Entrando no seu camarim, depois da repreensão que dera a Arnaldo, D. Flor precipitadamente voltara-se para fechar a porta e impedir a entrada da escrava que vinha prestar-lhe os seus serviços e ajudá-la a mudar de traje.
Caminhando até o meio do aposento, a donzela parou; e recolheu-se atônita do que se passava em si. De repente o seio tímido estalou em um soluço; e dois rocais de lágrimas aljofraram-lhe as faces.
Por que chorava?
Foi a interrogação que dirigiu à sua conciência, confusa e perturbada com aquele pranto súbito. A severidade que usara com Arnaldo, ela a devia ter; não se arrependia da exprobração que fizera ao seu colaço, antes parecialhe mostrar maior rigor.
Naquele instante, esquecendo a amizade que desde a infância tinha ao filho de sua ama, a donzela odiava-o sinceramente; e não podia perdoar ao vaqueiro o atrevimento de dar-lhe uma ordem e o insulto de tocá-la, a ela D. Flor, a quem seu próprio pai o capitão-mór Campelo respeitava como uma santa.
Assomava-lhe ainda na mente a imagem do insolente, com a fisionomia revôlta, e os olhos chamejantes; ela não o vira erguer a mão audaz, tão rápido fôra o movimento; mas sentira-lhe o contacto nos cabelos, e o leve perpassar pelos alamares que fechavam o corpete de seu roupão de montar.
Ainda a vertigem que a tomara naquele momento anuviava-lhe a vista ao recordar-se do incidente; e insensivelmente brandia o chicotinho, arrependida de não ter castigado aquela vilania.
Mas se a revolta de sua altivez a impelira a êsse ato de energia, por outro lado os instintos nobres e delicados de sua alma tinham-lhe advertido que não devia descer até corrigir com sua própria mão a grosseria de um quase fâmulo da casa.
A donzela permaneceu algum tempo imóvel no meio do aposento, completamente absorta. A pouco e pouco a figura sinistra do vaqueiro que a havia desacatado, foi-se desvanecendo, como se as lágrimas lhe delissem as tintas, e da névoa que fez-se na memória da donzela, surgiu o vulto de um menino de sete anos, vestido com um gibão de couro, que lhe servia de opa.
Êste menino era Arnaldo; e o gibão pertencia ao pai, o vaqueiro Louredo, que o deixara de usar por já estar muito velho e surrado, a ponto de andar a rir-se pelos muitos rasgões que tinha nas costas.
O menino, sôfrego por ter um vestuário de vaqueiro, enfronhara-se naquele fardão; e ficara tão cheio de si, que não se trocaria por um rei, embora dos rasgões do couro lhe saíssem as tiras de uma camisa de chita, que a mãe lhe cosera oito dias antes, e que êle já havia reduzido a trapos.
D. Flor, tornada também em sua fantasia à idade feliz da inocência, olhava com espanto para aquele pirralho, que ela via a cada instante praticar as maiores estrepolias, e cometer temeridades que a todos enchiam de susto.
Arnáo, como o chamavam os pais nesse tempo, não estava um instante quieto: se não andava já empenhado em uma travessura, com certeza buscava o pretêsto para ela. Seus folguedos, porém, eram sempre coisas impróprias de seu tamanho, e que muitos com o dôbro de sua idade não se animariam a empreender.
Um macaco trepava aos últimos ramos de uma árvore, e de lá deixava-se cair, segurando-se pela cauda. Arnaldo assentava de pular como êle de ramo em ramo, e despencava-se do alto. A mãe o metia em panos de sal, e dava-lhe a beber um cozimento de angico; no dia seguinte já êle estava ruminando outra.
Ora metia-se a parar a bolandeira tangida com fôrça, e rodava pelos ares; ora quando a mãe o mandava apanhar gravetos, carregava às costas um grosso toro de sábia, que o atirava ao chão em risco de esmagá-lo; em outra ocasião era o bode em que êle montava, e lá se ia pelos precipícios e desfiladeiros a divertir-se dos sustos da Justa.
Ninguém podia com êle. A mãe com seus ralhos não conseguia senão afligir-se; e se passava o capeta ao cipó, então é que êle endemoniava-se. O capitão-mór não olhava para essas coisas; e o Louredo, conservando uma impossibilidade que nunca se desmentia, bem longe de proibir ao filho essas estrepolias, ao contrário o acoroçoava, deixando-o fazer quanto queria.
Trouxeram uma tarde um cavalo bravo para que o Louredo o amansasse, pis não havia melhor campeador naquela redondeza. O vaqueiro conhecendo que o bicho era manhoso, tratou de amaciá-lo antes de saltar-lhe em-cima.
— Eu quero montar! gritou Arnaldo.
— Estás doido, menino? dizia a Justa, apoderando-se dele por segurança.
— Tu não podes com êle, Arnaldo! disse o pai.
— Ora, se posso!
— Pis monta; aí está.
O menino pulou no cavalo, que desencabrestou-se com êle aos corcovos. Afinal, depois de uma luta que não sustentariam tão bizarramente destros cavaleiros, o animal conseguiu lançá-lo fora, e atirou-o de cambalhota pelos ares.
— Aí está o que você queria, sr. Louredo! gritou a Justa que não cessara de rezar.
— O menino tem sua sina, mulher, respondeu Louredo mui descansado. Se êle escapar das façanhas em que se mete, é porque Deus o protege e quer fazer dele um homem; se não escapar, é melhor que Nosso Senhor o leve para o céu, enquanto não sabe o que é êste mundo.
Outra vez foi um novilho bravo, a que se tinha de torar os chifres. Arnaldo teimou em segurá-lo. O pai desatou o laço do moirão e entregou a ponta ao filho, dizendo-lhe com a voz pachorrenta:
— Toma lá; mas se tu me largas o novilho e o deixas fugir, meto-te o rêlho, cabrinha, tão duro como um osso.
Arnaldo segurou a ponta do laço, enleou-a no pulso para não escorregar, e disse ao pai com o maior topete:
— Largue!
O novilho arrancou pelo campo afora, e o Arnaldo lá foi com êle aos trambolhões. Por fim o menino revirou de todo no chão; e o barbatão levou-o de rasto. Aos gritos de Justa, que vira a cena de longe, adiantou-se o Louredo para livrar o filho dos apertos.
— Vaqueiro, não se meta! Não foi êste o ajuste! griotu Arnaldo para o pai!
O endiabrado menino, que se atirara ao chão de propósito para aumentar a resistência com o pêso do corpo, conseguira afinal fazer fincapé nas raízes do capim e parar o novilho já cansado. Quando Arnaldo conheceu que o tinha seguro, gritou ao pai:
— Pode torar; que o bicho daquí não sai.
Arnaldo tinha muita vontade de dar um tiro com o bacamarte do pai. Atualmente não se conhece, e talvez já não se fabrique essa espécie de arma, tão estimada outrora no interior e tão proeminente nas lutas fratricidas que ensanguentaram por vezes o interior do Brasil.
O bacamarte, simbolizava até bem pouco tempo ainda a ultima ratio, o direito da fôrça; era como na Europa o canhão, de que tinha com pouca diferença a configuração, pela grossura do cano muito semelhante ao colo de uma peça de artilharia. Havia-os de bôca de sino, que despediam uma chuva de balas e metralhas.
Compreende-se a fôrça que era precisa para suportar o recuo de uma arma destas ao disparar, e o perigo a que se exporia Arnaldo fazendo fogo com o bacamarte do pai, que era dos mais formidáveis.
Um dia em que a Justa não estava em casa, insistindo o menino, o Louredo carregou o bacamarte à meia carga e entregou-o ao filho. Êste sem pestanejar, com uma temeridade de criança, apontou para o ar e puxou o gatilho.
Soou o tiro e o menino revirou de cambalhota, arrojado pelo coice da arma, que por pouco não lhe desarticulou a clavícula. A Justa que chegou deitando a alma pela bôca, tomou o filho nos braços, pôs-lhe umas talas om emplastros, e começou nessa mesma noite uma novena a Nossa Senhora.
No dia seguinte Arnaldo estava de pé; mas andou uma semana de braço na tipóia.
Indo o Louredo para a serra com a mulher e o filho, encontrou o rio cheio. A fôrça dágua era medonha e formava uma torrente impetuosa. O vaqueiro resolveu esperar que passasse a maior correnteza, para atravessar a nado.
Arnaldo, porém, teimou que havia de passar logo. A Justa pôs as mãos na cabeça. O vaqueiro voltou-se para o menino com o mesmo tom sossegado de costume:
— Eu não me atrevo. Se tens topete para tanto, cabrinha, vai com Deus, que eu não te esbarro.
A Justa vendo que o marido não se opunha a semelhante loucura, agarrou-se ao filho; mas êste escapou-lhe, e sacando fora a roupa de que fez uma trouxa, pediu ao pai que a atirasse da outra banda; e meteu-se intrepidamente pelo rio a dentro.
A um têrço do leito, onde começava o têso da corrente, o menino desapareceu. O rio o enrolara nas suas ondas revôltas, arrebatando-o como uma das fôlhas que giravam no torvelim de suas águas.
Justa, que ficara de joelhos à beira do rio e não cessara de rezar o têrço invocando Nossa Senhora da Penha e todos os Santos de sua devoção, correu soltando um grito de horror. Metida nágua até o seio, com os braços inteiriçados no vão intento de agarrar o filho, cuja cabeça ainda surgia de longe, por entre os borbotões da corrente, a mísera mãe enlouquecia de dôr, e ldo as maiores imprecações.
O Louredo a ouvia taciturno e sombrio. Quando o vulto do menino sumiu-se na volta do rio, acreditou que afinal Deus lhe havia levado o único filho que lhe concedera. A-pesar-de seu rude fatalismo, que o fazia considerar a morte do menino como o livramento de futura desgraça, pagou neste momento o tributo à natureza, e com os olhos rasos de lágrimas ajoelhou-se ao lado da mulher.
Estava aquele infeliz casal sucumbido pela perda do único filho, quando o foi surpreender uma voz bem conhecida, que vinha da outra banda do rio.
— Ande com isso, pai. Venha a minha trouxa!
— Arnaldo!... bradou Justa. É êle mesmo!... Minha Nossa Senhora da Penha, fostes vós que o ressuscitastes!
— Ainda estás vivo, rapaz! Como foi isto?
— Ora o rio está mesmo desembestado, e pegou uma queda de corpo comigo, que foi uma história... Qual de-cima, qual debaixo; e já queria passar-me a perna, quando encontrei um toro de mulungú, e agora vereis. Montado no meu cavalo de pau fiz a todas.
Arnaldo tomara pé muito para baixo e viera pela beira do rio até alí. O pai jogou-lhe a ponta do laço, que êle amarrou em um tronco, e serviu de espia ao banguê ou balsa de couro, em que o vaqueiro transportou-se para o outro lado com a Justa.
— Descanse, mulher, que êste menino não morre. Êle tem a sua sina, dizia Louredo, atravessando o rio.
Nâo era o vaqueiro homem frio e indolente; ao contrário, muitas vezes tinha seus arrebatamentos. Aquela pachorra e sossêgo, só a mostrava em relação ao filho, e parecia mais produzida por uma firme resolução do que por temperamento ou tibieza de afeto.
Muitas das proezas de Arnaldo, D. Flor as vira do colo de Justa onde conchegava-se de mêdo; e ainda lembrava-se dos sustos da boa sertaneja, e do quanto ficava ela atarantada, não sabendo como dividir-se entre a sua filha de criação e o fruto de seu seio.
A menina, que tinha cinco anos então, apossara-se despoticamente daquele regaço e dele tinha expelido o seu legítimo dono. Se Arnaldo com ciúmes vinha alguma vez encolher-se ao cós da mãe e insinuava a cabeça por baixo do braço para aninhar-se, a menina percebendo-o, corria a expulsá-lo dalí.
Ela não consentia, nem que o pobre do Arnaldo se enrolasse na fralda da saia materna. Não satisfeita com o colo em que se entonava como em um trono, desherdava o colaço de todos os carinhos.
Justa, que fazia todas as vontades a Flor, obrigava o filho a afastar-se, mas às escondidas o pagava da ternura de que então o privavam os ciúmes da menina. Arnaldo obedecia à mãe para não amofiná-la; mas na primeira ocasião, às vezes no momento mesmo de arredar-se, vingava-se da colaça ferrrando-lhe um beliscão de raiva.
Gritava a menina com a dôr. Justa ficava furiosa. Agarrava um cipó, e dando uma corrida no capeta que escapulia pelo resto do dia, cuidava logo de pôr um emplastrinho de polvilho com leite de peito, para desmanchar a marca do beliscão na pele assetinada de Flor.
Daí nascera uma zanga constante entre os dois colaços, com o que a ama muito afligia-se. Em apanhando a menina de jetio, Arnaldo não deixava de fazer-lhe alguma pirraça. Umas vezes era a resina do visgueiro, que êle trazia escondida para grudar os anelados cabelos castanhos da menina e fazer deles uma maçaroca. Outras vezes passava-lhe um laço de embira e amarrava-a à goiabeira; ou trazia do mato uma fôlha de ortiga para esfregar-lhe no braço, e um lagarto para pregar-lhe um susto.
Acudia Justa aos gritos da menina, e o Arnaldo ia ao cipó. Tantas eram as capetices que não havia murta nem ateira ao redor da casa, de que êle não conhecesse as vergônteas, tão bem como as frutas.
Entretanto, a-pesar dessa briga constante, por uma singularidade que ninguém explicava, se Flor em vez de falar a Arnaldo em tom de mando, ao contrário pedia-lhe com meiguice alguma coisa, o menino seria capaz de fazer-se em migalhas para satisfazer-lhe o desejo por mais caprichoso que fosse.
Provinha isso da índole original dessa criança, na qual um coração terno e exuberante aliava-se a uma altivez estranha em sua posição, e mais ainda em sua idade. Parecia um príncipe maltrapilho, êsse pirralho do sertão, que não tolerava uma sujeição nem mesmo à vontade do pai.
Pela doçura obtinham tudo de sua generosidade sem limites. Desde, porém, que se lhe fazia uma exigência, sua suscetibilidade revoltava-se contra a ordem, e êle resistia com a tenacidade de um carneiro amuado, quando não reagia com o ímpeto de um garrote bravo.
Flor com instinto de menina, o qual tem já muito do tato feminino, breve apercebeu-se da influência que seu meigo sorriso e sua branda súplica exerciam no ânimo do colaço. Também a altivez nela era nativa; e já naquele tempo sentia o prazer especial da dominação. Habituou-se, pois, a êsse doce império, que em breve transformou os dois teimosos nos melhores camaradas.
É certo que lá vinham ainda de vez em quando uns choques entre a menina caprichosa e o rapazinho arisco; mas dissipacam-se logo essas nuvens, e Flor reassumia o despotismo de sua garridice afetuosa.
Justa descobrira enfim o meio infalível de impedir as estrepolias do filho, contra as quais nada valiam seus rogos e lamentaços. Bastava que Flor chamasse Arnaldo com a mãozinha ou com a voz maviosa para que o menino esquecesse a mais gostosa travessura.
Estas recordações sucediam-se no espírito de D. Flor e a absorviam tanto, que ao dar côbro de si achou-se no poial da janela, onde não tinha lembrança de se haver sentado.
Vieram chamá-la para o jantar; mas ela, escudeira infatigável, pretestou cansaço, para de novo mergulhar-se nestas cismas, que a consolavam do desacato do sertanejo.