Havia já quatro anos, que Eugênio se achava no Seminário sem visitar sua família. Seu pai já por vezes tinha escrito aos padres pedindo-lhes que permitissem que o menino viesse passar as férias em casa. Estes porém já de posse dos segredos da consciência de Eugênio, receando que as seduções do mundo o arredassem do santo propósito em que ia tão bem encaminhado, opuseram-se formalmente, e responderam-lhe, fazendo ver que aquela interrupção na idade em que se achava o menino, era extremamente perigosa, e podia ter péssimas conseqüências, desviando-o para sempre de sua natural vocação.
Uma ausência porém de quatro anos já era excessiva para um coração de mãe, e a de Eugênio, principalmente depois que seu filho andava mofino e adoentado, não pôde mais por modo nenhum conformar-se com a vontade dos padres. Estes portanto, muito de seu mau grado, não tiveram remédio senão deixá-lo partir.
A viagem, o movimento, as distrações, o ar livre restituíram em breve tempo à feliz organização do mancebo o viço e o vigor natural, que a longa enclausuração e a vida ascética lhe iam apagando tanto no físico como no moral. À medida que viajava e ia-se avizinhando do lar paterno, ia-se de novo acendendo o brilho dos seus olhos, voltavam-lhe as cores ao rosto pálido, e com elas voltavam também a enxamear no espírito as fagueiras recordações dos brincos da infância em companhia de sua bem querida companheira, como um bando de passarinhos, que depois de uma longa invernada saem das moitas a esvoaçar, espanejar-se e cantar pelos ramos floridos do vergel aos raios de uma formosa manhã de agosto.
Eugênio ardia de impaciência por tornar a ver a casa paterna, os sítios amados onde passara a infância com Margarida. Em sua inexperiente confiança já não receava perigo algum em rever em carne e osso aquela encantadora menina da qual somente a lembrança outrora o assustava, pois julgava-se bastante premunido pelos conselhos e exortações do padre contra qualquer sedução do mundo, e abandonava-se sem reserva às suaves emoções e ao alegre alvoroço que lhe ofegava no coração.
O dia da chegada de Eugênio foi um dia de festa em casa do capitão Antunes. Pai e mãe se extasiavam diante do filho, e não se fartavam de contemplá-lo, admirando-lhe o porte e o crescimento, as maneiras e o rosto já tão graves e sisudos, e enfim aquele todo verdadeiramente sacerdotal.
Como Eugênio chegara à casa quase à noite, somente na manhã do dia seguinte Umbelina e sua filha puderam ir cumprimentar e visitar o recém-chegado, o pequeno padre, como já chamavam a Eugênio. Apenas este deu com os olhos em Margarida, sentiu um abalo estranho, uma perturbação extraordinária; corou e empalideceu no mesmo instante, ficou trêmulo, confuso e tolhido, como se tivesse diante de seus olhos um espectro ameaçador, e apenas pôde balbuciar um cumprimento embaraçado.
Quanto a Umbelina, essa saltou logo com sofreguidão ao colo do rapaz, apertou-o nos braços, beijou-o na testa dirigindo-lhe os mais bizarros cumprimentos.
— Santo Deus como está grande e bem parecido!... está um homem feito... e já está com o caráter de padre santo!...
Enquanto Umbelina se desabafava nestes e outros cumprimentos, Eugênio confuso e embaraçado olhava de esguelha para Margarida não ousando fitá-la, pasmo com a mudança que quatro anos puderam operar no desenvolvimento da menina, e cuidava vir ainda encontrar pouco mais ou menos a mesma inocente e linda criança que deixara pequena como ele. Eugênio, com ser mais velho dois anos, não havia feito mudança notável, e ainda se considerava menino. Não sabia que o desenvolvimento nas mulheres se opera com muito maior rapidez, e ficou assombrado quando em vez de uma menina, que esperava pôr sobre os joelhos, viu apresentar-se diante dos seus olhos uma linda mocetona, alta, garbosa, bem feita e em toda a plenitude de seu desenvolvimento.
De fato, a interessante menina em quatro anos tinha-se transformado na mais encantadora moça.
A tez era de um moreno delicado e polido, como resvalando uns reflexos de matiz de ouro. Os olhos grandes e escuros tinham essa luz suave e aveludada, que não se irradia, mas parece querer recolher dentro da alma todos os seus fulgores à sombra das negras e compridas pestanas, como tímidas rolas, que se encolhem escondendo a cabeça debaixo da asa acetinada; as sobrancelhas pretas e compactas davam ainda mais realce ao mavioso da luz que os inundava, como lâmpadas misteriosas de um santuário. Os cabelos, uma porção dos quais trazia soltos por trás da cabeça, lhe rolavam negros e luzidios sobre os ombros como as catadupas enoveladas de uma cachoeira. Ao mais leve sorriso, que lhe entreabria os lábios, cavavam-se-lhe nas duas mimosas faces com uma graça indefinível essas feiticeiras covinhas, que o vulgo chama com tanta propriedade - grutas de Vênus. A boca, onde o lábio inferior cheio e voluptuoso dobrava-se graciosamente sobre um queixo redondo e divinamente esculturado, a boca era vermelha, fresca e úmida como uma rosa orvalhada. O colo, os ombros, os braços, eram de uma morbidez e lavor admiráveis.
Sua fala era uma vibração de amor, que alvoroçava os corações, o olhar como luz de lâmpada encantada, que fascina e desvaira; o sorriso era um lampejo de volúpia, que fazia sonhar com as delícias do Éden.
Era, enfim, o tipo o mais esmerado da beleza sensual, mas habitado por uma alma virgem, cândida e sensível. Era uma estátua de Vênus animada por um espírito angélico.
Ainda que Eugênio não conhecesse e amasse Margarida desde a infância, ainda que a visse então pela primeira vez, era impossível, que toda a virtude e austeridade daquele cenobita em botão não se prostrasse vencido diante daquela deslumbrante visão.
Margarida estava vestida de cor-de-rosa com muita graça e simplicidade; tinha por único enfeite na cabeça um simples botão de rosa. Eugênio esteve por muito tempo mudo e entregue a um indizível acanhamento diante da companheira de sua infância, como se se achasse em presença de uma alta e poderosa princesa.
Foi a tia Umbelina quem primeiro rompeu o silêncio:
— Está com efeito um mocetão o Sr. Eugeninho!... há de dar um bonito padre.
O estudante olhou para Margarida como quem dizia - nunca! corou e abaixou os olhos sorrindo tristemente, como o faria a mais pudica donzela. Aquele cumprimento de bonito padre, que lhe era lançado em face ali, em presença de Margarida, causou-lhe uma estranha e desagradável impressão.
— É isso mesmo - continuou Umbelina em ar de gracejo -, já não conhece os seus amigos velhos ou daqui a pouco é senhor padre, senhor vigário, e nem há de querer mais olhar para a gente, não é assim, senhor Eugeninho?
— Não diga isso nem brincando, tia Umbelina - replicou Eugênio cada vez mais enfiado. - Deus me livre de fazer pouco caso de ninguém, quanto mais da gente de casa de quem eu tinha tanta saudade. O que me admira é ver a dona Margarida como cresceu tanto e ficou moça tão depressa.
— Toma lá, menina! - exclamou Umbelina dando uma risada; - está-te dando de dona!... que dizia eu?... para ele já somos como gente estranha. Já se esqueceu que ainda o outro dia brincavam juntos?... deixemo-nos de donas aqui, senhor Eugênio; esta menina é para Vm. o mesmo que uma irmãzinha. Quero vê-lo tal qual era dantes.
— Mas ela... já está tão... já está moça... - ia gaguejando Eugênio no maior enleio - e eu achava que...
— Tem razão, meu filho - atalhou a mãe acudindo ao embaraço do filho; - nem sempre a gente é criança; Margarida já está ficando uma senhora, e você não pode tratar "a ela" agora, como no tempo em que brincavam juntos o "esconde-esconde".
— Assim deve ser mesmo, retorquiu Margarida com um sorriso cheio de encanto, mas um tanto malicioso; - minha madrinha tem razão; também ele já está ficando um homem sério, e eu daqui em diante não o devo tratar senão por - senhor Eugênio, não é assim, mamãe?
— Sem dúvida, minha filha. Agora vou caindo em mim, e vejo que todos têm razão. Nem todo o tempo é um. Algum dia ainda pode acontecer, que te ajoelhes aos pés ali do senhor Eugênio no confessionário, e é bom desde já ir-te acostumando a tratá-lo com o respeito que lhe é devido.
Margarida e Eugênio olharam um para o outro. Lembraramse do juramento mútuo, que se haviam feito havia quatro anos a respeito de confissão, no vargedo junto às paineiras da ponte, e uma abaixou os olhos e corou; o outro que já estava rubro a não poder mais, empalideceu.
Com aqueles gracejos, Eugênio tornava-se cada vez mais tolhido e desconcertado, coçava a cabeça, mordia os beiços, e estava quase a chorar de desapontamento. O título de padre, que até então lhe parecia tão bonito, naquela ocasião não sei por que lhe causava arrepios e lhe parecia horrivelmente áspero e desentoado.
Margarida principalmente, que havia herdado um pouco do espírito cáustico e zombeteiro de sua mãe, trazendo à conversa também a sua pilhéria, tinha acabado de desconcertar e desorientar completamente o pobre rapaz. Vendo, porém, quanto o afligia e incomodava aquela conversação arrependeu-se no íntimo da alma, e como corrida de seu próprio procedimento procurou repará-lo do melhor modo que pôde.
— Queira perdoar-me, se o agravei, senhor Eugênio - disse-lhe com meiguice - Nós estamos brincando, e não temos a menor intenção de incomodá-lo. Eu não me lembrava que não estamos mais naquele nosso bom tempo em que eu lhe dizia quanta asneira me vinha à boca, sem que o senhor desse o cavaco...
— Eu dar o cavaco?! está enganada!... disse o rapaz levantando-se e forcejando por mostrar-se lesto e desembaraçado. - Podem caçoar, quanto quiserem, que eu nem dou fé.
Entretanto não teve remédio senão ir colocar-se a uma janela a fim de ocultar a perturbação e desapontamento, que lhe transtornava a fisionomia.
— Aqui ninguém é capaz de caçoar com Vm., senhor Eugênio, acudiu Umbelina; - Deus nos livre de tal! Estamos gracejando; a gente também não há de estar sempre séria como uma abadessa: de vez em quando é preciso rir um bocado.
— Diz muito bem, comadre - atalhou a senhora Antunes; a gente deve divertir-se. Isso do Eugênio, é acanhamento que trouxe do seminário; logo há de se ir desembaraçando... arre!... como faz calor! vamos nós passear à horta, hem, comadre?
— Pronta!... vamos: vamos todos.