Assim passou-se mais de um mês, durante o qual a assiduidade de Eugênio em casa de Umbelina não se interrompeu. A antiga amizade se reatou, senão com a mesma familiaridade e abandono da quadra infantil, todavia com mais ardor, com mais energia e paixão.

O anjo da inocência, que desatando-lhes de manso a venda dos olhos já lhes ia dizendo adeus, deixava-lhes em compensação o diáfano e misterioso véu do pudor, esse encantador privilégio da puberdade, que envolve a alma virginal, e não deixa exalar-se do coração que o contém o suave aroma das emoções do amor, que apenas se revelam no rubor das faces e na meiga timidez do olhar, como os fulgores e as purpúreas faixas do oriente anunciam a presença do sol ainda escondido atrás dos horizontes.

Mas Eugênio já era um guapo mocetão de dezesseis a dezessete anos, e Margarida, com os seus quatorze, já era uma moça feita em toda a plenitude e esplendor de seu rápido desenvolvimento. Umbelina bem via que já não ficava bem deixar a sós por muito tempo e entregues a si mesmos como no tempo da meninice aquelas duas criaturas que se queriam tanto, e portanto não lhes permitia mais que vagassem sozinhos pelos campos como outrora, longe de suas vistas. Fazia muito bem; mas, não obstante, a tia Umbelina, toda atarefada como sempre andava, não podia deixar de proporcionar-lhes muitas ocasiões de se acharem a sós em ocasiões de que sabiam aproveitar-se muito bem para se afagarem. Esses afagos porém não passavam de uns prolongados apertos de mão, de algum abraço dado assim em ar de brinquedo e sem intenção amorosa, ou de um desses olhares mudos, longos e repassados de ternura, que em si resumem todo um poema de amor. Bem vontade tinham eles de se beijarem, mas tolhia-os um acanhamento virginal, esse pudor nativo, que é como o orvalho, que só na aurora esmalta o cálix das flores, e os desejos morreram-lhes dentro da alma, e os beijos apenas lhes estremeciam na ponta dos lábios, como tenros passarinhos batendo as asas implumes à beira do ninho, ansiando, mas nunca ousando desprender o vôo pelo espaço.

Quanto mais viva se tornava a afeição de Eugênio por Margarida, maior era a repugnância, que ia tomando pelo estado eclesiástico.

Não se pode imaginar com que desgosto todos os domingos envergava a roupeta colegial e a sobrepeliz para ir ajudar na vila a missa conventual ao vigário. Mas esse era o gosto, essa era a ordem de seus pais, que sentiam indizível prazer em apresentar ao público o seu lindo padrezinho em botão, e não cabiam na pele de contentes, quando o viam funcionando no altar com aquela sisudez e gravidade de um verdadeiro sacerdote.

Quando, ao fazer algumas das evoluções do seu mister, Eugênio voltava-se para o público, e encontrava entre a turba das mulheres os grandes e luzentes olhos de Margarida fitos sobre ele, perturbava-se, ficava enfiado e corava como uma papoula; vinha-lhe à idéia a história da mula-sem-cabeça, e esta lembrança lhe causava a mais desagradável e horripilante impressão.

A assídua freqüência de Eugênio em casa de Margarida já ia dando muito nos olhos, e tornando-se por demais comprometedora não deixava de causar desgostos e inquietação a seus pais.

— Menino - dizia a senhora Antunes a seu filho, talvez já pela trigésima vez -, isto não vai bem. Não paras um momento perto de tua mãe e de teu pai, e não sais da casa da comadre Umbelina!... olha que tens de ser padre e um padre, que não quer senão estar perto das moças... não sei o que lhe diga... isso não te fica bem.

— Ora, mamãe!... pois que tem lá isso?... desde criança que estou acostumado a brincar com a Margarida! pois se eu tivesse uma irmã mais moça, não podia brincar com ela?...

— Ora faça-se de tolo!... como está inocente o meu filho!... então porque brincaste com ela em criança, podes brincar agora, e mesmo depois de padre poderás brincar ainda, como no tempo em que andavas em fraldas de camisa; não e assim?...

— Ah! minha mãe?... também eu... a falar a verdade...

Eugênio suspirou e não teve ânimo de prosseguir.

— Também eu o quê, meu filho?... acaba.

— Não tenho vontade nenhuma...

Eugênio empacou outra vez.

— Vontade nenhuma de quê?... desemperra essa língua; fala; não tenhas susto.

— Minha mãe não fica zangada?

— Eu, não, meu filho; fala o que tens no coração; se for alguma asneira, me entrará por um ouvido e sairá pelo outro. De que é que não tem vontade nenhuma?...

— De ser padre, minha mãe...

Há muito tempo que Eugênio desejava, mas não tinha ânimo de fazer aquela confissão, que lhe dava um nó na garganta, e lhe pesava como um rochedo sobre o coração, sentiu-se aliviado alijando-o sobre sua mãe.

— Deveras, meu filho?... exclamou a mãe com surpresa - que me dizes? isso é de agora, pois sempre te percebi muita inclinação para padre... Que, te dizia eu?... a tal minha afilhada está te virando a cabecinha... logo vi... não são senão elas, que te andam metendo essas caraminholas na cabeça...

— Elas nunca me disseram nada, minha mãe, por Deus!... elas até gostam tanto de me ver de batina ajudando à missa na vila!... a tia Umbelina até já me prometeu uma sobrepeliz e uma volta bordada para quando eu disser missa nova. Eu mesmo é que não tenho inclinação nenhuma...

— Não digas tal, menino!... interrompeu a mãe com azedume. Seja como for, é preciso que não vás mais tão a miúdo àquela casa. Isso não te fica bem. A Margarida está ficando moça, e tu não és nenhum criançola; as tuas repetidas visitas podem dar que falar da pobre da menina.

— Mas, mamãe; nós nunca saímos de perto da tia Umbelina.

— Não importa. Demais depois que a Margarida está ficando moça, ali é casa de muito ajuntamento, e eu não te quero ver metido no meio de gentalha...

— Mas, minha mãe, quando lá há gente demais, eu sempre me venho embora.

— Nada! nada!... isto não pode continuar assim, pode-te acontecer alguma. Se teimas em continuar a não sair lá da casa da comadre Umbelina, falo com teu pai para te mandar já para o seminário, mesmo antes de se acabarem as férias, e não voltas de lá senão depois de ordenado.

Com esta tremenda cominação Eugênio ficou acabrunhado. As últimas palavras de sua mãe caíram como rochedos sobre o seu coração, e o esmagaram. A idéia de voltar ao seminário e de separar-se de Margarida era a nuvem sinistra e carregada, que há muito ensombrava um canto do seu risonho e límpido céu de amor, e que ameaçava envolve-lo todo em lúgubre e eterna escuridão.

Triste, mudo e amuado, Eugênio retirou-se, e foi encerrar-se em seu quarto donde não saiu mais todo esse dia.

Como os conselhos e exprobrações do padre diretor no seminário, as repreensões e ameaças maternas vieram dar maior vulto à paixão do moço, tornando ainda mais desejado o objeto amado. É essa a inalterável e eterna lei do coração humano.

Se o padre diretor ao chamar o estudante ao seu quarto lhe tivesse dito simplesmente: - menino, tens no coração uma afeição mundana, que não pode compadecer-se com o estado a que te destinas, e que é preciso que combatas. Mas se acaso não puderes banir do teu coração esse afeto, que pode ser puro e legitimo, podes continuar a estudar, porém não para o estado eclesiástico - se tivesse procedido assim, o padre teria talvez conseguido melhor o seu intento. Deixando ampla liberdade de expansão aos sentimentos do menino, teria talvez facilitado ao seu neófito a vitória sobre si mesmo.

A torrente represada acaba por despedaçar diques e arrojar-se mais furiosa no seu leito natural. Desde que Eugênio viu interpor-se entre ele e Margarida um anátema tremendo, que como um abismo os separava, perturbou-se para sempre a severidade da sua alma, e esse afeto que votava à companheira de sua infância, posto que a princípio abafado temporariamente pelo manto de gelo de um factício e austero ascetismo, e agora, de fresco rudemente contrariado por sua mãe, ia fatalmente transformar-se na mais ardente, profunda e impetuosa paixão.

Se por seu lado também a senhora Antunes, que devia conhecer melhor do que ninguém o coração de seu filho, sem deixar-lhe a rédea solta a todos os caprichos e desvarios da imaginação, procurasse com mais brandura encaminhá-lo ao fim que desejava, sem contrariar de frente as mais caras afeições de seu coração, talvez o tivesse conseguido, ou pelo menos evitaria a longa e dolorosa luta que iria dilacerar o coração de seu filho sem outro resultado mais do que um infortúnio certo e irremediável.

A mãe de Eugênio era fanática e supersticiosa. A aventura da cobra enleando-se no corpo de Margarida, que nunca lhe saía da lembrança, lhe incomodara sempre o espírito. Agora refletindo sobre a cega e ardente afeição que a menina ia inspirando cada vez mais a seu filho, entrou a nutrir as mais tristes e sombrias apreensões, e acabou por convencer-se que não era senão o demônio, que em figura de cobra viera lançar no seio da menina o germe da tentação para seduzir seu filho, desviá-lo de sua santa vocação, e arrastá-lo ao caminho da perdição. Daí aquela severidade e rigor que lhe não eram usuais, e que só por um tão poderoso motivo podia ser impelida.

A boa senhora não considerava que o germe da tentação já Margarida, como toda moça bonita, o tinha nos olhos, e por mais tremendos que fossem os anátemas que fulminasse para preservar o novo Adão das seduções da serpente, mais lhe acenderia o desejo de provar do pomo vedado.

O que, portanto, não lhe era permitido fazer francamente e à luz do sol, procurou Eugênio fazê-lo furtivamente e à sombra do manto silencioso e discreto da noite, cujos véus propícios ocultaram mais de uma entrevista, em que os ardentes afetos dos dois amantes se expandiram muito mais à vontade sem testemunhas nem constrangimento de espécie alguma. Romeu, iludindo a vigilância materna, nas horas mortas da noite, quando o julgavam tranqüilamente adormecido, abria de mansinho a janela do seu quarto, saltava ao terreiro, e veloz e sutil como um silfo noturno, atravessando os vales silenciosos corria pressuroso para junto da sua Julieta.

Os dois amantes, pondo de parte toda a reserva e timidez, deram livre expansão aos seus afetos, e pela primeira vez falaram sem rebuço de amor, de casamento, de felicidade futura nos braços um do outro, e os beijos, aqueles beijos, que ã luz do sol apenas esvoaçavam tímidos à flor dos lábios e morriam no limbo dos desejos, soltaram o vôo, encontraram-se através das grades, e imprimiram-se férvidos e trementes nos lábios de um e outro amante.

As meigas falas que ali se ciciaram em segredo, os arrulhos estremecidos, os suspiros abafados, que ali se exalaram, a noite e a solidão os receberam em seu seio segredoso, e os dispersaram nos ares de envolta com o sussurro da folhagem.