Era linda a situação da fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão.
As águas majestosas do Paraíba, regavam aquelas terras fertilíssimas, cobertas de abundantes lavouras e extensas matas virgens.
A casa de habitação chamada pelos pretos Casa Grande, vasto e custoso edifício, estava assentada no cimo de formosa colina, donde se descortinava um soberbo horizonte.
Assomava ao longe, emergindo do azul do céu, o dorso alcantilado da Serra do Mar que ainda o cavalo a vapor não escarvara com a férrea úngula.
Das abas da montanha desciam como sanefas e bambolins de verde brocado, as florestas que ensombravam o leito do rio.
Às vezes tardo e indolente, outras rápido e estrepitoso com a crescente das águas que o entumeciam, assemelhava-se o Paraíba na calma, como na agitação, a uma píton antediluviana coleando através da antiga selva brasileira.
Nas fraldas da colina á esquerda estavam as fábricas e casas de lavoura, a habitação do administrador da fazenda e as senzalas dos escravos. Todos estes edifícios formavam um vasto paralelogramo, com um pátio no centro; para este pátio, fechado por um grande portão de ferro, abríamos cubículos das senzalas.
Mais longe, derramados pelo vale, viam-se o monjolo, a bolandeira, o moinho, a serraria, tocados pela água de um ribeiro que serpejava rumorejando entre as margens pedregosas.
À direita da casa, onde se erguia a alva capelinha da fazenda, sob a invocação de Nossa Senhora, a colina declinando com suave depressão ia morrer às margens do Paraíba. Desse lado encontrava-se o jardim, o pomar, a horta, e vários sítios de recreio arranjados com muito gosto.
Se a natureza brasileira, toucada pela arte europeia, perdia ali a flor nativa e a graça indígena; em compensação tornava-se mais faceira.
Tudo isso desapareceu; a Fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão já não existe. Os edifícios arruinaram-se; as plantações em grande parte ao abandono morreram sufocadas pelo mato; e as terras, afinal retalhadas, foram reunidas a outras propriedades.
A gente do lugar, tantos os fazendeiros e ricaços, como os simples roceiros e agregados se preocuparam muito durante algum tempo com o desamparo em que dono deixava uma fazenda tão fértil e aprazível.
Alguns atribuíam o fato singular às seduções da corte; e protestavam interiormente não casar suas filhas com homem habituado às delícias da Babilônia fluminense.
Outros que melhor conheciam o dono da fazenda abandonada, desconfiavam de alguma questão de família, e falavam de certas complicações a respeito da herança do antigo proprietário.
A gente pobre inclinava-se mais à explicação de umas três ou quatro beatas do lugar. Segundo a lição das veneráveis matronas, a causa do desmantelo e ruína da rica propriedade fora o feitiço.
A Fazenda do Boqueirão era mal-assombrada; e em prova do que afirmavam, além de umas historias de almas de outro mundo, cem vezes resmoneadas entre os costumados biocos, mostravam de longe a cabana do pai Benedito.
Esse argumento era peremptório. Assim, nenhum dos moradores passava naquele sitio, que não estugasse o passo ou esporeasse a cavalgadura, lançando um olhar de esguelha à velha cabana de sapé, e sentindo os cabelos se erriçarem com um súbito calafrio.
Os espíritos fortes não faziam caso dessas abusões; mas arranjavam-se de modo que nunca tinham necessidade de passar naqueles sítios depois do lusco-fusco; salvo quando levavam boa e alegre companhia.
É natural que já não exista a cabana do pai Benedito, último vestígio da importante fazenda. Ha seis anos ainda eu a vi, encostada em um alcantil da rocha que avança como um promontório pela margem do Paraíba.
Saía dela um negro velho. De longe, esse vulto dobrado ao meio, parecia-me um grande bugio negro, cujos longos braços eram de perfil representados pelo nodoso bordão em que se arrimavam. As cãs lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão.
Era este, segundo as beatas, o bruxo preto, que fizera pacto com o Tinhoso; e todas as noites convidava as almas da vizinhança para dançarem embaixo do ipê um samba infernal que durava até o primeiro clarão da madrugada.
Sabiam as matronas até o nome das almas do outro mundo que frequentavam a cabana do pai Benedito, e tinham a honra de ser convidadas para o batuque endemoninhado à sombra do ipê.
Havia quem as tivesse visto e reconhecido, quando se dirigiam, com trajo de fantasma em grande gala, para a morada do bruxo, subdelegado de satanás. Bem se vê que a autoridade policial da freguesia não estava nas boas graças das matronas.
Ignorante das relações íntimas que entretinha o habitante da cabana com o príncipe das trevas, tomei-o por um preto velho, curvado ao peso dos anos e consumido pelo trabalho da lavoura; um desses veteranos da enxada, que adquiriram pela existência laboriosa o direito à uma velhice repousada, e costumam inspirar até a seus próprios senhores um sentimento de pia deferência.
O pai Benedito descera a rocha pelo trilho, que seus passos durante trinta anos haviam cavado, e chegou ao tronco decepado de um ipê gigante que outrora se erguera frondoso na margem do Paraíba. Pareceu-me que abraçava e beijava o esqueleto da árvore; depois sentou-se com as costas apoiadas no tronco; aí ficou aquecendo-se ao sol do meio-dia como um velho jacaré.
Aproximei-me para pedir-lhe água mais fresca do que a do rio. Mostrou-me um fio cristalino que manava da rocha viva e deu-me excelentes limas e laranjas.
Curioso de ver de perto o tronco do ipê, que o preto velho tratara com tanta veneração, descobri junto às raízes pequenas cruzes toscas, enegrecidas pelo tempo ou pelo fogo. Do lado do nascente, numa funda caverna do tronco, havia uma imagem de Nossa Senhora em barro, um registro de São Benedito, figas de pau, feitiços de várias espécies, ramos secos de arruda e mentruz, ossos humanos, cascavéis e dentes de cobras.
— Que quer dizer isto, pai? perguntei-lhe eu apontando para as cruzes.
O velho soabriu os olhos, toscanejando, e murmurou com a voz cava:
— Boqueirão!...
Como bem se presume, não entendi.
— Você vive só, neste lugar?
Levantando as mãos, invocou o céu em testemunho de seu isolamento; e outra vez resmoneou como um eco roufenho:
— Boqueirão!...
Dessa vez julguei compreender. O velho estava caduco.
Acomodei-me à sombra sobre a relva para esperar que o sol descambasse. O preto de seu lado, como um instrumento perro a que houvessem dado corda, começou a cantilena soturna e monótona, que é o eterno solilóquio do africano. Essas almas rudes não se compreendem a se mesmas sem falar para ouvirem o que pensam.
A brisa trazia-me por lufadas trechos da cantilena, a que eu procurei, mas em vão, ligar um sentido.
O sino de uma fazenda soou ao longe repicando meio-dia. O preto velho ergueu-se a custo e com o passo trôpego e lento seguiu por um espinhaço do próximo rochedo que vinha serpejando como uma grossa raiz, morrer à alguns passos do tronco do ipê. Acompanhei com os olhos o seu andar vacilante sobre o dorso áspero da pedra, até que sumiu-se numa garganta do fraguedo.
Já tinha esquecido o preto e pensava nos cuidados que deixara no Rio de Janeiro, quando feriu-me o ouvido uma voz cava e profunda que proferia estas palavras:
— Perdoa, perdoa!...
O mais estranho era que as palavras saíam das entranhas da terra, e rompiam mesmo do chão que eu pisava. Se não fosse meio-dia, a hora dos esplendores e das maravilhas da criação, talvez meu espirito se deixasse levar, das superstições que infestavam o lugar. Mas feitiçaria com o sol a pino, e a natureza a sorrir, pareceu-me um contrassenso.
Algumas velhas raízes do ipê, ressurgindo à flor da terra, como sucede com as árvores anosas, tinham sido carcomidas pelo caruncho, e formavam brocas profundas que se entranhavam pelo solo. Quando eu fazia essa observação, conjeturando que as palavras talvez houvessem partido desse tubo natural, ouvi outra vez a voz subterrânea que reboava:
— Perdoa, perdoa, senhor!
Além de confirmar a primeira observação, conheci que a voz era a do preto, e transmitia-se por um fenômeno natural proveniente da construção geológica do sitio. Seguindo a direção que tomara o pai Benedito, fui achá-lo metido em uma espécie de furna que havia no rochedo, inclinado ou quase caído de bruços sobre uma pedra úmida, coberta de limo e parasitas.
Ainda os lábios grossos e trêmulos do ancião balbuciavam as mesmas palavras que eu ouvira; e as repetiram por muito tempo até que ali ficou extático e imóvel.
Que misterioso crime se cometera naquele sitio, para o qual tantos anos passados ainda o negro velho implorava o perdão à memória de seu falecido senhor?
Mal sabia eu então que assistia ao epílogo melancólico de um drama, que mais tarde teria de desvendar.