— Mãe, minha mãe, como estou contente! — suspirava a moça, envolvendo o seu rosto no avental da velha de feições fatigadas e deprimidas, que, de costas voltadas para a clara luz das janelas, estava assentada na única poltrona da saleta pobre. — Estou tão contente! — repetia ela. É preciso que estejas contente também!
A senhora Varie estremeceu e pousou na cabeça da filha suas mãos magras e branqueadas de bismuto.
— Contente! — repetiu também — eu só me sinto contente quando te vejo representar. Tu não devias pensar em outra coisa. Mr. Isaacs foi muito bom para nós e nós lhe devemos dinheiro.
A moça ergueu a cabeça aninhada:
— Dinheiro! Mãe — inquiriu ela — que quer isso dizer? O amor vale mais que o dinheiro.
— Mr. Isaacs nos adiantou 50 libras para o pagamento de nossas dividas e para fornecermos uma roupa conveniente a James. Tu não deves esquecer isso, Sibyl. Cinquenta libras formam uma grande soma. Mr. Isaacs foi muito amável.
— Não é um gentleman, minha mãe, e detesto o seu modo de falar comigo — replicou a moça, levantando se e dirigindo-se à janela.
— Não sei como nos arranjaremos sem ele — objetou a velha, gemendo.
Sibyl Vane balançou a cabecinha e pôs se a rir.
— Mãe, não teremos mais necessidade dele, de ora em diante. O Príncipe Encantador ocupa-se de nós.
Calou-se; o sangue afluíra lhe às faces. Uma respiração ofegante entreabriu as pétalas de seus lábios trêmulos. Uma aragem quente de paixão parecia envolver e agitar as dobras graciosas de sua roupa.
— Eu o amo!, disse ela simplesmente.
— Criança tola! Criança louca!, clamou a velha, acentuando a resposta com um gesto grotesco dos dedos recurvos carregados de jóias falsas.
A criança ainda riu. Havia em sua voz o júbilo de um pássaro na gaiola. Seus olhos colhiam a melodia e a traduziam no próprio brilho; cerravam-se depois um instante, como para guardar um segredo. Quando se abriam de novo, a bruma de um sonho havia passado por eles. A Sabedoria de lábios murchos falava-lhe na velha poltrona, sibilando-lhe essa prudência inscrita no livro da covardia com o nome de senso comum. Ela não escutava. Sentia-se livre na prisão de sua paixão. Seu príncipe, o Príncipe Encantador, estava com ela. Recorrera à memória para tê-lo perto, a sua alma prendia-o. Seus beijos queimavam-lhe os lábios. As pálpebras, sentia as aquecidas pelo seu hálito.
A Sabedoria então mudou de método e falou em inquérito e espionagem. O mancebo talvez fosse rico, e, neste caso, poder-se-ia pensar em casamento. A moça percebia as vogas da astúcia humana rebentando junto às conchas de suas orelhas. Crivavam na todas as setas do ardil. Percebeu que os lábios murchos se alongavam e de novo sorriu...
Subitamente experimentou a necessidade de falar. Agastava-se com o monólogo da velha.
— Mãe, mãe — bradou — por que tanto há de ele me amar? Quanto a mim, bem sei por que o amo. É porque ele é tal que poderia ser o próprio Amor, Que vê ele. porém, em mim? Não sou digna dele. E, entretanto, não saberei como explicar, julgando-me bem inferior a ele, não sinto até agora a humildade. Sou altiva, extremamente altiva... Mãe, dedicarias tanto amor a meu pai como eu ao Príncipe Encantador?
A velha mulher empalideceu sob a camada de pó que lhe cobria o rosto e seus beiços secos se torceram num esforço doloroso.
Sibyl correu para ela; passou-lhe os braços pelo pescoço e deu-lhe beijos:
— Perdão, minha mãe, eu sei quanto te são penosas as referências a meu pai. Não é, porém, porque o amasses muito. Não te entristeças tanto! Eu também sou hoje tão feliz como o eras há vinte anos. Ah! Pudesse eu ser sempre feliz!
— Minha filha, tu és muito criança para pensar em amor. E, depois, que sabes tu desse rapaz? Ignoras até seu nome. Tudo isso é aflitivo e, verdadeiramente, no momento em que James vai partir para a Austrália e em que tenho tantos cuidados, acho que devias mostrar te menos inconsiderada. Entretanto, como eu já disse, se ele for rico...
— Ah! Mãe, mãe! Deixa-me ser feliz!
A senhora Vane mirou-a e, com um desses falsos gestos cênicos que, muitas vezes, nos atores são como uma segunda natureza, estreitou sua filha nos braços. Neste momento, a porta abriu-se e entrou um rapaz de cabelos castanhos eriçados. Tinha a figura maciça, grandes pés e grandes mãos e qualquer coisa de brutal nos movimentos. Não possuía a distinção de sua irmã. Custava se a acreditar no próximo parentesco que os unia. A senhora Vane fixou os olhos nele e intensificou seu sorriso. Mentalmente, elevou seu filho à dignidade de uma plateia. Estava certa de que o quadro devia ser tocante.
— Devias guardar um pouco de teus beijos para mim, Sibyl — disse o moço, numa queixa amigável.
— Ah! Mas tu não gostas dos beijos que te damos — ponderou ela —; Jim, tu és um triste urso velho! E pôs-se a correr na saleta, a dar-lhe beliscões.
James Vane olhou com ternura sua irmã.
— Desejaria que viesses passear comigo, Sibyl. Creio bem que nunca mais tornarei a ver esta vil Londres e, decerto, não demoro.
— Meu filho, não digas essas coisas tão tristes — murmurou a senhora Vane, apanhando com suspiros um pretensioso vestido de teatro e procurando agitá-lo.
Ela lastimava que o filho houvesse chegado tarde para poder juntar-se ao grupo de momentos antes. Ele teria aumentado o patético da situação.
— Por quê, minha mãe?
— Porque me afliges, meu filho. Espero que tu voltes da Austrália com uma bela posição. Penso não haver sociedade alguma nas colônias ou outra coisa a que se possa dar este nome; assim, quando fizeres fortuna, voltarás a tomar o teu lugar em Londres.
— A sociedade — resmungou o rapaz... — Nada quero conhecer dela. Eu desejaria ganhar bastante dinheiro para fazer vocês duas deixarem o teatro, você e Sibyl. Detesto o teatro.
— Oh!, Jim! — retrucou, rindo, Sibyl — como és pouco amável! Mas queres, realmente, passear comigo? Será uma gentileza! Receava que fosses apresentar despedidas a alguns de teus amigos, a Tom Hardy, que te deu esse horrível cachimbo, ou a Ned Langton, que escarnece das luas pitadas. É muito amável de tua parte teres-me reservado a tua última tarde. Aonde iremos nós? Se fôssemos ao Parque!
— Eu estou muito surrado — replicou ele carrancudo. — Só as pessoas elegantes vão ao Parque.
— Que asneira, Jim — suspirou ela — passando a mão pela manga do seu vestido.
Ele hesitou um momento.
— Bem, eu vou — disse por fim — mas não demores muito a vestir-te.
Ela saiu dançando... Ouviram-na cantarolar, ao subir a escada, e, em cima, os saltinhos de seus pés miúdos...
Ele percorreu a sala duas ou três vezes. Depois voltou-se para a velha, imóvel na sua cadeira:
— Mãe, as minhas coisas estão preparadas? — interrogou.
— Tudo está pronto, James — respondeu ela, sem tirar os olhos do seu trabalho.
Durante meses, sentira-se pouco à vontade, quando se achava só com esse filho duro e severo. Sua leviandade natural era perturbada quando os olhares de ambos se cruzavam. Intimamente, ela sempre se consultava se ele nada desconfiaria. Como ele não fizesse observação alguma, o silêncio tornou-se-lhe intolerável. Iniciou, assim, as lamúrias. As mulheres defendem se atacando, do mesmo modo que atacam por estranhas e súbitas derrotas.
— Espero, James, que te satisfaças com a tua existência de ultramar — disse ela. — É preciso te lembrar de que tu mesmo a escolheste. Terias podido entrar para o escritório de um advogado. Estes formam uma classe respeitável e muitas vezes, no interior, jantam em casa das melhores famílias.
— Odeio os escritórios e os empregados — atalhou ele —; mas a senhora tem razão; eu mesmo escolhi o meu gênero de vida. Tudo o que lhe posso dizer é que deve velar por Sibyl. Não consinta que lhe aconteça uma desgraça. Mãe, é preciso prestar bem atenção.
— James, tu falas de modo estranho. Sem dúvida, hei de velar por Sibyl.
— Ouvi dizer que um cavalheiro vinha todas as noites ao teatro e passava ao camarim para falar-lhe. É direito? Que quer isso dizer?
— Falas de coisas que não compreendes, James. No exercício da nossa profissão, estamos habituadas a receber muitas homenagens. Eu mesma, no meu tempo, ganhei muitas flores. Era quando a nossa arte era verdadeiramente compreendida. Quanto a Sibyl, não posso ainda saber se a sua predileção é séria ou não; mas não resta dúvida que o moço em questão é um perfeito gentleman. A mim, trata-me sempre com extrema polidez. Demais, tem a aparência de rico e as flores que me envia são deliciosas.
— Não sabes, porém, o seu nome? — inquiriu ele, asperamente.
— Não — confessou placidamente a mãe. — Ele não revelou ainda o seu nome. Penso ser muito romanesco de sua parte. É provavelmente membro da aristocracia.
James Vane mordeu os beiços...
— Vele sobre Sibyl, mãe! Atenção nela!
— Meu filho, tu me desesperas. Sibyl está sempre sob minha vigilância particular. Seguramente, se esse gentleman for rico, não há razão alguma que a impeça de contratar com ele uma aliança. Penso ser um aristocrata. Tem todas as aparências, devo dizê-lo. Poderia arranjar-se um brilhante casamento para Sibyl. Seria um par encantador. As suas maneiras só o recomendam.
O moço resmungou algumas palavras e pôs-se a tamborilar com os dedos grossos na vidraça. Voltava-se para dizer alguma coisa, quando Sibyl entrou, às carreiras...
— Como ambos estão sérios! — observou ela. — Que há de novo?
— Nada retrucou ele; às vezes, é preciso estar-se sério. Até a vista, mãe; jantarei às cinco horas. Tudo está enfardado, exceto minhas camisas. Por isso, não te inquietes.
— Até logo, meu filho — disse a velha, com um requebro teatral.
Ela estava contrariadíssima com o tom de que o filho usara e qualquer coisa no olhar deste a amedrontava.
— Beija me, minha mãe — disse a moça.
E seus lábios em flor pousaram nas faces esmaecidas da velha, reanimando-as.
— Minha filha! Minha filha! — clamou a senhora Vane de olhos no teto, procurando uma galeria imaginária.
— Anda, Sibyl — convidou o irmão, impaciente, que detestava as afetações maternais.
Ambos saíram e desceram a triste Euston Road. Elevava-se uma ligeira viração e o sol resplandecia alegremente. Os transeuntes estranhavam ver esse tipo grosseiro, no seu fato surrado, em companhia de tão graciosa e distinta rapariga. Lembrava um jardineiro labrego caminhando com uma rosa na mão.
De tempos em tempos, Jim carregava os sobrolhos, quando percebia o olhar inquisidor de algum transeunte. Experimentava essa aversão de ser olhado, que somente tarde os homens célebres experimentam na vida e que, entretanto, o vulgacho sempre conservava. Sibyl, esta mantinha se perfeitamente inconsciente do efeito que produzia. O amor abria seus lábios em sorrisos. Pensava no Príncipe Encantador e, para mais poder pensar, quase não falava, balbuciando apenas referências ao navio que Jim deveria tomar, ao ouro que este, certamente, descobriria e à magnífica herdeira, a quem o mesmo salvaria a vida, arrancando a aos maus bushrangers de camisas vermelhas. Com efeito, ele não seria sempre marinheiro ou empregado marítimo, como eslava prestes a ser. Não! A existência de um marinheiro era muito triste. Viver enclausurado em um barco medonho, com as vagas corcovadas e rugidoras procurando tragá-lo e um negro vento molesto derrubando os mastros e dilacerando as velas em longas e sibilantes chibatadas! Ele deixaria o navio em Melbourne, saudaria polidamente o capitão e iria logo aos campos de ouro. Antes de uma semana, encontraria uma grande pepita, a maior até então descoberta, e haveria de trazê-la à costa em um veículo guardado por seis policiais a cavalo. Os bushrangers os atacariam três vezes e seriam batidos, com grande carnificina... Ou então, não, ele não iria aos campos auríferos. Eram maus sítios, onde os homens se embriagam, se matam nas tascas e usam de má linguagem. Ele seria um soberbo criador, e uma noite, quando regressasse à casa no seu carro, descobriria a bela herdeira, a ponto de ser raptada em um cavalo negro por um ladrão; correria a salvá-la. Ela certamente se enamoraria dele; assim se desposariam e voltariam a Londres, a habitar uma casa magnífica. Sim, ele teria aventuras deliciosas. Seria, porém, necessário que ele se conduzisse bem, não abusasse de sua saúde e não despendesse loucamente o seu dinheiro. Ela só tinha um ano mais do que ele, mas conhecia tanto a vida! Seria também necessário que James lhe escrevesse por iodos os correios e recitasse as suas orações todas as noites, antes de deitar-se. Deus era muito bom e velaria por ele. Ela também rezaria por ele e, dentro de alguns anos, ele regressaria perfeitamente rico e feliz.
O rapaz a ouvia desenxabido e não respondia. Empolgava-o a tristeza de abandonar o seu lar.
Ainda não era somente isso o que o tornava receoso e melancólico. Por mais inexperiente que fosse, tinha um vivo sentimento dos perigos da posição de Sibyl. O jovem dândi que lhe fazia a corte nada tinha de recomendável para ele. Era um gentleman e o detestava por isso, por um curioso instinto de raça, que a si mesmo não sabia explicar e que por esta razão ainda mais o dominava. Conhecia também a futilidade, a vaidade de sua mãe e aí via um perigo para Sibyl e para a sua felicidade. Os filhos começam por amar os pais; passam a julgá-los quando envelhecem e algumas vezes os esquecem. Sua mãe! Ele tinha consigo uma questão a resolver a propósito dela, uma questão que ele guardava desde alguns meses de silêncio. Uma frase casual que ouvira no teatro, uma chacota sufocada, que apreendera em certa noite de espera, à porta dos camarins, tinha-lhe sugerido ideias horríveis. Tudo isso voltava-lhe ao espírito como uma vergastada em pleno rosto. As sobrancelhas se lhe juntavam em uma contração involuntária e, em um espasmo doloroso, ele mordeu o lábio inferior.
— Tu não ouves nada do que eu digo, Jim — falou Sibyl —: e eu faço os mais magníficos planos sobre teu futuro! Dize então qualquer coisa...
— Que queres tu que eu diga?
— Oh!, Que tu serás um bom rapaz, que tu não nos esquecerás — replicou ela. sorrindo-lhe.
Ele ergueu os ombros.
— Tu serás muito mais capaz de esquecer-me do que eu de esquecer-te, Sibyl.
Ela corou...
— Que queres tu dizer, Jim?
— Contaram me que tens um novo amigo. Quem é ele? Por que ainda nada me falaste a respeito? Ele não te quer por bem.
— Pára, Jim! — ordenou ela —; nada deves dizer contra ele. Eu o amo!
— Como, se nem tu mesma sabes seu nome? ponderou o moço. — Quem é ele? Tenho o direito de sabê-lo.
— Chama-se o Príncipe Encantador. Não gostas deste nome? Mau rapaz, nunca me esqueças. Se apenas o tivesses visto, julga-lo-ias o mais maravilhoso ser do mundo. Um dia, há de encontrá-lo, quando tornares da Austrália. Há de amá-lo muito. Todo mundo o ama, e eu... eu o adoro! Por que não vens ao teatro esta noite? Ele lá estará e eu representarei Julieta. Oh! Como representarei! Imagina, Jim! Estar se amando e fazer o papel de Julieta! E vê-lo assentado à minha frente! Representar para seu único prazer. Receio assustar o público, assustá-lo ou subjugá-lo. Amar é ultrapassar-se. Esse pobre mr. Isaacs implorará o gênio para todos os seus vagabundos do bar. Pregava o meu talento como um dogma: esta noite, bem o sinto, há de anunciar-me como uma revelação. E é obra exclusivamente dele, do Príncipe Encantador, meu portentoso namorado, meu Deus de graças. Eu, porém, sou pobre junto dele. Pobre? Que importa isso? Quando a pobreza entra sorrateiramente pela porta, o amor introduz-se pela janela. Deviam ser refeitos os nossos provérbios. Foram inventados no inverno e agora eis o verão; é a primavera para mim, uma verdadeira ronda de flores no céu azul.
— É um gentleman — objetou o irmão azedo.
— Um príncipe! — proferiu ela musicalmente. — Que queres tu mais?
— Ele quer fazer de ti uma escrava!
— Eu tremo à ideia de ver me livre!
— Deves desconfiar dele.
— Quem o vir, logo o estima; quem o conhecer, logo nele acredita.
— Sibyl, estás doida!
Ela pôs-se a rir e tomou-lhe o braço.
— Caro velho Jim, tu falas como um centenário. Um dia tu mesmo hás de amar e então saberás o que é. Deixa esse ar desengraçado. Deves decerto sentir-te contente, ao pensar que, embora te afastes, tu me deixas mais feliz do que nunca estive. A vida foi dura para nós, terrivelmente dura e difícil. Agora será diversa. Tu vais a um novo mundo e eu descobri um!... Olha duas cadeiras; assentemo-nos e vejamos passar todo esse belo mundo.
Assentaram-se no meio de um grupo de basbaques. As tulipas pareciam vibrantes bagas de fogo. Uma poeira branca, como uma nuvem trêmula de íris, movia-se no ar abrasado. Os pára sóis de cores vivas iam e vinham como gigantescas borboletas.
Ela fez seu irmão falar de si próprio, de suas esperanças e de seus projetos. Ele falava docemente, com esforço. Ambos trocaram as palavras como jogadores que passam os tentos. Sibyl achava se oprimida, não podendo comunicar sua alegria. Um vago sorriso esboçado sobre os lábios tristes era todo o eco que ela conseguia despertar. Passado algum tempo, ficou silenciosa. Súbito, ela colheu de passagem a visão de uma cabeleira dourada e de uma boca risonha, e, em uma carruagem descoberta, Dorian Gray passou em companhia de duas damas.
Ela pôs-se de pé.
— Ei-lo! — exclamou.
— Quem? indagou Jim Vane.
— O Príncipe Encantador! respondeu ela espiando a vitória.
Ele ergueu-se vivamente e tomando a rudemente pelo braço:
— Mostra-me com teu dedo! Qual é? Quero vê-lo! exclamou ele; mas, na mesma ocasião, passou-lhes pela frente o malho do duque de Berwick, e quando a praça novamente ficou livre a vitória havia desaparecido do Parque.
— Partiu — murmurou, tristemente, Sibyl, e eu quisera mostrar-te-o.
— E eu igualmente quisera, porque, assim como é verdade haver um Deus no céu, se ele te fizer algum mal, eu o matarei!...
Ela olhou o com horror! Ele repetiu estas palavras que cortavam o ar como um punhal... Os transeuntes começavam a acumular-se. Bem perto, uma dama galhofava.
— Anda, Jim, vem — sibilou ela.
E ele a acompanhou como um cão, através da turba. Parecia satisfeito com o que havia dito.
Chegados à estátua de Aquiles, ambos deram uma volta ao redor do monumento. A tristeza que enchia seus olhos mudou-se num sorriso e ela sacudiu a cabeça.
— Estás doido, Jim, inteiramente doido!... Tens mau caráter, é tudo. Como podes articular coisas tão baixas? Tu não sabes de quem falas. Tu te mostras simplesmente ciumento e malfeitor. Ah! Eu desejaria que amasses! O amor melhora tudo e tudo o que dizes é mau.
— Tenho 16 anos — replicou ele — e sei o que sou. Nossa mãe não te serve de nada. Não sabe como é preciso te vigiar; agora quisera não ir mais à Austrália. Sinto grande vontade de largar tudo. E eu o faria, se o meu contrato já não estivesse assinado.
— Oh! Não te faças assim tão sério, Jim! Tu lembras um dos heróis desses absurdos melodramas, em que as mães tanto gostam de brincar. Eu não quero brigas. Eu o vi e vê-lo é a completa felicidade. Não briguemos: sei bem que nunca hás de fazer mal aos que amo, não é assim?
— Não, enquanto o amares — foi a sua ameaçadora resposta.
— Sempre o amarei! — protestou ela.
— E ele?
— Ele também, sempre!
— Pois fará bem!
Ela recuou, depois, com um riso complacente, tomou-lhe o braço. Não era, afinal de contas, mais que uma criança.
No Arco de Mármore, tomaram um ônibus que os depôs junto à sua miserável casinha de Euston Road. Eram mais de cinco horas e Sibyl Vane devia dormir uma hora ou duas, antes de trabalhar. Jim insistiu para que ela não deixasse de fazê-lo. Quis imediatamente apresentar os seus adeuses, enquanto a mãe estava ausente; pois esta faria uma cena e ele detestava as cenas, quaisquer que fossem.
Separaram-se no quarto de Sibyl. O coração do mancebo estava repleto de um surdo ciúme, de um ódio ardente e mortal contra esse estranho que, no seu entender, vinha plantar-se entre os dois. Contudo, quando ela lhe passou os braços em torno do pescoço e seus dedos lhe acariciaram os cabelos, ele se enterneceu e beijou-a com real afeição. Quando desceu, seus olhos marejaram-se de lágrimas.
Embaixo, a mãe o esperava, resmungando contra a demora, quando ele ia entrando. Ele nada respondeu e assentou-se diante da sua minguada refeição. As moscas volitavam ao redor da mesa ou passavam pela toalha cheia de nódoas. Através do ruído dos ônibus e das carroças que subiam a rua, ele percebia o sussurro que devorava cada um dos minutos da sua vida restante naquele ponto... Passado um instante, afastou o prato e ocultou a cabeça entre as mãos. Parecia— lhe que tinha também o direito de saber. Já lhe teriam dito se fosse aquele em que pensava. Sua mãe o contemplava, revelando receio. As palavras caíam-lhe dos lábios maquinalmente. Um lenço de renda rasgado enrolava-se lhe nos dedos. Quando soaram seis horas ele ergueu-se em direção à porta; voltou-se e pôs-se a olhá-la. Seus olhares se cruzaram. Ela parecia suplicante. Isto o enraiveceu...
— Mãe — disse ele — tenho qualquer coisa a pedir-lhe.
Ela nada respondeu e seus olhos vaguearam pela sala.
— Diga-me a verdade: preciso sabê-la. Você era casada com meu pai?
Ela soltou um profundo suspiro. Era um suspiro de alívio. O momento terrível, esse terrível momento que, dia e noite, durante semanas e meses, esperava receosa, tinha enfim chegado e ela já não se sentia amedrontada. Era verdadeiramente para ela como um desapontamento. A questão assim vulgarmente lançada exigia uma resposta direta. A situação não havia sido preparada gradualmente. Era cru. Parecia lhe isso um mau ensaio. — Não! — respondeu, espantada da brutal simplicidade da vida.
— Meu pai era então um patife! — gritou o rapaz, cerrando os punhos.
Ria balançou a cabeça:
— Eu sabia que ele não era livre. Nós nos amávamos muito. Se ele tivesse vivido, teria juntado para nós. Meu filho, não fales contra ele! Era teu pai e era um gentleman —, tinha altas relações.
Uma maldição escapou-se-lhe dos lábios:
— Paia mim tudo isso é indiferente — gritou ele — mas não deixe sozinha Sibyl... É um gentleman, não é, o seu apaixonado de hoje? Pelo menos, ela o diz... Esse, sem dúvida, terá também as suas belas relações, não é?
Uma indescritível expressão de humilhação passou pelo rosto da velha mulher. Abaixou a cabeça e procurou enxugar os olhos com as costas das mãos.
— Sibyl tem uma mãe — murmurou ela. — Eu nem sequer tinha isso!
O rapaz enterneceu-se. Caminhou em direção à velha, curvou se e deu lhe um beijo...
— Eu sou o primeiro a sentir a pena que lhe causo, falando de meu pai — disse ele; mas já não podia mais. É necessário agora que eu parta. Até um dia! Não se esqueça de que a senhora só tem, de hoje em diante, uma filha a vigiar; e, creia me, se esse homem fizer algum mal à minha irmã, saberei quem ele é, eu o perseguirei e o matarei como um cão! Juro que o farei!...
O extremo exagero da ameaça, o gesto apaixonado que a acompanhava e a sua expressão melodramática tornaram a vida mais interessante aos olhos da mãe. Estava familiarizada com esse tom. Respirou mais livremente, e, pela primeira vez, depois de meses, admirou realmente o filho. Ela teria gostado de prosseguir na cena, nessa nota comovente; mas o rapaz não consentiu. Já haviam feito descer as malas e estavam os mantos preparados. A criada do aluguel ia e vinha, e foi preciso contratar o cocheiro. Os instantes eram absorvidos por vulgares pormenores. Foi com um novo desapontamento que ela agitou o lenço de rendas pela janela, quando seu filho partiu no carro. Sentiu que uma magnífica ocasião eslava perdida. Consolou-se falando a Sibyl na desolação que seria dali por diante sua vida, quando já não tinha senão um filho a guardar. Repetia esta frase que lhe havia agradado. Nada disse, porém, da ameaça. Esta havia sido viva e dramaticamente exprimida. No fundo, bem sentia que um dia todos eles haviam de rir juntos.