DOS AMIGOS.

     Concluira Moirão sua grave occupação e acendendo o cachimbo preparava-se á fazer o chylo com igual pachorra.

     Recostou-se afinal ao tronco da arvore, soltando uma baforada de fumo que o envolveu como uma nuvem densa.

     — Então, Arnaldo, como foi isto por cá, amigo ? Secca muita, já se sabe ! Olhe, digam vocês o que quizerem, isto não é terra de cristão.

     — De cristão é que ella é, Aleixo Vargas ; pois ao cristão ensinou o divino mestre a paciencia e o trabalho. Para quem não serve a minha terra é para aquelles que não apprendem com ella á ser fortes e corajosos.

     — Pois é coisa que se aprenda, morrer de fome e de sede ainda mais ?

     — Tudo aprende o homem, quando não lhe falta coragem. O cavallo deste sertão de Quixeramobim caminha o dia inteiro, come um ramo de juá, e só bebe agua quando encontra a cacimba ; Aonde há mais valente campeão ?

     — Eu cá prefiro andar pelo meu pé, mas em terra capaz, á empoleirar-me no tal bicho que só tem pelle e ossos.

     Arnaldo não respondeu, e Aleixo continuou á envolver-se em um turbilhão de fumaça que dava-lhe o aspecto de um eolo pintado na taboleta de alguma taberna classica.

     Depois de breve pausa o sertanejo reatou o fio da conversa :

     — Ora, Aleixo, que somos amigos ha tanto tempo e nunca experimentei as minhas forças com você.

     — Para que isso ? Perguntou Moirão com sua habitual fatuidade.

     — Bem sei que não posso medir-me com você ; mas queria saber até onde chega meu pulso. Talvez não seja lá dos mais fracos e ninguem está mais no caso de julgar do que o barra dêste sertão.

     A ponta de ironia que acerava o sorriso do mancebo era tão subtil, e o tom affavel da palavra a envolvia de modo, que Moirão não podia percebel-a, ainda que fosse dotado de maior perspicacia do que lhe tocara em quinhão.

     — Isso lá é verdade. Ainda não encontrei homem que não derrubasse : uns torcem mais, outros menos ; porém no fim de contas lá vão todos ao chão rebolindo que é um gosto.

     — Vamos á ver se eu sou dos que torcem mais, disse Arnaldo com volubilidade.

     — Então quer mesmo, rapaz ? Chegue cá, e pendure-se á este braço ; com as duas mãos, não faz mal.

     Moirão arregaçou a manga da camisa, e descobrindo um braço grosso e musculoso como a perna de uma anta, fincou o cotovrllo no tronco do angico.

     — Queda de braço, não, disse Arnaldo ; hade ser quéda de corpo.

     — Ah ! Você quer tirar lérias comigo, rapaz ?

     E o latagão derreou-se novamente no tronco do angico, despedindo de si um rolo de fumo, tão grosso, que parecia o da chaminé da herdade.

     — Supponha você, Aleixo, que em vez de camaradas eramos dois sujeitos que se traziam de olho e que approveitavam esta occasião de se descartarem um do outro.

     Moirão começou á cantarolar um mote de sua composição :

Quando eu vim de minha terra
Eu era Aleixo pimpão ;
Agora fiquei Moirão
Aqui neste pé de serra.

     Debalde tentou Arnaldo captivar a attenção do minhoto : elle embrulhava-se lá na sua cantiga ; não queria ouvir.

     — Bem ; já vejo que você não é meu amigo.

     — Donde tirou isto ? perguntou Moirão tornando ao serio. Olhe, rapaz, que eu não sou homem de dares nem tomares, e quando trato um tal de amigo, é devéras. Aqui neste sertão ninguem ainda se benzeu com este nome senão um, que se chama Arnaldo Louredo ; e ando por aqui já ha uns pares de annos.

     — Si fosse amigo verdadeiro de Arnaldo, não lhe recusaria o que elle pede.

     — Falle-me neste tom, rapaz, que já o entendo. Então é sério ?

     — É um favor.

     — Pois faço-lhe o gosto.

     Aleixo metteu o cachimbo em um esgalho. Apoiado fortemente sobre o grosso ramo da arvore, a qual estremeceu com seu pezo, estirou os dois braços, que alongaram-se como os arpéos de um guindaste, para abarcarem o corpo delgado de Arnaldo.

     Mas o sertanejo escapou-lhe ao arrocho e galgando os ramos superiores da arvore, suspendeu-se á um delles, trançando os pés. Então deixou-se cair á prumo, agarrou o adversario pelas axillas, e com uma força que não se esperava de seu talhe franzino arrancou o colosso do galho em que se apoiava.

     Um instante o rapaz embalançou o corpanzil sobre o precipicio, onde parecia que iam ambos despenhar-se. Afinal, receando que o pezo enorme lhe rompesse os musculos, escanchou o latagão no ramo do angico.

     Moirão segurou-se automaticamente à arvore. Sua fisionomia, de ordinario simploria, tinha nessa conjunctura uma expressão idiota. O exito da luta o deixara estupefato. Por algum tempo ficou na mesma posição, immovel e basbaque.

     Até que arrancou-se á essa pasmaceira com um arremessão.

     — Foi este diabo ! exclamou, batendo com a chanca no tronco do angico. Onde é que já se viu pegar um cristão queda de corpo em cima das arvores ? Isto é para bugios ou caboclos, que tanto vale, pois são da mesma raça. No chão era outra coisa, rapaz.

     — Experimentemos no chão. Não custa, disse Arnaldo com indifferença.

     Desta vez o empenho era de Aleixo que ardia por tomar a desforra da sorpresa. Prontamente escorregou pelos galhos e tronco da arvore até o chão. Saltando no meio de uma clareira, calcou os pés no solo com força, e com o corpo rijo como o poste de que tomara o nome, disse :

     — Ande agora para cá, rapaz, que hade ver o que é um barra.

     Aleixo tinha razão. Em terra firme não havia força de homem que o podesse abalar, quanto menos tiral-o do lugar. O mais vigoroso touro do sertão, elle o sustentava sem toscanejar, pela ponta do laço de couro cru.

     As largas chancas do colosso pareciam fincadas no chão como as grossas raízes de uma gamelleira, e o corpo obezo e direito figurava uma ponta de rochedo, que surdia da terra.

     Arnaldo caminhou para o colosso e erguendo os braços entregou-se áquelle grilhão vivo.

     A fina compleição do talhe foi o que livrou-o de ser logo esmagado no arrocho. Enquanto Moirão, cerrando-o ao peito, buscava estringil-o como as roscas de uma serpente, o mancebo colava-se ao adversario para attenuar a violenta pressão.

     Apenas Aleixo acochou o corpo do outro, suspendeu-o aos ares, como faria com um toro de pita ; porém ao mesmo tempo os dois braços do sertanejo esticaram-se para logo se retrahirem rapidamente, e os punhos, como dois malhos de ferro brandidos por molas rijas, bateram no craneo do minhoto.

     Uma nuvem de sangue cobriu os olhos do colosso que vacillava. Arnaldo amparou-o para que não tombasse e reclinando-o com uma solicitude para estranhar naquella circumstancia, deitou-o de supino sobre a relva.

     Ao cabo de poucos instantes, Moirão tornou do desmaio, mas para cahir no pasmo em que o deixara a primeira luta. Desta vez, porém, estava realmente assombrado. O que lhe acontecera não era cousa desste mundo ; andava ahi uma influencia sobrenatural. Quem o derrubara não fora seu camarada, o Arnaldo, mas a propria pessoa do demo na figura do rapaz. Nem haveria meio de persuadil-o que elle, Aleixo, fôra vencido duas vezes numa quéda de corpo, tão expeditamente, e ainda mais por um magriço. Eram artes do tinhoso.

     Quando ao abrir dos olhos deu com o sertanejo em pé junto de si, levantou a pesada manopla e atravessou-a pelo rosto com um geito que parecia arremedar o signal da cruz.

     Arnaldo ergueu o busto do Moirão e encostou-o ao tronco de uma arvore. O colosso ainda aturdido não oppôa a menor resistencia e se deixou sentar como um marmanjo.

     A phisionomia do sertanejo, na qual, desde o encontro com Aleixo, um gesto voluvel e descuidado apagara a natural energia, tomou a expressão grave e resoluta.

     — Aleixo Vargas, eu sou seu amigo ; disse o mancebo com a palavra breve.

     O Moirão abaixou a cabeça :

     — Duvida ?

     — Do Arnaldo não, que livrou-me do dente das tapuias.

     O sertanejo não deu attenção á reserva mental do minhoto, que persistia em toma-lo pelo capeta na figura de rapaz.

     — No sertão os homens ou são irmãos ou inimigos. E quantas vezes não tirei eu das garras da onça uma rez sem dono ? Não me tem, pois a menor obrigação, Aleixo Vargas ; nem me deve reconhecimento. Mas sempre o conheci, desde que chegou á fasenda, como homem bom e verdadeiro, differente da maior parte de seus companheiros. Foi isso que me fez seu amigo.

     — Obrigado, rapaz ! disse o colosso enternecido.

     — E é como seu amigo que vou fallar-lhe. Hontem á tarde, quando o capitão-mór chegava á Oiticica, encontrou uma grande queimada no mato do caminho.

     Arnaldo fitou o olhar severo no semblante do colosso :

     — O fogo, foi você quem o deitou, Aleixo Vargas, por detraz da cabana do Job, junto ao rasto do velho que vai ser accusado por essa maldade.

     — Fui eu mesmo ! respondeu Moirão erguendo-se.

     — O capitão-mór e a família podiam estar agora reduzidos á cinzas.

     — Si não fosse o damnado do vento que empurrou o fogo para a serra e não me deixou cercalos, elles haviam de ficar bem torradinhos. Então o velho tarugo que tem três dedos de banha !... Que bom torresmo não daria !...

     O Moirão soltando essa pilheria esparramou a cara em um riso alvar.

     — Não lhe pergunto, Aleixo Vargas, a razão que, do homem bom que você era fez ontem um malvado. Em tempo dará suas contas á Deus. Mas aviso-lhe, eu Arnaldo, o sertanejo, que, si descobrir mais seu rasto á uma legoa em roda da Oiticica, vou por elle até onde o encontrar. E nessa hora póde encomendar sua alma.

     — Como se entende isto ? disse o Moirão fustigado pela ameaça.

     — Qualquer outro que tivesse praticado sua façanha já não estaria aquí, porém amarrado por minha mão na polé da fasenda e entregue á justiça do capitão-mór. Um amigo é diferente : não o trahirei jámais denunciando-o, e ainda menos abandonando-o ao poder de estranhos. Si elle ofender-me, decidiremos essa questão, entre nós, lealmente.

     Aleixo quiz fallar. Atalhou-o o sertanejo com o gesto vivo :

     — Ouça-me. Você é um homem de fôrça e um homem de vontade, Aleixo Vargas. Antes de lhe dar este aviso, quiz mostrar-lhe que tinha poder de cumprir minha palavra, porque de dois homens que se estimam e se acham em luta convencidos ambos que tem razão, o mais fraco deve ceder ao mais forte.

     — Visto isto tem-se você na conta de mais forte ? perguntou Aleixo.

     — Não sei o que chama fôrça, Aleixo ; para mim fôrça é poder. Mais volumoso do que você é um touro, que o vaqueiro derruba com dois dedos.

     — Que venha para cá esse tal vaqueiro d'uma figa ! exclamou Aleixo abespinhando-se.

     Arnaldo deixou passar a refega ; e continuou com a voz breve, imperativa, mas calma.

     — Se você fosse o mais forte, eu não empregaria a astucia, como faria contra um estranho ou um inimigo. Embora me custasse ; respeitaria sua vontade desde que não podia vence-lo de frente. O mais forte, porém, sou eu; e proibo-lhe que de agora em diante se aproxime da Oiticica na distância de uma legoa.

     O sertanejo erguera a fronte com um assomo de indomita altivez. Nesse momento illuminava-lhe a nobre phisionomia um reflexo dessa magestade que avassala o deserto, e que folgurava nos olhos do cavalheiro arabe e do guerreiro tupy.

     Moirão calou-se um tanto em quanto ruminava as idéias.

     — Lá vai, rapaz ; escute bem. Que você tem pautas com o diabo o ligou-me, é coisa que está se vendo ; nem lhe vale nada esconder o pé de cabra ahi nessa bota esquerda.

     Arnaldo sorriu-se da superstição do companheiro :

     — Como é que um enguiço de gente podia derrubar um homem desta marca, se não tivesse o diabo no couro  ? Isto com certeza. Mas hei de arranjar por esta redondeza um bom amuleto que tenha a virtude de fazer espirrar o demo do corpo de qualquer creatura, por mais que elle se lhe meta nas tripas. Depois do estouro, então veremos quem é o dunga.

     — Eu tambem tenho o meu ! disse Arnaldo á sorrir, mostrando o relicario que trazia ao pescoço.

     — Ah ! é ahi que está a mandinga. Pois eu hei de tirar-lhe o feitiço.

     — Que mais ? perguntou motejando o sertanejo.

     — Agora quanto á camaradagem, isso é caso diverso. Se você carece do braço de um homem ou mesmo da vida para coisa de seu serviço, nem precisava destas partes : não lhe dava senão o que já lhe pertence. Mas o que você pede, Arnaldo, não posso fazer.

     O Moirão carregou a manopla ao peito que arfou como o desabe d'uma montanha e arrancou estas palavras com um surdo estertor, segurando o lobulo da orelha direita.

     — Estou deshonrado. Jurei por esta orelha que, si não a vingasse antes de um mez, havia de corta-la para que não vejam nella minha vergonha. Ah ! você não sabe, Arnaldo.

     — Sei ! disse o sertanejo pousando a mão no ombro do companheiro com um gesto severo e triste.

     — Quem lhe contou ?

     — Ninguem. Eu vi.

     O Moirão escancarou os olhos espantado e benzeu-se outra vez. Não era elle dos mais supersticiosos, porém os modos estranhos do sertanejo naquella manhã despertavam em seu espíirito as abusões da epocha.