Eugênio era filho do capitão Francisco Antunes, fazendeiro de medianas posses. Trabalhador, bom e extremoso pai de família, liso e sincero em seus negócios, partidista firme, e cidadão sempre pronto para os ônus públicos, nada lhe faltava para gozar da maior consideração e respeito entre os seus conterrâneos.

Antunes tinha terras de sobejo para a pouca escravatura que possuía, e portanto dava morada em sua fazenda a diversos agregados, sem lhes exigir contribuição alguma, nem em serviço nem em dinheiro.

Entre esses agregados contava-se d. Umbelina, que, com sua filha Margarida e uma velha escrava, ocupava a casinha que descrevemos no capítulo antecedente. Umbelina vivia de sua pequena bitácula à beira da estrada, vendendo aguardente e quitandas aos viandantes, cultivando seu quintal, pensando suas vaquinhas, e da venda de frutas, hortaliças e leite sabia com sua diligência e economia tirar um sofrível rendimento.

Era uma matrona gorda e corada, de rosto sempre afável e prazenteiro; sua asseada e garrida casinha, alvejando entre o verdor das balsas e campinas que a circundavam, era uma confirmação palpitante do rifão, que diz - "não há traste que não se pareça com seu dono". - Eram, portanto, uma e outra mui próprias para atrair os viandantes, que não deixavam de apear-se à porta da bitácula da tia Umbelina, a fim de tomarem alguns refrescos ou provarem de suas excelentes quitandas.

Umbelina fora casada com um alferes de cavalaria, que havia morrido nas guerras do Rio Grande do Sul, deixando sua mulher e Margarida, sua única filhinha, ainda no berço, no estado da mais completa indigência. Antunes e sua mulher, que tinham antigas relações de amizade com o falecido alferes, e que eram padrinhos da menina, deram a mão à pobre e desvalida viúva, e a estabeleceram em suas terras.

Margarida teria pouco mais de ano, quando sua mãe foi morar na fazenda do capitão Francisco Antunes. Como Eugênio, filho deste, ainda em tenra idade, não tinha senão um irmão e uma irmã muito mais velhos que ele, e que de há muito se tinham casado, e abandonando o ninho paterno tinha cada qual tomado o seu rumo, Margarida foi como um presente, que o céu lhe enviava para companheira dos brincos de sua infância. Por isso mesmo, os velhos donos da casa muito a estimavam, e a tratavam com todo o mimo, como se fora sua própria filha. Margarida bem o merecia: era uma encantadora menina, de muito bom natural e muito viva e engraçadinha.

Os dois meninos queriam-se como se fossem irmãos, andavam sempre juntos, e não se separavam senão à noite.

Um dia aconteceu-lhes um estupendo e singular incidente, que não posso deixar de referir.

A pequena Margarida, apenas na idade de dois anos, estando a brincar no quintal, desgarrou-se por um momento da companhia da rapariga que a vigiava, e da de seu camarada de infância. Quando este deu pela falta e foi procurá-la, encontrou-a assentada na relva junto de uma fonte a brincar... com que, Santo Deus!... a brincar com uma formidável e truculenta jararaca. A cobra enrolava-se em anéis em volta da criança, lambia-lhe os pés e as mãos com a rubra e farpada língua, e dava-lhe beijos nas faces. A menina a afagava sorrindo, e dava-lhe pequenas pancadas com um pauzinho que tinha na mão, sem que o hediondo animal se irritasse e lhe fizesse a mínima ofensa. Se o Gênesis não nos apresentasse esse terrível réptil como cheio de astúcia e malícia seduzindo a primeira mãe da humanidade e fazendo-a perder para si e para toda a sua descendência as delícias do paraíso terreal, dir-se-ia que até a serpente tem seus impulsos generosos e também sabe respeitar a fraqueza e a inocência da infância.

Mal o menino deu com os olhos naquele estranho e arrepiador espetáculo, rompeu logo em gritos.

— Mamãe!... mamãe!... bradava ele com quanta força tinha - olha cobra! uma cobra está comendo Galida!...

A mãe dele e Umbelina, que não andavam longe, ouvindo os gritos do menino acudiram logo pressurosas, pálidas e transidas de susto, armada cada uma de um comprido pau.

Ao avistarem a cobra enroscando-se nos braços e no pescoço da pobre menina estacaram horrorizadas, a testa se lhes inundou de suor frio, as pernas lhes tremeram, e pouco faltou para que rolassem no chão sem sentidos. Umbelina principalmente estava no mais angustioso transe; foi-lhe mister agarrar-se à estaca de um varal para não cair por terra. As duas mulheres não atinavam com o que deveriam fazer; atacando a cobra receavam assanhá-la e fazer com que mordesse a menina, ao mesmo tempo não podiam deixar; em tamanho perigo aquela pobre criança, que continuava a rir-se e a brincar com a cobra como se fosse uma boneca.

Passaram alguns instantes da mais cruel ansiedade, ao fim dos quais a serpente desenroscou-se e foi-se retirando tranqüilamente, e sumiu-se nas moitas.

Livres daquele primeiro susto, mas não de todo tranqüilas as duas senhoras correram apressadamente a revistar todo o corpo da criança, e tendo reconhecido que o terrível bicho não lhe havia feito nem a mais leve ofensa, levantaram as mãos ao céu derramando lágrimas de gratidão por tão singular benefício que tomaram por um milagre da Providência.

A senhora Antunes chamou logo em altos gritos os escravos, e ordenou-lhes que perseguissem e matassem a cobra. Umbelina, porém, não queria consentir que se fizesse mal ao animal que havia respeitado e afagado sua querida filha.

— É bicho mau, bem sei - dizia ela - mas esta... coitada!... parece não ser da laia das outras; a menina brincava com ela como se fosse um cão de fralda, e a bicha não lhe fez mal nenhum.

— Nada!... nada! - exclamava a outra. - Quem seu inimigo Poupa, nas mãos lhe morre. Sempre é um bicho que Deus excomungou. A comadre deve lembrar-se que foi uma serpente, que tentou Eva.

— Mas uma cobra, que em vez de morder lambe e afaga...

— Também a serpente do paraíso não mordeu Eva; arrastou-se a seu pés e afagou-a para melhor enganá-la.

— Ora, comadre, também a minha Eva ainda está muito pequenina para poder ser tentada pela serpente.

— É que já o bicho maldito a está pondo de olho para mais tarde fazer-lhe mal.

— Qual, comadre!... é porque até as cobras têm respeito à inocência...

— Fie-se nisso!... por sim por não, esta não me há de escapar.

Dizendo isto, a senhora Antunes, com todo o cuidado e precaução sondava com os olhos a moita em que a cobra se tinha sumido. Tendo-a enfim descoberto, encarou-a fixamente, e sem despregar dela os olhos, levou as mãos aos atilhos da cintura da saia, que começou a arrochar cada vez com mais força, murmurando certas orações e esconjuros cabalísticos.

É esta uma simpatia de que usam as nossas roceiras para tornarem as cobras imóveis e pregá-las por assim dizer em um lugar, e dizem que é de um efeito imediato e infalível.

Talvez o leitor não creia nessas coisas que chamam abusões do povo; mas o certo é, que desde o momento em que a senhora Antunes pregou os olhos na cobra e começou a arrochar a saia da cintura, a bicha parou imediatamente e não se mexeu uma linha do lugar em que estava, até que um escravo, chegando com um varapau, veio dar cabo dela.

O rapaz, depois de ter-lhe machucado bem a cabeça, suspendendo a custo o enorme bicho na ponta da vara, arremessou-o no gramal.

A cobra veio cair aos pés de Umbelina, que soltou um grito agudo e deu um salto para trás.

— O que é isso, comadre? está com medo? - exclamou a senhora Antunes com uma gargalhada. Pois não quer ver o lindo e inocente bichinho, que ainda agora estava-lhe beijando a filha?

— Jesus!... santo nome de Jesus! - bradou Umbelina persignando-se e olhando de través o hediondo animal, que se estorcia no chão. - Que bicho medonho!... de que escapou minha pobre filhinha!...

— Ah!... já está vendo?... a comadre deve um favorão a Deus por ter permitido que a cobra não mordesse a menina.

— Anda cá Josefa! - continuou ela, dirigindo-se à escrava. - Daqui em diante mais cautela com estas crianças, ouviste? não te arredes de perto delas... se as deixares outra vez por aí sozinhas, lavro-te de relho, pasmada, e ponho-te na roça com uma enxada na mão... olha a cara desta desmazelada!... está sonsa, que nem para tomar conta de umas crianças tem préstimo!...

O extraordinário incidente foi por muitos dias o assunto da conversação naquela casa.

Umbelina via nele um milagre, pelo qual dava infinitas graças ao céu apertando nos braços a filhinha que, como ela dizia, tinha nascido naquele dia. A mulher de Antunes porém, que tinha o espírito propenso a acreditar em superstições e agouros, teimava em ver naquilo um sinistro prenúncio, que ela mesma não sabia explicar.