Noite. Por todo o largo firmamento
Abrem-se os olhos de ouro das estrelas...
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinelas.

Brutal, febril, entre canções e brados,
Entrara pela noite adiante a orgia;
Em borbotões, dos cântaros lavrados
Jorrara o vinho. O exército dormia.

Insone, entanto, vela alguém na tenda
Do general. Esse, entre os mais sozinho,
Vence a fadiga da batalha horrenda,
Vence os vapores cálidos do vinho.

Torvo e cerrado o cenho, o largo peito
Da couraça despido e arfando ansioso,
Lívida a face, taciturno o aspeito,
Marco Antônio medita silencioso.

Da lâmpada de prata a luz escassa
Resvala pelo chão. A quando e quando,
Treme, enfunada à viração que passa,
A cortina de púrpura oscilando.

O general medita. Como, soltas
Do álveo de um rio transvazado, as águas
Crescem, cavando o solo, - assim, revoltas,
Fundas a alma lhe vão sulcando as mágoas.

Que vale a Grécia, e a Macedônia, e o enorme
Território do Oriente, e este infinito
E invencível exército que dorme?
Que doces braços que lhe estende o Egito!...

Que vença Otávio! e seu rancor profundo
Leve da Hispânia à Síria a morte e a guerra!
Ela é o céu... Que valor tem todo o mundo,
Se os mundos todos seu olhar encerra?!

Ele é valente e ela o subjuga e o doma...
Só Cleópatra é grande, amada e bela!
Que importa o império e a salvação de Roma?
Roma não vale um só dos beijos dela!...


 


Assim medita. E alucinado, louco
De pesar, com a fadiga em vão lutando,
Marco António adormece a pouco e pouco,
Nas largas mãos a fronte reclinando.

A harpa suspira. O melodioso canto,
De uma volúpia lânguida e secreta,
Ora interpreta o dissabor e o pranto,
Ora as paixões violentas interpreta.

Amplo dossel de seda levantina,
Por colunas de jaspe sustentado,
Cobre os cetins e a caxemira fina
Do régio leito de ébano lavrado.

Move o leque de plumas uma escrava.
Vela a guarda lá fora. Recolhida,
Os pétreos olhos uma esfinge crava
Nas formas da rainha adormecida.

Mas Cleópatra acorda... E tudo, ao vê-la
Acordar, treme em roda, e pasma, e a admira:
Desmaia a luz, no céu descora a estrela,
A própria esfinge move-se e suspira...

Acorda. E o torso arqueando, ostenta o lindo
Colo opulento e sensual que oscila.
Murmura um nome e, as pálpebras abrindo,
Mostra o fulgor radiante da pupila.

Ergue-se Marco Antônio de repente...
Ouve-se um grito estrídulo, que soa
O silêncio cortando, e longamente
Pelo deserto acampamento ecoa.

O olhar em fogo, os carregados traços
Do rosto em contração, alto e direito
O vulto enorme, - no ar levanta os braços,
E nos braços aperta o próprio peito.

Olha em torno e desvaira. Ergue a cortina,
A vista alonga pela noite afora.
Nada vê. Longe, à porta purpurina
Do Oriente em chamas, vem raiando a aurora.

E a noite foge. Em todo o firmamento
Vão se fechando os olhos das estrelas:
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinelas.