(Fantasia Trágica)

A horda inteira embrenhou-se no espesso dos matagais... Se dava a aragem, a ramaria, abrindo-se, entremostrava, na meia escuridade do coração da mata os corpos nus dos guerreiros, sarapintados de rubras listas de urucu; mais adiante, se uma clareira rasgava o pano de verdura florestal, surgiam cabeceando os selvagens...

O sol cadente lançava-lhe frechas de luz aos feixes, como o velho combatente que não quer descansar no fundo da igaçaba antes de ter esvaziado o carcás. A multidão respondia, agitando alegremente os braços; saudavam em despedida o astro com as canções de guerra; e os hinos misturavam-se de um modo incrível aos derradeiros fogos do dia. O rumor crepitante dos maracás fazia crer que a tribo, em marcha, caminhava ardendo como serpente de fogo.

Depois, tudo se apagava e a vozeria e o chocalhar dos maracás arrefecia um pouco, somava-se com o uníssono vasto e rumoroso da natureza; por fim, na última colina, viam-se rutilar as penas vivamente coloridas dos cocares e das túnicas... E o sol a inundar balsedos e balsedas, sem mais ferir um guerreiro.

A horda andava já para além.

Ouviam-se ainda os sons do maracá, mas como sopros interrompidos que iam falar nas quebradas o adeus àquelas cabanas da aldeia que muitos não tornariam a ver.

Cendi ficou chorando...

No cimo de um penhasco, olhava. Todos tinham sumido e ela ficara no mesmo posto.

O vento levantava-lhe os longos cabelos e passava por eles como pela rama franjada da palmeira; o sol riscava-lhe o contorno esplêndido das formas com friso de ouro. O que esperas. Cendi? Louca, eles se foram. Para aquelas bandas vês somente a serra azul... azul. Eles se foram.

E a pobre Cendi desceu da pedra, chorando cada vez mais.

Os espíritos malignos gritavam-lhe aos ouvidos que ela perdera para sempre o seu dileto, o seu noivo.

Rompendo a brenha, ela partia os galhinhos secos e os galhos estalavam como a risada escarninha dos anhangás. Um presságio pesava-lhe no coração, e, com aquele sol que ia a deitar-se, fugir-lhe-ia a última energia para sofrer. A índia deixou-se cair abatida, derreada num velho madeiro que desabara com a última tempestade. Queria meditar; a cabeça pendeu-lhe, a vista foi-lhe pousar na epiderme macia e amorenada dos joelhos. Em torno desses joelhos, como em coroa, circulavam cintos primorosos de penas de guará brancas e róseas.

Dos grandes olhos negros da índia escorriam lágrimas que lhe molhavam os seios e gotejavam depois como o orvalho pelas extremidades dos limões. Cendi fitava aquelas penas, as penas do tapacurá.

— Tapacurá da minha virgindade, soluçou ela, morrerei contigo.

Eram ditas estas palavras quando ouviu-se um barulho estranho.

Não fora o trinar da passarinhada, pressentindo a noite, não fora o urro ameaçador da onça, não fora o guizo das cascavéis.

Cendi o conhecia.

— A voz do pajé!! murmurou estremecendo.

Em seguida acrescentou tristemente.

— Venha, venha esse mensageiro de desgraças e anuncie a minha viagem para a morada dos heróis!... Cendi há de ver-te querido Taigaíba! há de ver-te.

Vinha bem próxima a noite. Apenas uma poeira luminosa polvilhava o ocidente. O sol desaparecera. O pajé, mastigando rezas e evocações sinistras, abandonou o antro.

Cendi o viu apresentar-se horripilante.

— Cendi, disse ele, sem preâmbulos, em tom profético, os guerreiros juncaram o campo de batalha com os seus corpos, e os inimigos se hão de banquetear com eles. Taigaíba perecerá também; tu não podes pertencer-lhe.

— Cala-te! Cala-te, morcego! O sol entrou, e tu saís-te para desgraçar os guerreiros! Vai-te e deixa-me chorar!

— Não fales assim, Cendi!... não maltrates o eleito de Tupã, que é quem me anunciou estes males.

— Tupã sabe que eu sofro... que eu morro...

— Tupã diz que o tapacurá de Cendi deve cair a meus pés.

Assim falando, na sua toada de profeta, o sacerdote das trevas agitava horrivelmente as asquerosas peles que o cobriam, achegava-se para a bela Cendi com um vagar que afetava de majestoso e era repugnante.

Cendi teve medo. Levantou-se. Correu.

O pajé era velho, mas forte. Correu para ela. Cendi mergulhou-se nas brenhas, gritando. O pajé perseguiu.

Escurecia já e naquela hora as corujas, adejando pausadamente, cortavam o ar à cata das avezinhas retardatárias.

Cendi, és avezinha, foge do pajé.

Cendi correu muito, muito; saltou arisca como uma veada todos os espinheiros que lhe fechavam o caminho, todos os regos que as enxurradas rasgavam fundos no seio da mata. O pajé saltara os espinheiros, saltara os valados. Quando Cendi parou cansada, aí estava o pajé. Horrível!

Cendi estava perdida.

— Cendi, Cendi, rosnou o pajé, ouve a voz de Tupã! Paraste cansada? É Tupã que te prende. Tupã diz que me pertence o tapacurá de Cendi...

A índia, que se agarrara a uma árvore para não cair, ergueu o punho para o céu e cortou a frase ao pajé.

— Tupã mente!

— Vais hoje morrer. Teus lábios ofenderam a Tupã, como a folha de urtiga ofende a mão que a toca. Antes de pratear-se a noite com o luar que vai nascer, deve estar morta Cendi.

A selvagem respondeu:

— Cendi morre sem desabotoar as penas cândidas do seu tapacurá. Quem podia fazê-lo voou para as colinas azuis...

O pajé precipitou-se sobre a índia.

Cendi caiu de joelhos estorcendo-se nas mãos do padre de Tupã; e este, fazendo movimentos vagarosos, cadenciados, lutava tranqüilamente com a resistência de Cendi.

Nas tranças do arvoredo, denegridas pela noite, gritava um passarinho, debatendo-se por certo nas garras de uma coruja.

Era treva compacta.

— Cendi, Cendi, onde estás?...

Um índio rebentava a rede espessa de cipós que amarravam uns aos outros os troncos da mata virgem.

— Cendi, Cendi! chamava.

Toda a floresta fazia um amontoado tenebroso. Um grito de doido desespero respondeu ao índio; partiu de lá como se aquelas negruras tivessem voz e falassem.

Nasceu a lua.

Alguns raios começam a furar a folhagem como se a lua quisesse afastar com a mão os raminhos e espiar.

No lugar em que Cendi parara estavam agora o pajé e um guerreiro. Hirtos, cada um ao seu lado da clareira.

— Foi a vontade de Tupã, vociferava o primeiro. Cendi ofendeu a Tupã.

— Embusteiro cala-te! bradou o outro.

— Enganas-te, filho das selvas, eu digo a verdade!

— Não dizes! rugiu o guerreiro.

— Ofendeste também a majestade dos trovões... Prostra-te, Taigaíba!

O guerreiro apertava entre os dedos um pedaço de flecha e sacudia o cocar empenado, prestes a lançar-se sobre o sacerdote do seu culto.

O pajé sorria e a cara parecia-se-lhe com as escâncaras de um inferno medonho.

— Escuta, pajé, disse o índio a modo de sentença, eu suspeitava de ti; as tuas infames sugestões arrastaram os guerreiros ao campo do combate. Eu não acreditei. Ocultei-me. Fiquei. És sábio e não o percebeste; és adivinho e não me descobriste. Pois aqui estou, pajé... Treme, treme, porque o vento não soprará muito por estas balsas antes que estejas por terra!

O pajé ria-se, escancarando as feições diabólicas, remexendo-se as horrendas peles que o adornavam.

O guerreiro, altivo e iroso, media-o desde a pedra encravada no lábio até o grande artelho muito separado...

Avançava. Atirou-se, enfim, ao pajé. Fê-lo dobrar-se para trás, e, quase sem luta, enterrou-lhe no peito o ferro que empunhava.

O pajé repetiu:

— Tupã! Tupã!

E as árvores, ciciando, ficaram a murmurar:

— Tupã... Tupã...

Zombavam do profeta maldito. O guerreiro garganteava, como estertorando:

— Morre e vai-te, pajé!

E o cadáver do pajé foi estatelar-se no chão.

O índio feroz alçou então o braço armado, arrogante. Da ponta do dardo pingaram gotas de sangue sobre o corpo do pajé.

O guerreiro fitava os céus por entre o enredado das folhas. Os olhos fulgurando encaravam duas estrelas que luziam por cima da mata. Dir-se-ia que esperava...

— Aparece, Tupã, que eu quero atravessar-te!...

Este brado varou através dos bosques e foi achoar longínquo.

O arvoredo, ciciando, ficou a repetir: - Atravessar-te!...

As folhas não zombavam já. Tiritavam apavoradas.

O selvagem fitou os céus... Tupã não veio...

— Estás vingada, Cendi!

O passarinho, que piava nas garras da coruja, não se ouvia mais...

O luar passava rasteirinho pela relva e lambia o corpo de Cendi morta... Esse clarão suave enleava-lhe o lindo cadáver num sudário de azul. Os cintos de pureza jaziam desbotoados, perto do corpo.

Cendi os perdera... depois de morta. O índio murmurou entre dentes.

— Covarde!

E baixou os olhos de lá, das estrelas, para Cendi.

— Adeus, sonho do meu amor, adeus, rolinha! Os guerreiros guardar-te-ão o corpo no invólucro de barro de igaraçaba... Mas eu irei contigo!...

Um rumor levantou-se ao longe. Taigaíba escutou.

Este barulho era seu conhecido. Ouvira-o já cem vezes, cem vezes isto fora para ele um hino de alegria. Então, porém, não passava de uma canção fúnebre que o atraía. Ele obedeceu:

— É a batalha que se aproxima!...

E embrenhou-se na mataria, gritando possesso:

— Taigaíba ao combate! À morte! à morte!...

1882