesmo na Bahia, com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador; e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento dos vícios. E este homem agora vinha ver a Luisinha todos os

dias, estava horas e horas, seguia-a ao Passeio...

Para quê?... Era claro, para a desinquietar!

Ia justamente descendo a rua, dobrado sob a pesada desconsolação destas idéias quando uma voz encatarroada disse com respeito:

— Ó Sr. Sebastião!

Era o Paula dos móveis.

— Viva, Sr. João.

O Paula atirou para as pedras da rua um jato escuro de saliva, e com as mãos cruzadas debaixo das abas do comprido casaco de cotim, o tom grave:

— Ó Sr. Sebastião, há doença cá por casa do senhor engenheiro?

Sebastião todo surpreendido:

— Não. Por quê?

O Paula fez roncar a garganta, cuspilhou:

— É que tenho visto entrar para cá todos os dias um sujeito. Imaginei que fosse o médico.

E puxando o escarro:

— Desses novos da homeopatia!

Sebastião tinha corado.

— Nada - disse. - É o primo de D. Luísa.

— Ah! - fez o Paula. - Pois pensei... Queira desculpar, Sr. Sebastião.

E curvou-se respeitosamente.

— Já temos falatório! - foi pensando Sebastião.

E entrou em casa, descontente.

Morava ao fundo da rua, num prédio seu, de construção antiga, com quintal.

Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscrições, terras de lavoura para o lado de Seixal, e a quinta em Almada - o Rozegal. As duas criadas eram muito antigas na casa. A Vicência, a cozinheira, era uma preta de São Tomé já do tempo da mamã. A tia Joana, a governanta, servia-o havia trinta e cinco anos; chamava ainda a Sebastião o "menino"; tinha já as tontices de uma criança, e recebia sempre os respeitos de uma avó. Era do Porto, do Poârto, como ela dizia, porque nunca perdera o seu acento minhoto. Os amigos de Sebastião chamavam-lhe uma velha de comédia. Era baixinha e gorda, com um sorriso muito bondoso; tinha os cabelos alvos como uma estriga, atados no alto num rolinho com um antigo pente de tartaruga; trazia sempre um vasto lenço branco muito asseado, traçado sobre o peito. E todo o dia passarinhava pela casa, com o seu passinho arrastado, fazendo tilintar os molhos de chaves, resmungando provérbios, tomando rapé de uma caixa redonda, em cuja tampa se lascava o desenho abonecado da ponte pênsil do Porto.

Em toda a casa havia um tom caturra e doce; na sala de visitas, quase sempre fechada, o vasto canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do tempo do senhor D. José I, e os estofos de damasco vermelho desbotado lembravam a pompa de uma corte decrépita; das paredes da casa de jantar pendiam as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão, onde se vê invariavelmente, numa eminência, o cavalo branco, para o qual galopa desenfreadamente do primeiro plano um hussardo, brandindo um sabre. Sebastião dormia os seus sonos de sete horas, sem sonhos, numa velha barra de pau preto torneado; e numa saleta escura, sobre uma cômoda de fecharias de metal amarelo, conservava-se, havia anos, o padroeiro da casa, São Sebastião - que se torcia, cravado de setas, nas cordas que o atavam ao tronco, à luz de uma lâmpada, muito cuidada pela tia Joana, sob os ruídos sutis dos ratos pelo forro.

A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um gênio antiquado. Era solitário e acanhado. Já no Latim lhe chamavam o "Peludo"; punham-lhe rabos, roubavam-lhe impudentemente as merendas. Sebastião, que tinha a força de um ginasta, oferecia a resignação de um mártir.

Foi sempre reprovado nos primeiros exames do liceu. Era inteligente, mas uma pergunta, o reluzir dos óculos de um professor, a grande lousa negra imobilizavam-no; ficava muito embezerrado, a face inchada e rubra, a coçar os joelhos, o olhar vazio.

Sua mãe, que era da aldeia e que fora padeira, muito vaidosa agora das suas inscrições, da sua quinta, da sua mobília de damasco, sempre vestida de seda, carregada de anéis, costumava dizer:

— Ora! Tem que comer e beber! Estar a afligir a criança com estudos! deixa lá!

A inclinação de Sebastião era pela música. Sua mãe, por conselhos da mãe de Jorge, sua vizinha e sua íntima, tomou-lhe um mestre de piano; logo desde as primeiras lições, a que ela assistia com enfeites de veludo vermelho e cheia de jóias, o velho professor Aquiles Bentes, de óculos redondos e cara de coruja, excitado com a sua voz nasal:

— Minha rica senhora! O seu menino é um gênio! É um gênio! Há de ser um Rossini! É puxar por ele! É puxar por ele!

Mas era justamente o que ela não queria, era puxar por ele, coitadinho! Por isso não foi um Rossini. E todavia o velho Bentes continuava a dizer, por hábito:

— Há de ser um Rossini! Há de ser um Rossini!

Somente em lugar de o gritar, brandindo papéis de música, murmurava-o, os enormes de leão enfastiado.

Já então os dois rapazes vizinhos, Jorge e Sebastião, eram íntimos. Jorge mais inventivo, dominava-o. No quintal, a brincar, Sebastião era sempre nas imitações da diligência, o vencido nas guerras. Era Sebastião que carregava os pesos, que oferecia o dorso para Jorge trepar; nas merendas comia igual, deixava a Jorge toda a fruta. Cresceram. E aquela amizade sempre amuos, tornou-se na vida de ambos um interesse essencial e permanente.

Quando a mãe de Jorge morreu, pensaram mesmo em viver juntos; habitariam a casa de Sebastião, mais larga e que tinha quintal; Jorge queria comprar um cavalo, mas conheceu Luísa no Passeio, e daí a dois meses passava quase todo o seu dia na Rua da Madalena.

Todo aquele plano jovial da Sociedade Sebastião e Jorge - chamavam-lhe assim, rindo - desabou, como um castelo de cartas. Sebastião teve um grande pesar.

E era ele, depois, que fornecia os ramos de rosas que Jorge levava a Luísa, sem espinhos, com cuidados devotos, embrulhados num papel de seda. Era ele que tratava dos arranjos do "ninho", ia apressar os estofadores, discutir preços de roupas, vigiar o trabalho dos homens que pregavam os tapetes, conferenciar com a inculcadeira, cuidar dos papéis do casamento!

E à noite, fatigado como um procurador zeloso, tinha ainda de escutar com as expansões felizes de Jorge, que passeava pelo quarto até ás duas horas da noite, em mangas de camisa, namorado, loquaz, brandindo o cachimbo!

Depois do casamento Sebastião sentiu-se muito só. Foi a Portel visitar um Velho esquisito, com um olhar de doido, que passava a existência combinando enxertos no pomar, e lendo, relendo o Eurico. Quando voltou, passado um mês, Jorge disse-lhe radioso:

— E sabes, hem? Isto agora é que é a tua casa! Aqui é que tu vives!

Mas nunca obteve de Sebastião que fosse a sua casa com uma inteira intimidade. Sebastião batia à porta, timidamente. Corava diante de Luísa; o antigo "Peludo" de Latim reaparecia. Jorge lutara para que ele cruzasse sem cerimônia as pernas, fumasse cachimbo diante dela, não lhe dissesse a todo o momento: - "Vossa Excelência" - meio erguido na cadeira.

Nunca vinha jantar senão arrastado. Quando Jorge não estava, as suas visitas eram curtas, cheias de silêncio. Julgava-se gebo, tinha medo de maçar.

Nessa tarde, quando ele foi para a sala de jantar, a tia Joana veio-lhe perguntar pela Luisinha.

Adorava-a, achava-a um anjinho, uma açucena.

— Como está ela? Viu-a?

Sebastião corou; não quis dizer, como na véspera, que estava gente, que não tinha entrado; e abaixando-se, pondo-se a brincar com as orelhas do Trajano, o seu velho perdigueiro:

— Está boa, tia Joana, está boa. Então como há de estar? Está ótima!

Àquela hora Luísa recebia uma carta de Jorge. Era de Portel, com muitas queixas sobre o calor, sobre as más estalagens, histórias sobre o extraordinário parente de Sebastião - saudades e mil beijos...

Não a esperava, e aquela folha de papel cheia de uma letra miudinha, que lhe fazia reaparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura, deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda a vergonha dos seus desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe as faces. Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que ele lhe dissera; com que olhos a devorara!... Recordava tudo - a sua atitude, o calor das suas mãos, a tremura da sua voz... E maquinalmente, pouco e pouco, ia-se esquecendo naquelas recordações, abandonando-se-lhes, até ficar perdida na deliciosa lassidão que elas lhe davam, com o olhar lânguido, os braços frouxos. Mas a idéia de Jorge vinha então outra vez fustigá-la como uma chicotada. Erguia-se bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade de chorar...

— Ah! Não! É horroroso, é horroroso! - dizia só, falando alto. - E necessário acabar!

Resolveu não receber Basílio, escrever-lhe, pedir-lhe que não voltasse, que partisse! Meditava mesmo as palavras; seria seca e fria, não diria "meu querido primo", mas simplesmente "primo Basílio".

E que faria ele, quando recebesse a carta? Choraria, coitado!

Imaginava-o só, no seu quarto de hotel, infeliz e pálido; e daqui, pelos declives da sensibilidade, passava à recordação da sua pessoa, da sua voz convincente, das turbações do seu olhar dominante; e a memória demorava-se naquelas lembranças com uma sensação de felicidade, como a mão se esquece acariciando a plumagem doce de um pássaro raro. Sacudia a cabeça com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era! - E do fundo da sua natureza de preguiçosa vinha-lhe uma indefinida indignação contra Jorge, contra Basílio, contra os sentimentos, contra os deveres, contra tudo o que a fazia agitar-se e sofrer. Que a não secassem, Santo Deus!

Depois de jantar, à janela da sala, ficou a reler a carta de Jorge. Pôs-se a recordar de propósito tudo o que a encantava nele, do seu corpo e das suas qualidades. E juntava ao acaso argumentos, uns de honra, outros de sentimento, para o amar, para o respeitar. Tudo era por ele estar fora, na província! Se ele ali estivesse ao pé dela! Mas tão longe, e demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra a sua vontade, a certeza daquela ausência dava-lhe uma sensação de liberdade; a idéia de se poder mover à vontade nos desejos, nas curiosidades, enchia-lhe o peito de um contentamento largo, como uma lufada de independência.

Mas enfim, vamos, de que lhe servia estar livre, só? - E de repente tudo o que poderia fazer, sentir, possuir, lhe apareceria numa perspectiva longa que fulgurava; aquilo era como uma porta, subitamente aberta e fechada, que deixa entrever, num relance, alguma coisa de indefinido, de maravilhoso, que palpita e faísca - Oh! Estava doida, decerto!

Escureceu. Foi para a sala, abriu a janela; a noite estava quente e espessa, com um ar de eletricidade e de trovoada. Respirava mal; olhava para o céu, desejando alguma coisa fortemente, sem saber o quê.

O moço do padeiro embaixo, como sempre, tocava o fado; aqueles sons entravam-lhe agora na alma, com a brandura de um bafo quente e a melancolia de um gemido.

Encostou a cabeça à mão como uma lassidão. Mil pensamentozinhos corriam-lhe no cérebro como os pontos de luz que correm num papel que se queimou; lembrava-lhe sua mãe, o chapéu novo que lhe mandara M.me François, o tempo que faria em Sintra, a doçura das noites quentes sob a escuridão das ramagens...

Fechou a janela, espreguiçou-se; e sentada na causeuse, no seu quarto, ficou ali, numa imobilidade, pensando em Jorge, em lhe escrever, em lhe pedir

que viesse. Mas bem depressa aquele cismar começou a quebrar-se a cada momento como uma tela que se esgaça em rasgões largos, e por trás aparecia logo como uma intensidade luminosa e forte a idéia do primo Basílio.

As viagens, os mares atravessados tinham-no tornado mais trigueiro; a melancolia da separação dera-lhe cabelos brancos. Tinha sofrido por ela! - E no fim onde estava o mal? Ele jurara-lhe que aquele amor era casto, passando-se todo na alma. Tinha vindo de Paris, o pobre rapaz, assim lho jurara, a ver, uma semana, quinze dias. E havia de dizer-lhe: "Não voltes; vai-te"?

Quando a senhora quiser o chá... - disse da porta do quarto Juliana.

Luísa deu um suspiro alto como acordando. Não; que trouxesse a lamparina, mais tarde.

Eram dez horas. Juliana foi tomar o seu chá à cozinha. O lume ia-se apagando, o candeeiro de petróleo estendia nos cobres dos tachos reflexos avermelhados.

— Hoje houve coisa, Sra. Joana - disse Juliana sentando-se. - Está toda no ar! E é cada suspiro! Ali houve-a e grossa.

Joana, do outro lado, com os cotovelos na mesa e a face sobre os punhos, pestanejava de sono.

— A Sra. Juliana, também, deita tudo para o mal - disse.

— É que era necessário ser tola, Sra. Joana!

Calou-se, cheirou o açúcar; era um dos seus despeitos; gostava dele bem refinado - e aquele açúcar mascavado e grosso, que punha no chá um gosto de formigas, exasperava-a.

— Este é pior que o do mês passado! Para uma pobre de Cristo tudo é bom! - rosnou muito amargamente.

E depois de uma pausa repetiu:

— É que era necessário ser tola, Sra. Joana!

A cozinheira disse preguiçosamente:

— Cada um sabe de si...

— E Deus de todos - suspirou Juliana.

E ficaram caladas.

Luísa tocou a campainha embaixo.

— Que teremos nós agora? Está com as cócegas.

Desceu. Voltou com o regador, muito enfastiada:

— Quer mais água! Olha a mania; pôs-se agora a chafurdar à meia-noite! Sempre a gente as vê...

Foi encher o regador, e enquanto a água da torneira cantava no fundo da lata:

— E diz que lhe faça amanhã ao almoço um bocado de presunto frito, do salgado. Quer picantes!

E com muito escárnio:

— Sempre a gente vê coisas! Quer picantes!

À meia-noite a casa estava adormecida e apagada. Fora, o céu enegrecera mais; relampejou, e um trovão seco estalou, rolou.

Luísa abriu os olhos estremunhada; começara a cair uma chuva grossa e sonora; a trovoada arrastava-se, ao longe. Esteve um momento escutando as goteiras que cantavam sobre o lajedo; a alcova abafava, descobriu-se; o sono tinha fugido, e de costas, o olhar fixo na vaga claridade que vinha de fora da lamparina, seguia o tique-taque do relógio. Espreguiçou-se, e uma certa idéia, uma certa visão foi-se formando no seu cérebro, completando-se tão nítida, quase tão visível, que se revirou na cama devagar, estirou os braços, lançou-os em roda do travesseiro, adiantando os beiços secos - para beijar uns cabelos negros onde reluziam fios brancos.

Sebastião tinha dormido mal. Acordou às seis horas e desceu ao quintal em chinelas. Uma porta envidraçada da sala de jantar abria para um terraçozinho, largo apenas para três cadeiras de ferro pintado e alguns vasos de cravos; dali, quatro degraus de pedra desciam para o quintal; era uma horta ajardinada, muito cheia, com canteirinhos de flores, saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros, um poço e um tanque debaixo de uma parreirita, e árvores; terminava por um outro terraço assombreado de uma tília, com um parapeito para uma rua baixa e solitária; defronte corria um muro de quintal muito caiado. Era um sitio recolhido, de uma paz aldeã. Muitas vezes Sebastião, de madrugada, ia para ali fumar o seu cigarro.

Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céu arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas e, aqui e além, uma nuvenzinha algodoada, molemente enrolada, cor de leite; a folhagem tinha verde lavado a água do tanque uma cristalinidade fria; pássaros chilreavam de leve com vôos rápidos.

Sebastião estava debruçado para a rua, quando a ponteira de uma bengala, passos vagarosos cortaram o silêncio fresco. Era um vizinho de Jorge, o Cunha Rosado, o doente de intestinos; arrastava-se, curvado, abafado num cachenê e num paletó cor de pinhão, com a barba grisalha desmazelada, a crescer.

— Já a pé vizinho! - disse Sebastião.

O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.

— Oh, Sebastião! - disse com uma voz plangente. - Ando a passear os meus leites, homem!

— A pé?

— Ao princípio ia na burrita até fora de portas, mas diz que me fazia bem o passeiozito a pé...

Encolheu os ombros com um gesto triste de dúvida, de desconsolação.

— E como vai isso? - perguntou Sebastião, muito debruçado para a rua, com afeto.

O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:

— A desfazer-se!

Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma consolação.

— Mas o doente, com as duas mãos apoiados à bengala, uma súbita radiação de interesse no olhar amortecido:

— Ó Sebastião, um rapaz alto, que eu tenho visto todos estes dias entrar pala casa do Jorge, é o Basílio de Brito, pois não é? O primo da mulher? O filho do João de Brito?

— É, sim, por quê?

O Cunha fez: "Ah! Ah!" com uma grande satisfação.

— Bem dizia eu! - exclamou. - Bem dizia eu! E aquela teimosa que não! Que não!...

E então explicou com uma tagarelice súbita, e cansaços de voz:

— O meu quarto é para a rua, e todos os dias, como eu estou quase sempre pela janela para espairecer... tenho visto aquele rapaz, a modo estrangeirado, entrar para lá... todos os dias! "Este é o Basílio de Brito!" disse eu. Mas a minha mulher que não! Que não!... Que diabo, homem! Eu tinha quase a certeza... Não conheço eu outra coisa!... Até ele esteve para casar com a D. Luísa. Oh! Eu sei essa história na ponta dos dedos... Morava ela na Rua da Madalena!

Sebastião disse vagamente:

— Pois é, é o Brito...

— Bem dizia eu!

Ficou um momento imóvel, fitando o chão, e refazendo uma voz dolente:

— Pois, vou-me arrastando até casa.

Suspirou. E arregalando os olhos:

— Quem me dera a sua saúde, Sebastião!

E dizendo adeus, com um gesto da mão calçada de luva de casimira escura, afastou-se, curvado, rente do muro, conchegando com o braço ao ventre, o seu largo paletó cor de pinhão.

Sebastião entrou preocupado. Todo o mundo começava a reparar, hem! Pudera! Um rapaz novo, janota, vir todos os dias de trem, estar duas, três horas! Uma vizinhança tão chegada, tão maligna!...

Ao começo da tarde saiu. Teve vontade de procurar Luísa; mas sem saber por quê, sentia um grande acanhamento; como que receava encontrá-la diferente ou com outra expressão... E subia a rua devagar, sob o seu guarda-sol, hesitando, quando um cupê que descia a trote largo veio parar à porta de Luísa.

Um sujeito saltou rapidamente, atirou o charuto, entrou. Era alto, com um bigode levantado, trazia uma flor, no peito; devia ser o primo Basílio, pensou. O cocheiro limpou o suor da testa, e, cruzando as pernas, pôs-se a enrolar o cigarro.

Ao ruído do trem o Paula postou-se logo à porta, de boné carregado, as mãos enterradas no bolso, com olhares de revés; a carvoeira defronte, imunda, disforme de obesidade e de prenhez, veio embasbacar com um pasmo lorpa na face oleosa; a criada do doutor abriu precipitadamente a vidraça. Então o Paula atravessou rapidamente a rua faiscante de sol, entrou no estanque; daí a um momento apareceu à porta, com a estanqueira, de carão viúvo; e cochichavam, cravavam olhares pérfidos nas varandas de Luísa, no cupê! O Paula, dali, arrastando as chinelas de tapete, foi segredar com a carvoeira; provocou-lhe uma risada que lhe sacudia a massa do seio; e foi enfim estacar à sua porta entre um retrato de D. João VI e duas velhas cadeiras de couro, assobiando com júbilo. No silêncio da rua ouvia-se num piano, a compasso de estudo, a Oração de uma virgem.

Sebastião ao passar olhou maquinalmente para as janelas de Luísa.

— Rico calor, Sr. Sebastião! - observou o Paula curvando-se. - E um regalo estar à fresca!

Luísa e Basílio estavam muito tranqüilos, muito felizes na sala, com as portadas meio cerradas, numa penumbra doce. Luísa tinha aparecido de roupão branco, muito fresca, com um bom cheiro de água de alfazema.

— Eu venho assim mesmo - disse ela. - Não faço cerimônias.

Mas assim é que ela estava linda! Assim é que a queria sempre! - exclamou Basílio muito contente, como se aquele roupão de manhã fosse já uma promessa da sua nudez.

Vinha muito tranqüilo, afetava um tom de parente. Não a inquietou com palavras veementes, nem com gestos desejosos; falou-lhe do calor, de uma zarzuela que vira na véspera, de velhos amigos que encontrara, e disse-lhe apenas que tinha sonhado com ela.

O quê? Que estavam longe, numa terra distante, que devia ser a Itália, tantas as estátuas que havia nas praças, tantas as fontes sonoras que cantavam nas bacias de mármore; era num jardim antigo, sobre um terraço clássico; flores raras transbordavam de vasos florentinos; pousando sobre as balaustradas esculpidas, pavões abriam as caudas; e ela arrastava devagar sobre as lajes quadradas a cauda longa do seu vestido de veludo azul. De resto, dizia, era um terraço como de São Donato, a vila do Príncipe Demidoff - porque lembrava sempre as suas intimidades ilustres, e não se descuidava de fazer reluzir a glória das suas viagens.

E ela, tinha sonhado?

Luísa corou. - Não, tinha tido muito medo da trovoada. Tinha ouvido a trovoada, ele?

— Estava a cear no Grêmio, quando trovejou.

— Costumas cear?

Ele teve um sorriso infeliz. - Cear! Se se podia chamar cear ir ao Grêmio rilhar um bife córneo e tragar um Colares peçonhento!

E fitando-a:

— Por tua causa, ingrata!

— Por sua causa?

— Por quem, então? Por que vim eu a Lisboa? Por que deixei Paris?

— Por causa dos teus negócios...

Ele encarou-a severamente:

— Obrigado - disse, curvando-se até ao chão.

E a grandes passadas pela sala soprava violentamente o fumo do seu charuto.

Veio sentar-se bruscamente ao pé dela. - Não, realmente era injusta. Se em Lisboa, era por ela. Só por ela!

Fez uma voz meiga; perguntou-lhe se lhe tinha realmente um bocadinho de amor muito pequenino, assim... - Mostrava o comprimento da unha.

Riram.

— Assim, talvez.

E o peito de Luísa arfava.

Ele então examinou-lhe as unhas; admirou-lhas e aconselhou-lhe o verniz que usam as cocotes, que lhes dá um lustre polido; ia-se apossando da sua mão, pôs-lhe um beijo na ponta dos dedos; chupou o dedo mínimo, jurou que era muito doce; arranjou-lhe com um contato muito tímido uns fios de cabelos que se tinham soltado - e, disse, tinha um pedido a fazer-lhe!

Olhava-a com uma suplicação.

— Que é?

— É que venhas comigo ao campo. Deve estar lindo no campo!

Ela não respondeu; dava pancadinhas leves nas pregas moles do roupão.

— É muito simples - acrescentou ele. - Tu vais-me encontrar a qualquer parte, longe daqui, está claro. Eu estou à espera de ti com uma carruagem, tu saltas para dentro e fouette, cocher!

Luísa hesitava.

— Não digas que não.

— Mas onde?

— Onde tu quiseres. A Paço de Arcos, a Loures, a Queluz. Dize que sim.

A sua voz era muito urgente; quase ajoelhara.

— Que tem? É um passeio de amigos, de irmãos.

— Não! Isso não!

Basílio zangou-se, chamou-lhe beata. Quis sair. Ela veio tirar-lhe o chapéu da mão, muito meiga, quase vencida.

— Talvez, veremos - dizia.

— Dize que sim! - insistia. - Sê boa rapariga!

— Pois sim, amanhã veremos; amanhã falaremos.

Mas no dia seguinte, muito habilmente, Basílio não falou no passeio, nem no campo. Não falou também do seu amor, nem dos seus desejos. Parecia muito alegre, muito superficial; tinha-lhe trazido o romance de Belot, À Mulher de Fogo. E sentando-se ao piano, disse-lhe canções de café-concerto, muito picantes; imitava a rouquidão acre e canalha das cantoras; fê-la rir.

Depois falou muito de Paris; contou-lhe a moderna crônica amorosa, anedotas, paixões chiques. Tudo se passava com duquesas, princesas, de um modo dramático e sensibilizador, às vezes jovial, sempre cheio de delícias. E, de todas as mulheres de que falava, dizia recostando-se: era uma mulher distintíssima; tinha naturalmente o seu amante...

O adultério aparecia assim um dever aristocrático. De resto a virtude parecia ser, pelo que ele contava, o defeito de um espírito pequeno, ou a ocupação reles de um temperamento burguês...

E quando saiu, disse, como recordando-se:

— Sabes que estou com minhas idéias de partir?...

Ela perguntou, um pouco descorada:

— Por quê?

Basílio disse, muito indiferente:

— Que diabo faço eu aqui?... Esteve um momento a fitar o tapete, deu um suspiro, e como dominando-se:

— Adeus, meu amor...

E saiu.

Quando nessa tarde Luísa entrou na sala de jantar, levava os olhos vermelhos.

Foi ela no dia seguinte que falou do campo. Queixou-se do continuo calor, da seca de Lisboa. Como devia estar lindo em Sintra!

— És tu que não queres - acudiu ele. - Podíamos fazer um passeio adorável.

Mas tinha medo, podiam ver...

— O quê! Num cupê fechado? Com os estores descidos?

Mas então era pior que estar numa sala; era abafar numa boceta! Mas não! Iam a uma quinta. Podiam ir às Alegrias, à quinta de um amigo que estava em Londres. Só viviam lá os caseiros; era ao pé dos Olivais; era lindo! Belas ruas de loureiros, sombras adoráveis. Podiam levar gelo, champanhe...

— Vem! - disse bruscamente, tomando-lhe as mãos.

Ela corou. - Talvez. No domingo veria.

Basílio conservava-lhe as mãos presas. Os seus olhos encontraram-se, umedeceram-se. Ela sentiu-se muito perturbada: desprendeu as mãos; foi abrir as vidraças ambas, dar à sala uma claridade larga como uma publicidade; sentou-se numa cadeira ao pé do piano, receando a penumbra, o sofá, todas as cumplicidades; e pediu-lhe que cantasse alguma coisa, porque já temia as palavras, tanto como os silêncios! Basílio cantou a Medjé, a melodia de Gounod, tão sensual e perturbadora. Aquelas notas quentes passavam-lhe na alma como bafos de uma noite elétrica. E quando Basílio saiu, ficou sentada, quebrada, como depois de um excesso.

Sebastião tinha estado nos últimos três dias em Almada, na Quinta do onde trazia obras.

Voltara na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janela de jantar que abria para o terraçozinho, esperava o seu almoço, brincando com o Rolim - o seu gato, amigo e confidente da ilustre Vicência, nédio como um prelado, ingrato como um tirano.

A manhã começava a aquecer; o quintal estava já cheio de sol; na água do tanque, sob a parreira, claridades espelhadas e trêmulas faiscavam. Nas duas gaiolas os canários cantavam estridentemente.

A tia Joana, que andava a arranjar a mesa do almoço muito calada, pôs-se então a dizer com a sua vozinha arrastada e minhota:

— Ora, esteve aí ontem a Gertrudes, a do doutor, com uns palratórios, com umas tontices!...

— A respeito de quê, tia Joana? - perguntou Sebastião.

— A respeito de um rapaz, que diz que vai agora todos os dias à casa da Luisinha.

Sebastião ergueu-se logo:

— Que disse ela, tia Joana?

A velha assentava a toalha devagar com a sua mão gorducha espalmada:

— Esteve ai a palrar. Quem seria, quem não seria? Diz que é um perfeito rapaz. Vem todos os dias. Vem de trem, vai de trem... No sábado, que estivera até quase à noitinha. E cantou-se na sala, diz que uma voz que nem no teatro...

Sebastião interrompeu-a, impaciente:

— É o primo, tia Joana. Então quem havia de ser? É o primo que chegou do Brasil.

A tia Joana teve um bom sorriso.

— Eu logo vi que era coisa de parente. Pois diz que é um perfeito rapaz! E todo janota!

E saindo para a cozinha, devagar:

— Eu logo vi que era parente, logo disse!...

Sebastião almoçou inquieto. Positivamente a vizinhança já se punha a mexericar, a comentar! Estava-se a armar um escândalo! - E, assustado, decidiu-se logo a ir consultar Julião.

Descia a Rua de São Roque para casa dele, quando o viu, que subia devagar pela sombra, com um rolo de papel debaixo do braço, uma calça branca enxovalhada, o ar suado.

— Ia a tua casa, homem! - disse Sebastião logo.

Julião estranhou a excitação desusada da sua voz.

Havia alguma novidade? Que era?

— Uma do diabo! - exclamou, baixo, Sebastião.

Estavam parados ao pé da confeitaria. Na vidraça, por trás deles, emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de marmelada esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco aglomeravam as suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos medonha e bojuda, com o ventre de um amarelo ascoroso, o dorso malhado de arabescos de açúcar, a boca escancarada; na sua cabeça grossa esbugalhavam-se dois horríveis olhos de chocolates; os seus dentes de amêndoa ferravam-se numa tangerina de chila; e em torno do monstro espapado moscas esvoaçavam.

— Vamos ali para o café - disse Julião. - Aqui na rua arde-se!

— Tenho estado apoquentado - ia dizendo Sebastião. - Muito apoquentado! Quero falar-te.

No café o papel azul-ferrete e as meias portas fechadas abatiam a áspera intensidade da luz, davam uma frescura calada.

Foram-se sentar ao fundo. Do outro lado da rua as fachadas muito caiadas brilhavam com uma radiação faiscante. Por trás do balcão, onde reluziam garrafas de cristal, um criado de jaquetão, estremunhado e esguedelhado, cabeceava de sono. Um pássaro chilreava dentro; sentia-se o bater espaçado das bolas do bilhar através de uma porta de baeta verde; às vezes o pregão de um cangalheiro na rua sobressaia, e - todos estes sons, por momentos se perdiam no ruído forte do descer de um trem travado.

Defronte deles um sujeito de ar debochado lia um jornal; as suas melenas grisalhas colavam-se a um crânio amarelado; o bigode tinha tons queimados do cigarro; e das noitadas ficara-lhe uma vermelhidão inflamada nas pálpebras. De vez em quando erguia preguiçosamente a cabeça, atirava para o chão areado um jato escuro de saliva, dava uma sacudidela triste ao jornal e tornava a fitá-lo com ar infeliz. Quando os dois entraram e pediram carapinhadas, abaixou-lhes gravemente a cabeça.

Mas o que é então? - perguntou logo Julião. Sebastião chegou-se mais para ele:

— É por causa lá da nossa gente. Por causa do primo - disse baixo.

E acrescentou:

— Tu viste-lo, hem?

A lembrança repentina da sua humilhação na sala de Luísa trouxe um rubor de Juílão. Mas muito orgulhoso, disse secamente:

— Vi

— E então?

— Pareceu-me um asno! - exclamou, não se contendo.

— É um extravagante - disse com terror Sebastião. - Não te pareceu, hem?

— Pareceu-me um asno - repetiu. - Umas maneiras, uma afetação, um alambicado, a olhar muito para as meias, umas meias ridículas de mulher...

E com um certo sorriso azedado:

— Eu mostrei-lhe francamente as minhas botas. Estas - disse, apontando para os botins mal - engraxados -, tenho muita honra nelas; são de quem trabalha...

Porque publicamente costumava gloriar-se de uma pobreza, que intimamente não o cessava de o humilhar.

E remexendo devagar a sua carapinhada:

— Uma besta! - resumiu.

— Ti sabes que ele foi namoro da Luísa? - disse Sebastião, baixo, como assustado da gravidade da confidência.

E respondendo logo ao olhar surpreendido de Julião:

— Sim. Ninguém o sabe. Nem Jorge. Eu soube-o há pouco, há meses. Foi. Estiveram a casar. Depois o pai faliu, ele foi para o Brasil, e de lá escreveu a romper o casamento.

Julião sorriu, e encostando a cabeça à parede:

— Mas isso é o enredo da Eugênia Grandet, Sebastião! Estás-me a contar o romance de Balzac! Isso é a Eugênia Grandet!

Sebastião fitou-o espantado.

— Ora! Não se pode falar sério contigo. Dou-te a minha palavra de honra! - acrescentou vivamente.

— Vá, Sebastião, vá, dize.

Houve um silêncio. O sujeito calvo, agora, contemplava o estuque do teto sujo de fumo dos cigarros e do pousar das moscas; e, com a mão sapuda, de tom pegajoso, cofiava amorosamente as repas. No bilhar vozes altercavam.

Sebastião então, como tomado de uma resolução, disse bruscamente:

— E agora vai lá todos os dias, não sai de lá!

Julião afastou-se na banqueta e encarou-o:

— Tu queres-me dar a entender alguma coisa, Sebastião?

E com uma vivacidade quase jovial:

— O primo atira-se?

Aquela palavra escandalizou Sebastião.

— Ó Julião! - E severamente: - Com essas coisas não se brinca!

Julião encolheu os ombros.

— Mas está claro que se atira! - exclamou. - És de bom tempo ainda! Está claro que sim! Namorou-a solteira, agora quere-a casada!

— Fala baixo - acudiu Sebastião.

Mas o criado dormitava, e o sujeito calvo tinha recaído na sua leitura fúnebre.

Julião baixou a voz:

— Mas é sempre assim, Sebastião. O primo Basílio tem razão; quer o prazer sem a responsabilidade!

E quase ao ouvido dele:

— É de graça, amigo Sebastião! É de graça! Tu não imaginas que influência isto tem no sentimento!

Riu-se. Estava radioso; as palavras, as pilhérias vinham-lhe com abundância:

— Há um marido que a veste, que a calça, que a alimenta, que a engoma, que a vela se está doente; que a atura se ela está nervosa; que tem todos os encargos, todos os tédios, todos os filhos, todos, todos os que vierem, sabes a lei... Por conseqüência o primo não tem mais que chegar, bater ao ferrolho, encontra-a asseada, fresca, apetitosa à custa do marido, e...

Teve um risinho, recostou-se com uma grande satisfação, enrolando deliciosamente o cigarro, regozijando-se no escândalo.

— É ótimo! - acrescentou. - Todos os primos raciocinam assim. Basílio é primo, logo... Sabes o silogismo, Sebastião! Sabes o silogismo, menino! - gritou, dando-lhe uma palmada na perna.

— É o diabo - murmurou Sebastião cabisbaixo.

Mas revoltando-se contra a suspeita que o ia dominando:

— Mas tu supões que uma rapariga de bem...

— Eu não suponho nada! - acudiu Julião.

— Fala baixo, homem!

— Eu não suponho nada - repetiu Julião baixinho. - Eu afirmo o que ele faz. Agora ela...

E acrescentou com secura:

— Como é uma rapariga honesta...

— Se é! - exclamou Sebastião, batendo uma punhada na pedra da mesa.

— Pronto! - cantou arrastadamente o moço.

O velho calvo ergueu-se logo; mas vendo que o criado se recolhia ao balcão bocejando, e que os dois continuavam a remexer a sua carapinhada, encostou os cotovelos à mesa, salivou para longe, e puxando o jornal deixou-lhe cair em cima um olhar desolado.

Sebastião disse, então, com tristeza:

— A questão não é por ela. A questão é pela vizinhança.

Ficaram um momento calados. A altercação de vozes no bilhar crescia.

— Mas - disse Julião, como saindo de uma reflexão - a vizinhança?

— Sim, homem! Vêem entrar para lá o rapaz. Vem de tipóia; faz um escândalo na rua. Já se fala. Já vieram com mexericos à tia Joana. Há dias encontrei o Neto que reparou. O Cunha também. O homem dos trastes, embaixo, não se faz nada que ele não dê fé; são umas línguas de tremer. Há dias ia eu a passar quando o primo se apeou da carruagem para entrar, e foram logo conciliábulos na rua, olhadelas para a janela, o diabo! Vai lá todos os dias. Sabem que o Jorge está no Alentejo... Está duas e três horas. É muito sério, é muito sério!

— Mas ela então é tola!

— Não vê o mal...

Julião encolheu os ombros, duvidando.

Mas a porta de baeta do bilhar abriu-se; um homem hercúleo, de bigode negro, muito escarlate, saiu bruscamente, e parando, segurando a porta aberta, gritou para dentro:

— E fique sabendo que havia de encontrar homem!

Uma voz grossa, do bilhar, respondeu-lhe uma obscenidade.

O sujeito hercúleo atirou a porta, furioso; atravessou o café resfolegando, apoplético; um rapaz chupado, de jaquetão de inverno e calça branca, seguia-o, com um ar gingado.

— O que eu devia fazer - exclamava o agigantado, brandindo o punho - era quebrar a cara àquele pulha!

O rapaz chupado dizia, com doçura e servilismo, bamboleando-se:

— Questões não servem para nada, Sô Correia!

— É que sou muito prudente - berrou o hercúleo. - É que me lembro tenho mulher e filhos! Se não bebia-lhe o sangue!

E saindo, a sua voz roncante perdeu-se no rumor da rua.

O criado muito pálido, tremia dentro do balcão; e o sujeito calvo, que erguera a cabeça, teve um sorriso de tédio, e retomou tristemente o jornal.

Sebastião, então, disse refletindo:

— Não te parece que seria bom avisá-la?

Julião encolheu os ombros, soltou uma baforada de fumo.

— Dize alguma coisa! - implorou Sebastião. - Tu não ias falar-lhe, hem?

— Eu? - exclamou Julião com um aspecto que repelia a idéia. - Eu! Estás doido!

— Mas que te parece, enfim?

E a voz de Sebastião tinha quase uma aflição.

Julião hesitou:

— Vai, se queres. Diz-lhe que se tem reparado... Enfim, eu não sei, meu amigo!

E pôs-se a chupar o seu cigarro.

Aquele mutismo afetou Sebastião. Disse com desconsolação:

— Homem, vim-te pedir um conselho...

— Mas que diabo queres tu? - E a voz de Julião irritava-se. - A culpa é dela. É dela! - insistiu, vendo o olhar de Sebastião. - É uma mulher de vinte e cinco anos, casada há quatro, deve saber que se não recebe todos os dias um peralvilho, numa rua pequena, com a vizinhança a postos! Se o faz, é porque lhe agrada.

— Ó Julião! - disse muito severamente Sebastião.

E dominando-se, com a voz comovida:

— Não tens razão, não tens razão!

Calou-se muito magoado.

Julião levantou-se.

— Amigo Sebastião, eu digo o que penso; tu fazes o que entendes.

Chamou o criado.

— Deixa - disse Sebastião precipitadamente, pagando.

Iam sair. Mas então o sujeito calvo, atirando o jornal, arremessou-se para a porta, abriu-a, curvou-se, e estendeu a Sebastião um papel enxovalhado.

Sebastião, surpreendido, leu alto, maquinalmente:

— "O abaixo-assinado, antigo empregado da nação, reduzido a miséria..."

— Fui íntimo amigo do nobre Duque de Saldanha! - gemeu chorosamente, com uma rouquidão, o sujeito calvo.

Sebastião corou, cumprimentou, meteu-lhe na mão duas placas de cinco tostões, discretamente.

O sujeito dobrou profundamente o espinhaço e declamou com uma voz cava:

— Mil agradecimentos a Vossa Excelência, senhor conde!