Todas as vezes que passo pela estrada de João de Barros, no Recife, acode-me à memória o vale de Santarém, onde Garret deu vida e movimento à "Menina dos Rouxinóis", que "refletiam o viço do prado, a frescura e animação do bosque, a flutuação e a transparência do mar."
Em lugar do álamo, do freixo e da faia, que "entrelaçavam os ramos amigos"; em lugar da "congossa e dos brotos que vestem e alcatifam o chão", no vale descrito pelo poeta, as mangueiras formam na estrada com suas abóbadas de folhagens sombras amenas e deleitosas; as cajazeiras, cujos troncos se cobrem de naturais relevos, erguem aos céus galhos finos, guarnecidos de folhas miúdas, que se assemelham às verdes franjas dos templos; o jatobá solitário abre os galhos, como abriria os braços um gigante para lutar. Há na estrada, como no vale, a madressilva, malva-rosa do valado. Há moitas de cinamomos, touças de manjericões e alecrins, que matizam o vasto chão. Há os formosíssimos risos do prado, que penduram dos portões ou dos muros dos sítios ao longo das ramadas com flores, escarlates pela manhã, arroxeadas de tarde, aveludadas sempre e a modo de resplandecente, como se a mão de artista insigne as houvesse polido e esmaltado com os reflexos da aurora e as cores do sol poente.
Não deitam por ali rouxinóis desgarradas toadas em regular desafio; os xexéus e os sabiás, porém, com seus cantos trazem a solidão em permanente festa; o cajueiral tem harmonias, o laranjal intermitentes rumores saudosos; a paisagem, horizontes verdes e ondulantes.
Para mais realçar a suavidade do quadro, em vez da casa antiga, onde cantavam os tais pássaros, vê-se no fim da estrada a graciosa capela de Nossa Senhora da Conceição, que é o principal ornamento daquele primoroso Éden. Através das janelas da sagrada habitação, vozes inspiradas de elegantes e inocentes virgens vão ressoar no vasto arvoredo por ocasião das novenas, que os devotos e vizinhos da Santa celebram em dezembro, época em que a estrada aumenta de delícias, porque os cajueiros e as jaqueiras embalsamam com seus aromas o ambiente, e é tudo ali alegria, florido, e tudo fala de paixões moderadas, sem desejos desonestos.
Mas não é somente nos mimos da Natureza que a estrada pitoresca rivaliza com o ameno vale. Também ali se gerou um drama terníssimo, também nela se passou uma história de gentil suavidade e triste harmonia, que convém se ponha por escritura nas letras do nosso idioma.
Num dos mais aprazíveis sítios, que a espaços ornam de um e de outro lado a estrada, morava, há coisa de seis anos, uma senhora, viúva, idosa, sem filhos mas com alguns meios que lhe davam para viver, tendo em sua companhia uma irmã solteirona e duas ou três crias da casa. No tempo em que se passa esta verídica história, ao número dos que em casa de D. Rosalina viviam à conta de filhos era preciso ajuntar um moço de vinte e dois anos de idade, seu sobrinho, por nome de Ângelo.
Depois de graduado em Direito, deixando todo o curso escolar, transportara-se para uma povoação da beira-mar , ao sul da província. Morava aí o seu pai pobre e cansado de fazer sacrifícios para ajudar na aquisição do pergaminho, seu encantado sonho. Ângelo tinha talento e na Faculdade pudera ganhar nomeada de estudioso e morigerado. Ainda me lembram as circunstâncias em que o vi pela primeira vez. Foi por ocasião de prestarmos os nossos primeiros exames. Ângelo acertou de se sentar junto de mim. Era louro. Tinha os olhos tão verdes como a muiraquitã das amazonas. A jaqueta de pano azul, já um tanto usada, as calças de brim pardo com algumas escoriações na altura dos joelhos, os sapatões, e, por cima do trajo humilde, o gesto triste, posto que resignado, ao lado do porte grave, mas parecendo preso, estavam indicando que no jovem estudante havia menos um filho, do que um enteado da fortuna.
O pai de Ângelo chamara-o para junto de si, animado das mais risonhas esperanças, que não deixavam de ter legítimo fundamento. Sendo a povoação, que ficava perto da sede da comarca, cercada de engenhos e tendo os proprietários rurais quase particular paixão pelos litígios sobre terras, os quais, para assim escrevermos, constituem o principal foro matuto, não andará longe de acertar com o caminho da fortuna o pai do jovem bacharel, conjeturando que muito faria este aí pela advocacia. Mas todos os brilhantes cálculos falharam. Quando estamos em luta com o infortúnio, os semblantes risonhos são máscaras traiçoeiras, que encobrem hórridos carões; a sorte, algumas vezes, parece sorrir para nós; mas o que se nos afigura sorriso lisonjeiro, não é senão o riso escarninho.
Inteiramente desiludido, o bacharel voltara ao Recife, resoluto a tentar o que na povoação não surtira efeito - a advocacia, já sumamente explorada.
A casa da tia tinha para ele as portas abertas como tinha ela o coração, e à mesa estava ainda vazio o lugar que ocupara o estudante.
Com o pé direito, entrou Ângelo novamente no Recife, porque dentro de pouco tempo teve clientes, e entreviu no futuro castelos esplêndidos. Nos primeiros meses, depois de sua chegada, ganhou uma causa importante, de cuja defesa o incumbira a generosidade de um colega. Ângelo, mostrando as notas do Banco, que recebera em pagamento, dizia à D. Rosalina estas palavras:
— Matei o dragão, minha tia! Vou agora tomar conta do pomar das Hespérides.
Tal era Ângelo no começo desta história.
Morava também na estrada, para lá da Conceiçãozinha (nome com que designam a capela os habitantes dos arredores), um moço que fora colega de Ângelo nos preparatórios. Circunstâncias particulares tinham apartado Martins da carreira das letras. Casara-se, indo morar naquele canto, onde uma pequena indústria, que exercia, lhe dera meios para viver com sua mulher e filhos. Mas, como os hábitos que se casam com as vocações naturais dificilmente se perdem, Martins, com ser agora pai de família e homem de negócios, não esquecia as musas, que quando estudante cultivara com freqüência e fervor. Não podendo tratar de letras e versos todos os dias, instituíra, para trazer sempre alentado o fogo do antigo culto, uma espécie de retiro literário aos domingos em sua casa. Os suaves momentos que se passavam na aprazível estrada; as distintas prendas que, com o engenho poético, Martins tivera em dote de natureza e a educação aumentara e polira; as graças, as virtudes, o gênio essencialmente serviçal e hospitaleiro de D. Eugênia, sua mulher; a convivência íntima, nas condições de respeitosa, mas franca e fraternal cordialidade, que constituíam a base principal do retiro literário dava a esta diversão semanal tão particulares atrativos que dos escolhidos para tomarem parte nele, raros eram os que se poderiam acusar de inobservantes do primeiro precito da comunhão - a pontualidade.
Sem as donzelas das vizinhanças, elegantes criaturas que são os gênios protetores daquele encantado ermo, que sorte teria o retiro literário, com ser atrativo por outras muitas circunstâncias? A mesma que entre nós tem dado sepultura a inumeráveis associações depois e alguns meses de fundadas. Aquela inspiração, porém, preveniu a ruína da companhia. Não era esta numerosa, mas distinta. Durante a reunião, serviam-se frutas da estação, que abundavam no sítio; raras vezes se davam a beber bebidas espirituosas. Depois das discussões, sempre em família, ou das leituras, ou das frutas, tocava-se piano; algumas vezes, cantava-se. Quase sempre o ajuntamento acabava em passeios que se prolongavam até as estradas de João Fernandes, Vieira e de Belém, as quais em seus mimos naturais se aproximavam da de João de Barros.