Esta pendência, que teria passado a vias de fato, se as mulheres, que formavam a grande maioria daquela reunião, não interviessem com os seus gritos e choradeiras, esfriou completamente o folguedo, que daí em diante perdeu toda a animação e pouco durou.

Dissolvida a reunião, Eugênio partiu para a vila, em companhia do amigo, que havia tão generosamente tomado a sua defesa contra Luciano. Receando algum desacato da parte deste, não quis que o filho de Antunes partisse só, e acompanhou-o até a vila, onde também morava.

Eugênio repousou o resto da noite em casa de seu protetor, e apenas rompeu o dia foi para a casa do primo, que servira de pretexto à sua escapula da fazenda paterna. Utilizando-se da autorização que o pai lhe dera, aí ficou dois dias.

Um negro fugido não tem mais medo de comparecer perante o seu senhor, como Eugênio se arreceava da presença de seu pai depois do desaguisado do mutirão. Estava certo que aquele fato tarde ou cedo lhe chegaria aos ouvidos.

Se Umbelina e os outros convivas eram capazes de guardar silêncio e abafar aquela desagradável ocorrência, outro tanto não se podia esperar de Luciano, que por vingança seria o primeiro a tocar a caixa do pregão e até seria capaz de ir pessoalmente denunciar a Antunes todo o acontecido.

Passados dois dias o próprio Antunes foi à vila buscar seu filho.

Quando o algoz munido de baraço e cutelo se apresenta na masmorra do condenado, não produz mais horrível impressão do que a presença de Antunes produziu no ânimo do filho.

Levou-o todavia para casa sem dar mostras de que sabia alguma do negócio do mutirão. Eugênio resfolegava; mas a tormenta estava reservada para quando chegassem em casa.

— Agora, senhor Eugênio, assente-se aí, e vamos conversar um pouco - disse Antunes fazendo sentar seu filho diante de si. - Creio que já é tempo de parar um pouco em casa e ir-se arranjando para voltar ao seminário; ou ainda não estará farto de súcias?

Este tom de severa ironia aterrou Eugênio.

— Eu não estive em nenhuma súcia - respondeu timidamente. - Meu pai não me deu licença, para, ficar na vila, os dias que eu quisesse?

— Mas porventura dei-lhe licença para ir em mutirão algum?

— Eu!... "em" mutirão?... quem lhe disse isso?

— Ora quem me disse!,.. quer acaso negar?...

O filho viu que estava perdido; calou-se, e de cabeça baixa esperou o desabar da tempestade.

— Com efeito, senhor Eugênio! - continuou o pai sempre no mesmo tom; - vmcê., pela maneira que vai, vem a dar um excelente padre! Enganar-me a mim para sair de casa e ir-se meter em suciatas e bebedeiras no meio de uma corja de peraltas e vadios! nunca tal esperei!... isto vai às mil maravilhas! E a tal senhora Umbelina com o chamarisco da sua boa filha, que anda-me aqui a desinquietar os filhos alheios, dando funçanatas e descantes! não cuida ela em rezar e dar educação à menina!... Deixe-a estar, que se não mudar de vida, terá de arrepender-se; não estou mais para aturá-la em minhas terras. Se continuar assim, ponha a trouxa às costas, e procure seu rumo, ou case a filha e mande-a tratar da vida. E vmcê., senhor criançola, com essa carinha de santo, já metido em tafularias altas, fazendo volta às raparigas, e metendo-se em rusgas por amor delas... se lhe tivessem moído os ossos a pau não era bem feito?... e eu e tua mãe com que cara havíamos de ficar?... ah! velhaquete!... que lindo padre se não está preparando aqui!....

Eugênio, trêmulo, confuso e de olhos no chão deixou cair sobre sua cabeça toda esta tremenda trovoada.

— Mas, meu pai.... - balbuciou ele - eu não boli com ninguém: havia lá um homem muito malcriado que...

— Cala-te tolo; a culpa é tua. Que foste lá fazer?... e o que esperavas mais, misturando-te com semelhante canalha?... Viste lá algum homem de bem? aposto que não. Só tu tiveste ânimo para tanto, tu uma criança, tu que um dia tens de ser um padre!!...

Eugênio, acabrunhado de dor e de vergonha, sofria as mais violentas e pungentes torturas; as lágrimas cintilantes lhe dançavam à borda das pálpebras, e os soluços abafados o sufocavam e embargavam-lhe a fala. Uma vez porém que se achava naquela cruel situação, inteiramente perdido no conceito de seu pai, visto que não era possível encolerizá-lo mais do que estava, Eugênio entendeu que não podia achar melhor ocasião de abrir-lhe sua alma e fazer-lhe a mesma confissão que já havia feito a sua mãe.

Mas faltava-lhe o ânimo; fez um violento esforço e balbuciou.

— Mas, meu pai... eu...

Não pôde continuar; as lágrimas e soluços até ali a custo contidos fizeram explosão tempestuosa. As primeiras palavras do menino abriram-lhes franca saída.

— Mas o quê?...

— Mas... eu não...

Nova explosão de soluços afogou-lhe a palavra.

— Eu não, o quê?... acabemos com isto, meu filho.

— Eu não... tenho vontade de...

Aqui ainda os soluços abafavam-lhe a voz; a palavra fatal agarrava-se teimosa na garganta, donde um nó de soluços não a deixava escapar-se.

— Mau! acabe com isso - exclamou o pai impacientado; - não tem vontade de quê?... fale... pois um moço, um rapagão, que já anda em tafularias, não tem vergonha de estar aí a chorar como uma criança! vamos com isso; de que é que não tem vontade!

— De ser padre, meu pai.

Estas palavras o estudante as despejou da boca rapidamente, como se fossem brasas que lhe queimavam os lábios.

— Deveras!.. viva isso! muito bem, senhor meu filho! exclamou Antunes com sardônico sorriso. - Então com que, não quer ser padre?... e isto sem dúvida porque quer se casar com a Margarida, não é assim, meu filho?

— Meu pai, exclamou o filho com um olhar e um tom de quem pedia compaixão ao desapiedado pai.

— És um tolo ainda, meu pobre filho; não sabes o que é o mundo ainda, e aquela rapariga te anda revirando os miolos.

— Meu pai, não é ela...

— Não me repliques. Estou bem certo que, se não fosse ela, não terias semelhantes caprichos. E pensas tu, que eu hei de consentir que deixes de seguir uma carreira tão bela e tão honrosa, para o que não tenho poupado dinheiro nem cuidados, por amor de uma... miserável?

— Oh, meu pai, não é assim; ela não tem culpa...

— Anda lá!... não cuides que podes enganar-me; bem te conheço e a ela também... mas deixemo-nos disto. Avia-te quanto antes para voltar ao seminário. Bem mal fiz em te mandar buscar contra o conselho dos padres. Basta de férias. Vai-te, e não me voltarás aqui senão ordenado. Depois de amanhã sem falta quero vê-lo pelas costas. Basta de tafularias.

Depois de amanhã sem falta! Oh! pai desapiedado! Oh! miserando Eugênio! aquelas palavras esmagaram-lhe o coração. Partir, deixar Margarida, para não voltar senão daí a seis ou sete anos, talvez nunca, quem sabe? Esta ideia lhe gelara o coração como um prenúncio de morte.

Depois de amanhã sem falta! Estas palavras toaram horríveis aos ouvidos do mancebo como os clangores da trombeta do arcanjo anunciando o fim do mundo; o presente, o passado, o futuro, o mundo, o espaço, tudo se esvaecia, e parecia-lhe que sua alma se ia abismando aniquilada no seio das sombras eternas.

Não era porém mais do que uma vertigem, que lhe escurecia os olhos e turbava os sentimentos, e que o fez tombar sobre uma cadeira, banhado de suores frios. Seus olhos se cerravam e no meio de um disco de cores inflamadas se lhe apresentou a imagem de Margarida, pálida e chorosa, acenando-lhe ao longe um derradeiro e triste adeus.

Antunes, que ao despedir os últimos raios de sua cólera havia voltado bruscamente as costas e se retirara, nada disto havia presenciado.

O delíquio foi passageiro; durou apenas alguns instantes. Com o coração ralado de angústia o mancebo foi procurar sua mãe, a ver se debaixo da asa maternal poderia encontrar abrigo contra os rigores inexoráveis da autoridade paterna, e algum alívio e conforto às amarguras de sua alma.

Achou de feito palavras de consolação e conforto nos lábios maternos; mas se a mãe o tratou com menos rigor e aspereza, todavia a sua resolução de fazer Eugênio tomar ordens sacras não era menos inabalável que a do pai. A cena fatídica da cobra enleada na Margarida estava altamente gravada em seu espírito, e a senhora Antunes estava intimamente persuadida de que aquela serpente era o demônio, que viera insuflar no seio de Margarida o espírito maléfico para tentar seu filho, e que somente o hábito sacerdotal podia preservá-lo do caminho da perdição.

As doces palavras, as afetuosas exortações e conselhos da mãe trouxeram momentâneo lenitivo às amarguras do filho, mas não conseguiram desvanecer a nuvem sombria, que lhe envolvia o espírito e lhe pesava sobre o coração.

O sopro da brisa matinal pode varrer a névoa ligeira que touca o cabeço da montanha, mas não o vulcão carregado que traz no seio a tempestade.