==PERSONAGENS==

  • Pinheiro - Sr. Cardoso
  • Venâncio Alves - Sr. Pimentel
  • Elisa - Sra. D. Maria Fernanda
  • Lulu - Sra. D. Jesuína Montani


Atualidade

EM CASA DE PINHEIRO

Sala de visitas


CENA I

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Elisa, Venâncio Alves


ELISA - Está meditando?

VENÂNCIO (como que acordando) - Ah! perdão!

ELISA - Estou afeita à alegria constante de Lulu, e não posso ver ninguém triste.

VENÂNCIO - Exceto a senhora mesma.

ELISA - Eu!

VENÂNCIO - A senhora!

ELISA - Triste, por que, meu Deus?

VENÂNCIO - Eu sei! Se a rosa dos campos me fizesse a mesma pergunta, eu responderia que era falta de orvalho e de sol. Quer que lhe diga que é falta de... de amor?

ELISA (rindo-se) - Não diga isso!

VENÂNCIO - Com certeza, é.

ELISA - Donde conclui?

VENÂNCIO - A senhora tem um sol oficial e um orvalho legal que não sabem animá-la. Há nuvens...

ELISA - É suspeita sem fundamento.

VENÂNCIO - É realidade.

ELISA - Que franqueza a sua!

VENÂNCIO - Ah! é que o meu coração é virginal, e portanto sincero.

ELISA - Virginal a todos os respeitos?

VENÂNCIO - Menos a um.

ELISA - Não serei indiscreta: é feliz.

VENÂNCIO - Esse é o engano. Basta essa exceção para trazer-me um temporal. Tive até certo tempo o sossego e a paz do homem que está fechado no gabinete sem se lhe dar da chuva que açoita as vidraças.

ELISA - Por que não se deixou ficar no gabinete?

VENÂNCIO - Podia acaso fazê-lo? Passou fora a melodia do amor; o coração é curioso e bateu-me que saísse; levantei-me, deixei o livro que estava lendo; era Paulo e Virgínia! Abri a porta e nesse momento a fada passava. (Reparando nela). Era de olhos negros e cabelos castanhos.

ELISA - Que fez?

VENÂNCIO - Deixei o gabinete, o livro, tudo, para seguir a fada do amor!

ELISA - Não reparou se ela ia só?

VENÂNCIO (suspirando) - Não ia só!

ELISA (em tom de censura) - Fez mal.

VENÂNCIO - Talvez. Curioso animal que é o homem! Em criança deixa a casa paterna para acompanhar os batalhões que vão à parada; na mocidade deixa os conchegos e a paz para seguir a fada do amor; na idade madura deixa-se levar pelo deus Momo da política ou por qualquer outra fábula do tempo. Só na velhice deixa passar tudo sem mover-se, mas... é porque já não tem pernas!

ELISA - Mas que tencionava fazer se ela não ia só?

VENÂNCIO - Nem sei.

ELISA - Foi loucura. Apanhou chuva!

VENÂNCIO - Ainda estou apanhando.

ELISA - Então é um extravagante.

VENÂNCIO - Sim. Mas um extravagante por amor... Ó poesia!

ELISA - Mau gosto!

VENÂNCIO - A Sra. é a menos competente para dizer isso.

ELISA - É sua opinião?

VENÂNCIO - É opinião deste espelho.

ELISA - Ora!

VENÂNCIO - E dos meus olhos também.

ELISA - Também dos seus olhos?

VENÂNCIO - Olhe para eles.

ELISA - Estou olhando.

VENÂNCIO - O que vê dentro?

ELISA - Vejo... (Com enfado) Não vejo nada!

VENÂNCIO - Ah! está convencida!

ELISA - Presumido!

VENÂNCIO - Eu! Essa agora não é má!

ELISA - Para que seguia quem passava quieta pela rua? Supunha abrandá-la com as suas mágoas?

VENÂNCIO - Acompanhei-a, não para abrandá-la, mas para servi-la; viver do rasto de seus pés, das migalhas dos seus olhares; apontar-lhe os regos a saltar, apanhar-lhe o leque quando caísse... (Cai o leque a Elisa. Venâncio Alves apressa-se a apanha-o e entrega-lho). Finalmente...

ELISA - Finalmente... fazer profissão de presumido!

VENÂNCIO - Acredita deveras que o seja?

ELISA - Parece.

VENÂNCIO - Pareço, mas não sou. Presumido seria se eu exigisse a atenção exclusiva da fada da noite. Não quero! Basta-me ter coração para amá-la, é a minha maior ventura!

ELISA - A que pode levá-lo esse amor? Mais vale sufocar no coração a chama nascente do que condená-la a arder em vão.

VENÂNCIO - Não; é uma fatalidade! Arder e renascer, como a fênix, suplício eterno, mas amor eterno também.

ELISA - Eia! Ouça uma... amiga. Não dê a esse sentimento tanta importância. Não é a fatalidade da fênix, é a fatalidade... do relógio. Olhe para aquele. Lá anda correndo e regulando; mas se amanhã não lhe derem corda, ele parará. Não dê corda à paixão, que ela parará por si.

VENÂNCIO - Isso não!

ELISA - Faça isso... por mim!

VENÂNCIO - Pela senhora! Sim... não...

ELISA - Tenha ânimo!

CENA II

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Venâncio Alves, Elisa, Pinheiro

PINHEIRO (a Venâncio) - Como está?

VENÂNCIO - Bom. Conversávamos sobre coisas da moda. Viu os últimos figurinos? São de apurado gosto.

PINHEIRO - Não vi.

VENÂNCIO - Está com um ar triste...

PINHEIRO - Triste, não; aborrecido... É a minha moléstia do domingo.

VENÂNCIO - Ah!

PINHEIRO - Ando a abrir e fechar a boca; é um círculo vicioso.

ELISA - Com licença.

VENÂNCIO - Oh! minha senhora!

ELISA - Eu faço anos hoje; venha jantar conosco.

VENÂNCIO - Venho. Até logo.

CENA III

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Pinheiro, Venâncio Alves

VENÂNCIO - Anda então em um círculo vicioso?

PINHEIRO - É verdade. Tentei dormir, não pude; tentei ler, não pude. Que tédio, meu amigo!

VENÂNCIO - Admira!

PINHEIRO - Por que?

VENÂNCIO - Porque não sendo viúvo nem solteiro...

PINHEIRO - Sou casado...

VENÂNCIO - É verdade.

PINHEIRO - Que adianta?

VENÂNCIO - É boa! adianta ser casado. Compreende nada melhor que o casamento?

PINHEIRO - O que pensa da China, Sr. Venâncio?

VENÂNCIO - Eu? Penso...

PINHEIRO - Já sei, vai repetir-me o que tem lido nos livros e visto nas gravuras; não sabe mais nada.

VENÂNCIO - Mas as narrações verídicas...

PINHEIRO - São minguadas ou exageradas. Vá à China, e verá como as coisas mudam tanto ou quanto de figura.

VENÂNCIO - Para adquirir essa certeza não vou lá.

PINHEIRO - É o que lhe aconselho; não se case!

VENÂNCIO - Que não me case?

PINHEIRO - Ou não vá à China, como queira. De fora, conjecturas, sonhos, castelos no ar, esperanças, comoções... Vem o padre, dá a mão aos noivos, leva-os, chegam às muralhas... Upa! estão na China! Com a altura da queda fica-se atordoado, e os sonhos de fora continuam dentro: é a lua de mel; mas, à proporção que o espírito se restabelece, vai vendo o país como ele é; então poucos lhe chamam Celeste Império, alguns infernal império, muitos purgatorial império!

VENÂNCIO - Ora, que banalidade! E que sofisma!

PINHEIRO - Quantos anos tem, Sr. Venâncio?

VENÂNCIO - Vinte e quatro.

PINHEIRO - Está com a mania que eu tinha na sua idade.

VENÂNCIO - Qual mania?

PINHEIRO - A de querer acomodar todas as coisas à lógica, e a lógica a todas coisas. Viva, experimente e convencer-se-á de que nem sempre se pode alcançar isso.

VENÂNCIO - Quer-me parecer que há nuvens no céu conjugal?

PINHEIRO - Há. Nuvens pesadas.

VENÂNCIO - Já eu as tinha visto com o meu telescópio.

PINHEIRO - Ah! se eu não estivesse preso...

VENÂNCIO - É exageração de sua parte. Capitule, Sr. Pinheiro, capitule. Com mulheres bonitas é um consolo capitular. Há de ser o meu preceito de marido.

PINHEIRO - Capitular é vergonha.

VENÂNCIO - Com uma moça encantadora?...

PINHEIRO - Não é uma razão.

VENÂNCIO - Alto lá! Beleza obriga.

PINHEIRO - Pode ser verdade, mas eu peço respeitosamente licença para declarar-lhe que estou com o novo princípio de não-intervenção nos Estados. Nada de intervenções.

VENÂNCIO - A minha intenção é toda conciliatória.

PINHEIRO - Não duvido, nem duvidava. Não veja no que disse injúria pessoal. Folgo de recebê-lo e de contá-lo entre os afeiçoados de minha família.

VENÂNCIO - Muito obrigado. Dá-me licença?

PINHEIRO - Vai rancoroso?

VENÂNCIO - Ora, qual! Até à hora do jantar.

PINHEIRO - Há de desculpar-me, não janto em casa. Mas considere-se com a

mesma liberdade. (Sai Venâncio. Entra Lulu).

CENA IV

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Pinheiro, Lulu

LULU - Viva, primo!

PINHEIRO - Como estás, Lulu?

LULU - Meu Deus, que cara feia!

PINHEIRO - Pois é a que trago sempre.

LULU - Não é, não, senhor; a sua cara de costume é uma cara amável; essa é de afugentar a gente. Deu agora para andar arrufado com sua mulher!

PINHEIRO - Mau!

LULU - Escusa de zangar-se também comigo. O primo é um bom marido; a prima é uma excelente esposa; ambos formam um excelente casal. É bonito andarem amuados, sem se olharem nem se falarem? Até parece namoro!

PINHEIRO - Ah! tu namoras assim?

LULU - Eu não namoro.

PINHEIRO - Com essa idade?

LULU - Pois então! Mas escute: estes arrufos vão continuar?

PINHEIRO - Eu sei lá.

LULU - Sabe, sim. Veja se isto é bonito na lua de mel; ainda não há cinco meses que se casaram.

PINHEIRO - Não há, não. Mas a data não vem ao caso. A lua de mel ofuscou-se; é alguma nuvem que passa; deixa-la passar. Queres que eu faça como aquele doido que, ao enublar-se o luar, pedia a Júpiter que espevitasse o candeeiro? Júpiter é independente, e me apagaria de todo o luar, como fez com o doido. Aguardemos antes que algum vento sopre do norte, ou do sul, e venha dissipar a passageira sombra.

LULU - Pois sim! Ela é norte, o primo é o sul; faça com que o vento sopre do sul.

PINHEIRO - Não, senhora, há de soprar do norte.

LULU - Capricho sem graça!

PINHEIRO - Queres saber de uma coisa, Lulu? Estou pensando que és uma brisazinha do norte encarregada de fazer clarear o céu.

LULU - Oh! nem por graça!

PINHEIRO - Confessa, Lulu!

LULU - Posso ser uma brisa do sul, isso sim!

PINHEIRO - Não terás essa glória.

LULU - Então o primo é caprichoso assim?

PINHEIRO - Caprichos? Ousas tu, posteridade de Eva, falar de caprichos a mim, posteridade de Adão!

LULU - Oh!...

PINHEIRO - Tua prima é uma caprichosa. De seus caprichos nasceram estas diferenças entre nós. Mas para caprichosa, caprichoso: contrafiz-me, estudei no código feminino meios de pôr os pés à parede, e tornei-me de antes quebrar que torcer. Se dia não der um passo, também eu não dou.

LULU - Pois eu estendo a mão direita a um e a esquerda a outro, e os aproximarei.

PINHEIRO - Queres ser o anjo da reconciliação?

LULU - Tal qual.

PINHEIRO - Contanto que eu não passe pelas forcas caudinas.

LULU - Hei de fazer as coisas airosamente.

PINHEIRO - Insistes nisso? Eu podia dizer que era ainda um capricho de mulher. Mas não digo, não, chamo antes afeição e dedicação.

CENA V

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Pinheiro, Lulu, Elisa

LULU (baixo) - Olhe, aí está ela!

PINHEIRO (baixo) - Deixa-a.

ELISA - Andava à tua procura, Lulu.

LULU - Para que, prima?

ELISA - Para me dares uma pouca de lã.

LULU - Não tenho aqui; vou buscar.

PINHEIRO - Lulu!

LULU - O que é?

PINHEIRO (baixo) - Dize à tua prima que eu janto fora.

LULU (indo à Elisa, baixo) - O primo janta fora.

ELISA (baixo) - Se é por ter o que fazer, podemos esperar.

LULU (a Pinheiro, baixo) - Se é por ter o que fazer, podemos esperar.

PINHEIRO (baixo) - É um convite.

LULU (alto) - É um convite.

ELISA (alto) - Ah! se é um convite pode ir; jantaremos sós.

PINHEIRO (levantando-se) - Consentirá, minha senhora, que lhe faça uma observação: mesmo sem a sua licença, eu podia ir!

ELISA - Ah! é claro! Direito de marido... Quem lho contesta?

PINHEIRO - Havia de ser engraçada a contestação!

ELISA - Mesmo muito engraçada!

PINHEIRO - Tanto quanto foi ridícula a licença.

LULU - Primo!

PINHEIRO (a Lulu) - Cuida das tuas novelas! Vai encher a cabeça de romantismo, é moda; colhe as idéias absurdas que encontrares nos livros, e depois faz da casa de teu marido a cena do que houveres aprendido com as leituras: é também moda. (Sai arrebatadamente).

CENA VI

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Lulu, Elisa

LULU - Como está o primo!

ELISA - Mau humor, há de passar!

LULU - Sabe como passava depressa? Pondo fim a estes amuos.

ELISA - Sim, mas cedendo ele.

LULU - Ora, isso é teima!

ELISA - É dignidade!

LULU - Passam dias sem se falarem, e, quando se falam, é assim.

ELISA - Ah! isto é o que menos cuidado me dá. Ao principio fiquei amofinada, e devo dizê-lo, chorei. São coisas estas que só se confessam entre mulheres. Mas hoje vou fazer o que as outras fazem: curar pouco das torturas domesticas. Coração à larga, minha filha, ganha-se o céu, e não se perde a terra.

LULU - Isso é zanga!

ELISA - Não é zanga, é filosofia. Há de chegar o teu dia, deixa estar. Saberás então quanto vale a ciência do casamento.

LULU - Pois explica, mestra.

ELISA - Não; saberás por ti mesma. Quero, entretanto, instruir-te de uma coisa. Não lhe ouviste falar no direito? É engraçada a história do direito! Todos os poetas concordam em dar às mulheres o nome de anjos. Os outros homens não se atrevem a negar, mas dizem consigo: "Também nós somos anjos!" Nisto há sempre um espelho ao lado, que lhes faz ver que, para anjos faltam-lhes... asas! Asas! asas! a todo o custo. E arranjam-nas; legítimas ou não, pouco importa. Essas asas os levam a jantar fora, a dormir fora, muitas vezes a amar fora. A essas asas chamam enfaticamente: o nosso direito!

LULU - Mas, prima, as nossas asas?

ELISA - As nossas? Bem se vê que és inexperiente. Estuda, estuda, e hás de achá-las.

LULU - Prefiro não usar delas.

ELISA - Hás de dizer o contrário quando for ocasião. Meu marido lá bateu as suas; o direito de jantar fora! Caprichou em não levar-me à casa de minha madrinha; é ainda o direito. Daqui nasceram os nossos arrufos, arrufos sérios. Uma santa zangar-se-ia como eu. Para caprichoso, caprichosa!

LULU - Pois sim! mas estas coisas vão dando na vista; já as pessoas que freqüentam nossa casa têm reparado; o Venâncio Alves não me deixa sossegar com as suas perguntas.

ELISA - Ah! sim?

LULU - Que rapaz aborrecido, prima!

ELISA - Não acho!

LULU - Pois eu acho: aborrecido com as suas afetações!

ELISA - Como aprecias mal! Ele fala com graça e chama-o afetado?...

LULU - Que olhos os seus, prima!

ELISA (indo ao espelho) - São bonitos?

LULU - São maus.

ELISA - Em que, minha filósofa?

LULU - Em verem o anverso de Venâncio Alves e o reverso do primo.

ELISA - És uma tola.

LULU - Só?

ELISA - E uma descomedida.

LULU - É porque os amo a ambos. E depois...

ELISA - Depois, o que?

LULU - Vejo no Venâncio Alves um arzinho de pretendente.

ELISA - À tua mão direita?

LULU - À tua mão esquerda.

ELISA - Oh!

LULU - É coisa que se adivinha... (Ouve-se um carro). Aí está o homem.

ELISA - Vai recebê-lo. (Lulu vai até à porta. Elisa chega-se a um espelho e compõe o toucado).


CENA VII

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Elisa, Lulu, Venâncio

LULU - O Sr. Venâncio Alves chega a propósito; falávamos na sua pessoa.

VENÂNCIO - Em que ocupava eu a atenção de tão gentis senhoras?

LULU - Fazíamos o inventário das suas qualidades.

VENÂNCIO - Exageravam-me o cabedal, já sei.

LULU - A prima dizia: "Que moço amável é o Sr. Venâncio Alves!"

VENÂNCIO - Ah! e a senhora?

LULU - Eu dizia: "Que moço amabilíssimo é o Sr. Venâncio Alves!"

VENÂNCIO - Dava-me o superlativo. Não me cai no chão esta atenção gramatical.

LULU - Eu sou assim: estimo ou aborreço no superlativo. Não é, prima?

ELISA (contrariada) - Eu sei lá!

VENÂNCIO - Como deve ser triste cair-lhe no desagrado!

LULU - Vou avisando, é o superlativo.

VENÂNCIO - Dou-me por feliz. Creio que lhe cai em graça...

LULU - Caiu! Caiu! Caiu!

ELISA - Lulu, vai buscar a lã.

LULU - Vou prima, vou. (Sai correndo).

CENA VIII

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Venâncio, Elisa

VENÂNCIO - Voa qual uma andorinha esta moça!

ELISA - É próprio da idade.

VENÂNCIO - Vou sangrar-me...

ELISA - Hein!

VENÂNCIO - Sangrar-me em saúde contra uma suspeita sua.

ELISA - Suspeita?

VENÂNCIO - Suspeita de haver-me adiantado o meu relógio.

ELISA (rindo) - Posso crê-lo.

VENÂNCIO - Estará em erro. Olhe, são duas horas; confronte com o seu: duas horas.

ELISA - Pensa que acreditei seriamente?

VENÂNCIO - Vim mais cedo e de passagem. Quis antecipar-me aos outros no cumprimento de um dever. Os antigos, em prova de respeito, depunham aos pés dos deuses grinaldas e festões; o nosso tempo, infinitamente prosaico, só nos permite oferendas prosaicas; neste álbum ponho eu o testemunho do meu júbilo pelo dia de hoje.

ELISA - Obrigada. Creio no sentimento que o inspira e admiro o gosto da escolha.

VENÂNCIO - Não é a mim que deve tecer o elogio.

ELISA - Foi gosto de quem o vendeu?

VENÂNCIO - Não, minha senhora, eu próprio o escolhi; mas a escolha foi das mais involuntárias; tinha a sua imagem na cabeça e não podia deixar de acertar.

ELISA - É uma fineza de quebra. (Folheia o álbum).

VENÂNCIO - É por isso que me vibra um golpe?

ELISA - Um golpe?

VENÂNCIO - É tão casta que não há de calcular comigo; mas as suas palavras são proferidas com uma indiferença que eu direi instintiva.

ELISA - Não creia...

VENÂNCIO - Que não creia na indiferença?

ELISA - Não... Não creia no cálculo...

VENÂNCIO - Já disse que não. Em que que devo crer seriamente?

ELISA - Não sei...

VENÂNCIO - Em nada, não lhe parece?

ELISA - Não reza a história de que os antigos, ao depositarem as suas oferendas, apostrofassem os deuses.

VENÂNCIO - É verdade: este uso é do nosso tempo.

ELISA - Do nosso prosaico tempo.

VENÂNCIO - A senhora ri? Riamos todos! Também eu rio e da melhor vontade.

ELISA - Pode rir sem temor. Acha que sou deusa? Mas os deuses já se foram. Estátua, isto sim.

VENÂNCIO - Será estátua. Não me inculpe, nesse caso, a admiração.

ELISA - Não inculpo, aconselho.

VENÂNCIO (repoltreando-se) - Foi excelente esta idéia do divã. É um consolo para quem está cansado, e quando à comodidade junta o bom gosto, como este, então é ouro sobre azul. Não acha engenhoso, D. Elisa?

ELISA - Acho.

VENÂNCIO - Devia ser inscrito entre os beneméritos da humanidade o autor disto. Com trastes assim, e dentro de uma casinha de campo, prometo ser o mais sincero anacoreta que jamais fugiu às tentações do mundo. Onde comprou este?

ELISA - Em casa do Costrejean.

VENÂNCIO - Comprou uma preciosidade.

ELISA - Com outra que está agora por cima, e que eu não comprei, fazem duas, duas preciosidades.

VENÂNCIO - Disse muito bem! É tal o conchego que até se podem esquecer as horas... É verdade, que horas são? Duas e meia. A senhora dá-me licença?

ELISA - Já se vaI?

VENÂNCIO - Até à hora do jantar.

ELISA - Olhe, não me queira mal.

VENÂNCIO - Eu, mal! E por que?

ELISA - Não me obrigue a explicações inúteis.

VENÂNCIO - Não obrigo, não. compreendo de sobejo a sua intenção. Mas, francamente, se a flor está alta para ser colhida, é crime aspirar-lhe de longe o aroma e adorá-la?

ELISA - Crime não é.

VENÂNCIO - São duas e meia. Até à hora do jantar.

CENA IX

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Venâncio, Elisa, Lulu

LULU - Sai com a minha chegada?

VENÂNCIO - Ia sair.

LULU - Até quando?

VENÂNCIO - Até à hora do jantar.

LULU - Ah! janta conosco?

ELISA - Sabes que faço anos, e esse dia é o dos amigos.

LULU - É justo, é justo

VENÂNCIO - Até logo.

CENA X

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Lulu, Elisa

LULU - Oh! teve presente!

ELISA - Não achas de gosto?

LULU - Não tanto.

ELISA - É prevenção. Suspeitas que é do Venâncio Alves?

LULU - Atinei logo.

ELISA - Que tens contra esse moço?

LULU - Já to disse.

ELISA - É mau deixar-se ir pelas antipatias.

LULU - Antipatias não tenho.

ELISA - Alguém sobe.

LULU - Há de ser o primo.

ELISA - Ele! (Sai).

CENA XI

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Pinheiro, Lulu

LULU - Viva! está mais calmo?

PINHEIRO - Calmo sempre, menos nas ocasiões em que és... indiscreta.

LULU - Indiscreta!

PINHEIRO - Indiscreta, sim, senhora! Para que veio aquela exclamação quando eu falava com Elisa?

LULU - Foi porque o primo falou de um modo...

PINHEIRO - De um modo, que é o meu modo, que é modo de todos os maridos contrariados.

LULU - De um modo que não é o seu, primo. Para que fazer-se mau quando é

bom? Pensa que não se percebe quanto lhe custa contrafazer-se?

PINHEIRO - Vais dizer que sou um anjo!

LULU - O primo é um excelente homem, isso sim. Olhe, sou importuna, e hei de sê-lo até vê-los desamuados.

PINHEIRO - Ora, prima, para irmã de caridade, és muito criança. Dispenso os teus conselhos e os teus serviços.

LULU - É um ingrato.

PINHEIRO - Serei.

LULU - Homem sem coração.

PINHEIRO - Quanto a isso, é questão de fato; põe aqui a tua mão, não sentes bater? É o coração.

LULU - Eu sinto um charuto.

PINHEIRO - Um charuto? Pois é isso mesmo. Coração e charuto são símbolos um do outro; ambos se queimam e se desfazem em cinzas. Olha, este charuto, sei eu que o tenho para fumar; mas o coração, esse creio que já está todo no cinzeiro.

LULU - Sempre a brincar!

PINHEIRO - Achas que devo chorar?

LULU - Não, mas...

PINHEIRO - Mas o que?

LULU - Não digo, é uma coisa muito feia.

PINHEIRO - Coisas feias na tua boca, Lulu!

LULU - Muito feia.

PINHEIRO - Não há de ser, dize.

LULU - Demais, posso parecer indiscreta.

PINHEIRO - Ora, qual; alguma coisa de meu interesse?

LULU - Se é!

PINHEIRO - Pois, então, não és indiscreta!

LULU - Então, quantas caras tem a indiscrição?

PINHEIRO - Duas.

LULU - Boa moral!

PINHEIRO - Moral à parte. Fala: o que é?

LULU - Que curioso! É uma simples observação; não lhe parece que é mau desamparar a ovelha, havendo tantos lobos, primo?

PINHEIRO - Onde aprendeste isso?

LULU - Nos livros que me dão para ler.

PINHEIRO - Estás adiantada! E já que sabes tanto, falarei. como se falasse a um livro. Primeiramente, eu não desamparo; depois, não vejo lobos.

LULU - Desampara, Sim!

PINHEIRO - Não estou em casa?

LULU - Desampara o coração.

PINHEIRO - Mas, os lobos?...

LULU - Os lobos vestem-se de cordeiros e apertam a mão ao pastor, conversam com ele, sem que deixem de olhar furtivamente para a ovelha mal guardada.

PINHEIRO - Não há nenhum.

LULU - São assíduos; visitas sobre visitas; muita zumbaia, muita atenção, mas lá por dentro a ruminarem coisas más.

PINHEIRO - Ora, Lulu, deixa-te de tolices.

LULU - Não digo mais nada. Onde foi Venâncio Alves?

PINHEIRO - Não sei. Ali está um que não há de ser acusado de lobo.

LULU - Os lobos vestem-se de cordeiros.

PINHEIRO - O que é que dizes?

LULU - Eu não digo nada. Vou tocar piano. Quer ouvir um noturno ou prefere uma polca?

PINHEIRO - Lulu, ordeno-lhe que fale!

LULU - Para que? para ser indiscreta?

PINHEIRO - Venâncio Alves?...

LULU - É um tolo, nada mais. (Sai. Pinheiro fica pensativo. Vai à mesa e vê o álbum)

CENA XII

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Pinheiro, Elisa

PINHEIRO - Há de desculpar-me, mas creio não ser indiscreto, desejando saber com que sentimento recebeu este álbum.

ELISA - Com o sentimento com que se recebem álbuns.

PINHEIRO - A resposta em nada me esclarece.

ELISA - Há então sentimentos para receber álbuns, e há um com que eu deveria receber este?

PINHEIRO - Devia saber que há.

ELISA - Pois... recebi com esse.

PINHEIRO - A minha pergunta poderá parecer indiscreta, mas...

ELISA - Oh! indiscreta, não!

PINHEIRO - Deixe, minha senhora, esse tom sarcástico, e veja bem que eu falo sério.

ELISA - Vejo isso. Quanto à pergunta, está exercendo um direito.

PINHEIRO - Não lhe parece que seja um direito este de investigar as intenções dos pássaros que penetram em minha seara, para saber se são daninhos?

ELISA - Sem dúvida. Ao lado desse direito, está o nosso dever, dever das searas, de prestar-se a todas as suspeitas.

PINHEIRO - É inútil a argumentação por esse lado: os pássaros cantam e as cantigas deleitam.

ELISA - Está falando sério?

PINHEIRO - Muito sério.

ELISA - Então consinta que faça contraste: eu rio-me.

PINHEIRO - Não me tome por um mau sonhador de perfídias; perguntei, porque estou seguro de que não são muito santas as intenções que trazem à minha casa Venâncio Alves.

ELISA - Pois eu nem suspeito...

PINHEIRO - Vê o céu nublado e as águas turvas: pensa que é azada ocasião para pescar.

ELISA - Está feito, é de pescador atilado!

PINHEIRO - Pode ser um mérito a seus olhos, minha senhora; aos meus é um vício de que o pretendo curar, arrancando-lhe as orelhas.

ELISA - Jesus! está com intenções trágicas!

PINHEIRO - Zombe ou não, há de ser assim.

ELISA - Mutilado ele, que pretende fazer da mesquinha Desdêmona?

PINHEIRO - Conduzi-la de novo ao lar paterno.

ELISA - Mas, afinal de contas, meu marido, obriga-me a falar também seriamente.

PINHEIRO - Que tem a dizer?

ELISA - Fui tirada há meses da casa de meu pai para ser sua mulher; agora, por um pretexto frívolo, leva-me de novo ao lar paterno. Parece-lhe que eu seja uma casaca que se pode tirar por estar fora de moda?

PINHEIRO - Não estou para rir, mas digo-lhe que antes fosse uma casaca.

ELISA - Muito obrigada!

PINHEIRO - Qual foi a casaca que já me deu cuidados? Por ventura quando saio com a minha casaca não vou descansado a respeito dela? Não sei eu perfeitamente que ela não olha complacente para as costas alheias e fica descansada nas minhas?

ELISA - Pois tome-me por uma casaca. Vê em mim alguns salpicos?

PINHEIRO - Não, não vejo. Mas vejo a rua cheia de lama e um carro que vai passando; e nestes casos, como não gosto de andar mal asseado, entro em um corredor, com a minha casaca, à espera de que a rua fique desimpedida.

ELISA - Bem. Vejo que quer a nossa separação temporária... até que passe o

carro. Durante esse tempo como pretende andar? Em mangas de camisa?

PINHEIRO - Durante esse tempo não andarei, ficarei em casa.

ELISA - Oh! suspeita por suspeita! Eu não creio nessa reclusão voluntária.

PINHEIRO - Não crê? E por que?

ELISA - Não creio, por mil razões.

PINHEIRO - Dê-me uma, e fique com as novecentas e noventa e nove.

ELISA - Posso dar-lhe mais de uma e até todas. A primeira é a simples dificuldade de conter-se entre as quatro paredes desta casa.

PINHEIRO - Verá se posso.

ELISA - A segunda é que não deixará de aproveitar o isolamento para ir ao alfaiate provar outras casacas.

PINHEIRO - Oh!

ELISA - Para ir ao alfaiate é preciso sair; quero crer que não fará vir o alfaiate à casa.

PINHEIRO - Conjecturas suas. Reflita, que não está dizendo coisas assizadas. Conhece o amor que lhe tive e lhe tenho, e sabe de que sou capaz. Mas, voltemos ao ponto de partida. Este livro pode nada significar e significar muito. (Folheia). Que responde?

ELISA - Nada.

PINHEIRO - Oh! que é isto? É a letra dele.

ELISA - Não tinha visto.

PINHEIRO - É talvez uma confidência. Posso ler?

ELISA - Por que não?

PINHEIRO (lendo) - "Se me privas dos teus aromas, ó rosa que foste abrir sobre um rochedo, não podes fazer com que eu te não ame, contemple e abençoe!" Como acha isto?

ELISA - Não sei.

PINHEIRO - Não tinha lido?

ELISA (sentando-se) - Não.

PINHEIRO - Sabe quem é esta rosa?

ELISA - Cuida que serei eu?

PINHEIRO - Parece. O rochedo sou eu. Onde vai ele desencavar estas figuras.

ELISA - Foi talvez escrito sem intenção...

PINHEIRO - Ai! foi... Ora, diga, é bonito isto? Escreveria ele se não houvesse esperanças?

ELISA - Basta. Tenho ouvido. Não quero continuar a ser alvo de suspeitas. Esta frase é intencional; ele viu as águas turvas... De quem a culpa? Dele ou sua? Se as não houvesse agitado, elas estariam plácidas e transparentes como dantes.

PINHEIRO - A culpa é minha?

ELISA - Dirá que não é. Paciência. Juro-lhe que não sou cúmplice nas intenções deste presente.

PINHEIRO - Jura?

ELISA - Juro.

PINHEIRO - Acredito. Dente por dente, Elisa, como na pena de Talião. Aqui tens a minha mão em prova de que esqueço tudo.

ELISA - Também eu tenho a esquecer e esqueço.

CENA XIII

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Elisa, Pinheiro, Lulu

LULU - Bravo! voltou o bom tempo?

PINHEIRO - Voltou.

LULU - Graças a Deus! De que lado soprou o vento?

PINHEIRO - De ambos os lados.

LULU - Ora bem!

ELISA - Pára um carro.

LULU (vai à janela) - Vou ver.

PINHEIRO - Há de ser ele.

LULU (vai à porta) - Entre, entre.

CENA XIV

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Lulu, Venâncio, Pinheiro, Elisa

PINHEIRO (baixo à Elisa) - Poupo-lhe as orelhas, mas hei de tirar desforra...

VENÂNCIO - Não faltei... Oh! não foi jantar fora?

PINHEIRO - Não. A Elisa pediu-me que ficasse...

VENÂNCIO (com uma careta) - Muito estimo.

PINHEIRO - Estima? Pois não é verdade?

VENÂNCIO - Verdade o que?

PINHEIRO - Que tentasse perpetuar as hostilidades entre a potência marido e a potência mulher?

VENÂNCIO - Não percebo...

PINHEIRO - Ouvi falar de uma conferência e de umas notas... uma intervenção da sua parte na dissidência de dois estados unidos pela natureza e pela lei; gabaram-me os seus meios diplomáticos, e as suas conferências repetidas, e até veio parar às minhas mãos este protocolo, tornado agora inútil, e que eu tenho a honra de depositar em suas mãos.

VENÂNCIO - Isto não é um protocolo... é um álbum... não tive intenção...

PINHEIRO - Tivesse ou não, arquive o volume depois de escrever nele - que a potência Venâncio Alves não entra na santa-aliança.

VENÂNCIO - Não entra?... mas creia... A senhora... me fará justiça.

ELISA - Eu? Eu entrego-lhe as credenciais.

LULU - Aceite, olhe que deve aceitar.

VENÂNCIO - Minhas senhoras, Sr. Pinheiro. (Sai).

TODOS - Ah! Ah! Ah!

LULU - O jantar está na mesa. Vamos celebrar o tratado de paz.