Gruta sombria

Cena I

editar

Bedel (Espanejando algUmas pedras soltas que se acham espalhadas pela cena.)


Copla


Vós, que tendes, meus senhores,

bem formadas, boas almas,

aos atores e autores

batei palmas, batei palmas.

De que nos dei Uma vaia

livre-nos Deus e o canhoto,

mas pra que a peça não caia,

basta cair-vos no goto.

Hão de convir que é muito original esta idéia de encaixar o couplet final no princípio: mas, como tenho os meus pressentimentos de que o ano de 1877, que principia amanhã, há de andar tudo às avessas, assim faço. De mais, é mau costUme pedir palmas no fim da peça; a gente as deve pedir no princípio, antes que o público saiba o que vai ver. O sujeito que vai empenhar-se com o examinador para que lhe aprove o filho plenamente na Instrução Pública, fá-lo sempre antes do exame. Que diabo. O pequeno pode sair-se mal e então o pedido não tinha pés nem cabeça. (Escarra, tosse, assoa-se.) O teatro representa Uma gruta agreste em Um país inteiramente desconhecido. Nesta gruta é que se costUmam reunir, no dia 31 de dezembro, as calamidades brasileiras, a fim de darem conta dos seus trabalhos durante o ano, e predisporem-se para o vindouro. Cena I : Apareço em Bedel e digo:- Agora é que começa a revista. (Põe-se de novo a espanar, noutro tom.) Felizmente está terminado o meu serviço. Não tardam aí as calamidades brasileiras. Encontrarão tudo limpo. (Música.) Sinto passo, são elas.

Cena II

editar

O Mesmo, a Política, a Febre Amarela, Ilustríssima, a Seca, a Inundação, City Improvements, o Boato, a Capoeira, a Subscrição, o Beribéri, o Cortiço, a Conferência, o Veículo, o Engraxate, o Carcamano, o Poeta, a Morte de braço dado com o Médico


Coro


Calamidades, ei-las por cá:

pestes, moléstias, tudo aqui há.

O fim do ano por cá nos traz.

Somos, senhores, só coisas más.

(A Política senta-se nUma pedra mais elevada, ao fundo.)


Política (Ao Bedel.) - Não falta ninguém?

Bedel - Não, ao que parece.

Política - Mas como não gosto de dúvidas, eu, a Política, a principal das calamidades brasileiras, que amo e dirijo todas as outras, ordeno procedas à chamada geral.

Bedel - É já. (Abrindo Um livro que tira de trás dUma pedra.) - Política?

Política - Presente.

Bedel - A Fome? (Depois de pausa.) Não veio! Está jantando talvez. - Febre Amarela?

A Febre - Presente. (Vem à boca da cena.)

Eu não tenho cor Política,

pesar de ser Amarela:

não escolho as minhas vítimas,

ataco a esta e àquela.

Bedel - A Junta da Higiene? (Silêncio.) Também não veio. Quer-me parecer que está ocupada com algUm parecer. - A Ilustríssima?

Ilustríssima - Cá estou (Vem à boca de cena.)

Eu amo o povo, senhores,

e as comunidades suas,

mandando calçar as ruas

em que moram vereadores.

Bedel - A Seca?

A Seca - Pronto (Acompanhada de seus horrores.)

Quando aos homens faço guerra,

andam desgraças aos molhos,

Secam-se as fontes da Terra,

abrem-se as fontes dos olhos.

Bedel - A Inundação?

Inundação - Presente. (O mesmo.)

São horrorosos meus feitos.

Ai! que tragédias! que dramas!

os rios saltam dos leitos

e os homens saltam das camas.

Bedel - A City Improvements?

City - Presente. (O mesmo. Todos tapam os narizes.)

Eu cá não sou de modéstias,

do que as primeiras sou mais.

Sou mãe de muitas moléstias

e filhas doutras que tais.

Bedel - O Boato?

Boato - Minio!... Quero dizer, presente! (Vem à boca de cena e canta em falsete.) Vocês me conhecem? Qual!

Sou o Boato, a mofina;

Tenho mil nomes: verrina,

apedido e etecetra e tal!

Bedel - O Capoeira?

Capoeira - Rente! (Ameaça cabeçada noutros personagens.)

Eu sou Capoeira

não m’assustam, não!

Passo Uma rasteira,

tudo vai ao chão.

Puxo Uma navalha,

sei desafiar.

Se isto trabalha (Puxa a navalha.)

é aí que pinto o sete.

Mato dezessete,

guardo o canivete

e vou descansar.


Bedel - A Subscrição?

Subscrição - Eis-me aqui.

Eu sou a Subscrição,

mas sem a caridade benfazeja,

a grande amolação

que tão somente almeja

a condecoração!

Bedel - A Conferência?

Conferência (Sibiliando os ss.)

A última expressão sou da oratória,

tenho feito o diabo a quatro,

já desertei da glória

e ando agora no teatro,

mas é pior e mais pândega

A Conferência da Alfândega.

Bedel - O Veículo?

Veículo - Não estou atrasado.

Bedel - Então chegue-se.

Veículo - Eu sou o bonde, a carroça,

a andorinha, a diligência

pra dar cabo da existência

dos desgraçados mortais.

Ora acreditais que eu não possa.

que eu não possa.

do que hei feito.

do que hei feito fazer mais.

Bedel - Beribéri?

Beribéri - Eis-me

Eu sou o Beribéri e, como Otelo,

nasci lá nos desertos africanos,

nasci para flagelo dos hUmanos,

e as mais moléstias meto nUm chinelo.

Naturalizei-me brasileiro e firmei a minha residência na terra de Gonçalves Dias. Gosto muito do Nordeste, e decididamente não saio de lá. Ainda não passei da Bahia. Não faço casa da corte.

Boato - Isto é, não fazes casos na Corte.

Bedel - O Cortiço? O Engraxate? O Carcamano? O Poeta, a Morte e o Médico?

A Morte - Eu sou a Morte, a mor calamidade.

Médico - Juro à fé do meu grau que sou doutor.

Ambos (Abraçando-se e beijando-se.) - Temo-nos muita amizade,

juramos constante amor!

Bedel - Está pronta a chamada.

Política - Agora que Todos estão presentes, podeis falar. (Todos falam ao mesmo tempo, Bedel agita a campainha.)

Boato - À ordem! À ordem! Isto não é república!

Política - Atenção! (Silêncio.) Digníssimas calamidades, é sempre com o mais vivo prazer que ergo neste recinto a minha não autorizada voz.

Boato (À parte.) - Não apoiado.

Política (Continuando.) - Neste momento solene em que ides prestar contas dos vossos trabalhos, espero de vosso zelo e nunca desmentida perversidade, que as referidas contas não sejam contas de grão-capitão, o que não é de esperar da vossa reconhecida atividade! A boa vontade que vos caracteriza dá azo a que eu faça de antemão o melhor conceito de vossas diligências. Está aberta a sessão...

Febre Amarela - Peço a palavra.

Política - Tem a palavra a Febre Amarela.

Boato (À parte.) - Logo vi que era a primeira a falar!... Esta senhora tem raízes no país, por isso lhe concedem a primazia.

Política (Abraçando a Febre.)- Fale, cara amiga.


Febre - Para bem poderes julgar os meus feitos deste ano, basta perceberes a verdadeira estima que me consagra este cavalheiro. (Indica a direita.) e Todos os seus colegas. Pretendo continuar com a mesma atividade em 1877, se a tanto me ajudar a empresa Gari...

Ilustríssima - Se a nobre amiga que me precedeu na tribuna...

Boato - Tribuna é flor de... retórica.

Ilustríssima - ...conseguiu fazer algUma coisa de merecer a pena. Se foram devidos a esforços meus, e da nobre Junta da Higiene...

Boato - Junta que nunca está junta da Higiene...

Ilustríssima - Em todo o caso, em 1877 redobrarão as nossas vigilâncias em que pese ao famigerado Cai...

Política (Com o gesto.) -... pira... para esquerda, basta!! Tem a palavra a Inundação.

Inundação - Venho de Portugal, tenho feito por lá algUma coisa pela vida, ou pela Morte. Torno de novo à terra de Camões. Não está cUmprida a minha missão naquele reino.

Subscrição - Vá, que eu fico cá para maior flagelo.

Boato - Não tem nada... É viagem que ferve... Ela é viagem na França, agora vai a Portugal... e está aqui na América. Chama-se a isto correr as sete partidas do mundo... és Uma Inundação de viagens.

Política - Tem a palavra...

Boato - Peço a dita.

Política - Tem a palavra.

Boato - É preciso que 1877 já nos encontre a postos, está prestes a soar a meia-noite. Portanto, peço que passemos à ordem da noite.

Política - Está bem! Ponhamo-nos de novo a caminho. Tu, Febre, não perca os teus créditos que possuis na Europa. Mata a torto e a direito, e sobretudo agarra-te aos trinta botões. O Ilustríssima, continua a não mandar calçar as ruas e a contratar empreiteiros, a gente de trabalho que faça muito e ganhe pouco. Ó Inundação, faze o que puderes. Boato ataca-lhes as reputações e penetra no íntimo da família para levar-lhes o desespero e a vergonha.

Boato (Tirando dois lenços da algibeira, representando o Desespero e a Vergonha.) - Eles cá estão. O Desespero e a Vergonha.

Política - Ó Capoeira, faze as tuas eternas tropelias, não te amedronte o termo de bem viver, nem que te assentem praça na Armada! Tu, Conferência, amola o próximo! Veículo, continua tua sociedade com os Médicos. (O Médico aperta a mão ao Veículo.) Ó Médico, ceifa... Ó Beribéri ceifa... Ó Morte ceifa... CUmpri Todos o vosso dever. Ó Seca! A ti está reservado o mais importante papel entre as calamidades que hão de afligir a Nação Brasileira em 1877. Há bom número de anos que não pões em prática o teu valor. Vai agora e tira o ventre de miséria. Escolhe para sede de teu domínio Uma província próspera e feliz.

Boato - Goiás, por exemplo.

Política - O Ceará! Ide, meus irmãos, trabalhai pela Santa causa da desUmanidade; quanto a mim hei de contribuir com o que estiver ao meu alcance para a desgraça pública e particular. Ide.

Todos - Vamos.


Coro


Cena III

editar

Os mesmos, o Anjo da HUmanidade acompanhado de Fé, Esperança e Caridade


Anjo - Ainda não.

Todos - O Anjo da HUmanidade!

Boato - A estas horas! Quase se pode dizer: é o Bom Anjo da meia-noite.

Anjo (Harmonias.) - Ó Política, não te iludas,

O Anjo sou da HUmanidade,

ao lado estou das três virtudes,

Fé, Esperança e Caridade.

Boato (À parte.) - Isto é Um drama do São Luis.

Anjo - Querem lutar? Pois bem... lutemos,

eu pelo bem, vós pelo mal.

Parti, partamos, e veremos quem suplantar há de afinal.

Política - Derrubemos essas virtudes malditas.

Todos - Guerra... Guerra. (Ameaças de Todos os personagens, exceto Boato, que fica de parte.)

Anjo - Para trás. (Subjugam-se os personagens. Forte na orquestra.)


[(Cai o pano)]