Mário, deixando bruscamente a cabana, descera à várzea, e caminhando à toa chegara ao tronco do ipê.

Parado aí, começou a olhar para as cruzes pretas, que já então existiam. Não se sabia ao certo quem aí pusera aquelas cruzes, embora as suspeitas recaíssem sobre pai Benedito.

Dava-se porém a circunstância de serem alguns desses toscos monumentos fúnebres consagrados a cinzas desconhecidas, de data muito remota, quando talvez o preto velho, habitante da cabana, ainda não tinha deixado os areais de sua pátria africana.

Havia a este respeito uma tradição. Dizia-se que em sucedendo uma desgraça no boqueirão, logo aparecia mais uma cruz à sombra do ipê, indicando a sepultura do infeliz tragado pela voragem.

Ora, o mistério tornava-se ainda mais profundo com o fato muitas vezes verificado do desaparecimento da vítima arrebatada pelo remoinho. Além de outros casos citava-se especialmente o do pai de Mário, em que todos os esforços empregados durante muitos dias foram inúteis. Tudo sumira-se; o homem e o cavalo; o ventre do abismo devorou tudo; só escapou o chapéu, que o vento ou o acaso atirara sobre as largas folhas das plantas aquáticas.

Como pois o misterioso coveiro achava o cadáver das vítimas para dar-lhes sepultura ao pé do tronco?

Houve quem duvidasse que as cruzes indicassem o jazigo real das pessoas afogadas na lagoa. Na opinião desses, o tronco do ipê era apenas como um necrológio rústico e simbólico das sucessivas catástrofes sucedidas no boqueirão. Semelhante dúvida estimulou alguns mais animosos a verificarem o fato; mas a tentativa abortou.

Às primeiras escavações, uma voz terrível gelou-os de pavor. Entretanto, essa voz não pronunciara mais do que uma palavra:

— Espera!

Nessa palavra porém havia uma ameaça espantosa, fulminada pelo céu, ou vomitada pelo inferno. Após a palavra, a mente horrorizada viu surgir uma legião de fantasmas. Fugiram todos assombrados ante a visão medonha.

Contentaram-se pois com os indícios, tirados da circunstância de ser o ipê visitado pelos urubus sempre que uma nova cruz aparecia fincada na sombra da árvore.

Mário conhecia esta tradição, que avivou-se em seu espírito, e o preocupou durante o tempo que esteve a olhar para os fúnebres emblemas. Aí nessa posição, pensativo, com a fronte vergada, foi Benedito encontrar o estranho menino, cuja inteligência precoce parecia desenvolver-se ao influxo de um sofrimento íntimo:

— Quem sabe se eu também não hei de ter a minha cruz aqui? disse ele com um sorriso indefinível.

— Nhonhô...

— Ali, perto daquela!...

O menino apontou para uma cruz, que se distinguia das outras por uma circunstância quase imperceptível: era uma série de pequenos talhos de faca dados na base, em uma das quinas. Contavam-se onze, sendo o superior muito recente, talvez daquela manhã.

Mário, acreditando na tradição, suspeitava que esse era o jazigo de seu pai. Benedito por ele interrogado, esquivava-se, afirmando que nada se podia saber a tal respeito; porém o menino, embora se calasse para não afligir o velho, perseverava em suas suspeitas com a firmeza e tenacidade próprias de seu caráter.

Ele tinha por diversas vezes surpreendido o olhar triste que o escravo fitava naquela cruz; e notando que fronteiro a ela, o chão estava mais sólido e batido, atribuía isso aos joelhos de Benedito, rezando a miúdo pela alma do antigo senhor moço.

Vendo o gesto do menino que apontava naquela direção, logo depois de palavras tão sinistras, o velho africano sentiu a alma dilacerar-se.

— Não fala assim, meu nhonhô! Você não tem pena de seu negro velho?

O menino parecia concentrado:

— Foi hoje, não foi, Benedito?

— Foi, meu nhonhô; mas não se lembre disto agora, venha brincar com as camaradinhas.

— Não; deixa-me.

O menino permaneceu imóvel diante da cruz; e o preto velho, encostado ao tronco do ipê, cobria-o com um olhar de compassiva ternura, repassado contudo de respeito. Naquele momento dessas duas almas, a viril era a da criança, a infantil era a do velho.

— Às vezes tenho vontade de ir ter com meu pai, para que ele me explique... o que eu não posso entender. Uma cousa, que eu penso, mas talvez não seja!... É isto que me faz mau para os outros!

— Aquela mãe! murmurou o preto. Podia estar com sua boca bem fechada. Ninguém perguntou a ela se sua nhanhã era rica e meu nhonhô pobre! Deixe estar que eu ainda hei de vê-lo muito, muito rico!

— Que importa ser pobre! Os pobres são às vezes mais felizes com seu trabalho do que os ricos com seu dinheiro.

— Eu sei que nhonhô não se importa; mas também, quando a gente pensa que esta Fazenda do Boqueirão e toda a riqueza de meu defunto senhor, que devia pertencer a nhonhô Mário, de repente passou para os outros, quando a gente menos cuidava!... E tudo porque meu defunto senhor em velho deu para jogar, jogar...

— E foi por isso, Benedito? Foi porque meu avô jogou?

Fazendo essa pergunta, o menino fitou no rosto de Benedito um olhar ardente, que fascinou a pupila do negro, obrigando-o a abaixar as pálpebras.

— É o que todo o mundo diz, nhonhô!

— Bem sei. Mas pensas tu que também isso me aflige de não possuir a riqueza que foi de meu avô e devia ser de meu pai? Este mundo é assim mesmo, Benedito; uns ganham, outros perdem. Quem sabe se eu ainda não hei de ser rico, apesar de nascer pobre.

— Há de, nhonhô, há de; eu tenho uma cousa que me diz aqui dentro do coração!

— O que me desespera é viver à custa dos outros. Ninguém sabe o que a gente sofre; então mamãe, coitada! não se queixa, mas chora às escondidas, que eu bem sei.

— Ah! minha sinhá moça! exclamou o negro velho deixando pender a cabeça ao peito, e descaindo os braços ao longo do corpo, enquanto as lágrimas saltavam-lhe em bagas.

— Mas isto não é nada, Benedito. Quando eu penso que essa riqueza era mesmo de meu pai, e se ele não morresse, minha mãe não havia de viver de esmolas, aqui onde devia ser senhora...

O negro sentiu uma vibração íntima, e seu grande talhe estremeceu como a lâmina de uma espada, segura pela ponta. Recobrando-se porém dessa emoção, que escapou ao menino possuído de seus próprios sentimentos, acudiu com a voz calma:

— Nhonhô se engana. Eu estava sempre na casa grande e vi como foi tudo.

— Está bom! disse Mário afastando-se contrariado.

— Onde vai?

— Brincar sozinho!

Uma suspeita laborava no espírito desse menino, que alterava o seu gênio, e enrijando a têmpera de seu caráter, ao mesmo tempo repassava de fel sua alma. Ele acabava de manifestar seu íntimo ao preto velho, única pessoa com quem se abria; porque para a própria mãe se mostrava reservado, receando afligi-la e agravar sua moléstia.

Dissuadido pelo negro de uma maneira tão positiva, parece que devia aplacar-se aquela turbação de seu espírito. A pobreza de sua mãe e dele era o resultado de uma causa conhecida, inteiramente alheia à morte de seu pai, o falecido Figueira. Podiam, portanto, sem repugnância aceitar a generosidade de seu protetor.

Mas havia dentro dele uma força irresistível, que repelia a denegação do preto e lhe embutia no coração cada vez mais profunda a suspeita, que ele quisera arrancar. Quem não sabe o vigor desses preconceitos, sobretudo nos caracteres reconcentrados? Nesses espíritos, uma dúvida é a gota acre que uma vez caindo sobre a lâmina de aço polido, primeiro embota-lhe o brilho, depois forma a leve mancha de ferrugem, que lastrando corrói todo o metal.

Mário afastou-se rapidamente. O preto acompanhou-o de longe com os olhos até desaparecer atrás de uma escarpa do rochedo, na margem do rio. Então seguiu para a cabana onde o vimos entrar pouco antes e interromper tia Chica. Cheio como ia das recordações tristes daquele dia e daquele lugar, deixou escapar algumas palavras de que se arrependeu.

Arrancado às suas cismas pelo gemido angustiado que repercutira na cabana, o velho africano quando se arremessou para o terreiro, ia, pode-se dizer, estringido por uma só ideia horrível, que esmagava-lhe o cérebro e lhe estrangulava o seio.

As palavras há pouco proferidas por Mário com os olhos fitos na cruz que indicava o jazigo de seu pai, retiniam no cérebro do africano como o estalo da rocha se batesse no seu rijo crânio.

Aquela lembrança do menino, falando de ter também ali sua cruz, e sobretudo o tom profundo com que exprimira o desejo de reunir-se a seu pai; tudo isto e a tristeza de Mário quando o deixara, passou pelo espírito revolto do africano de relance, mas como uma visão horrível, no fundo da qual ele via ou antes revia.

O quê?

O medonho abismo que outrora aos raios de uma lua de inverno, abrira a imensa cratera para devorar em um ápice, aquilo que mais amava neste mundo.

Quando, pois, ao primeiro olhar lançado sobre o remoinho ele conheceu que não era Mário a vítima, saiu-lhe sem querer do seio aquele amplo e longo respiro.

Mas logo caiu em si. Seus olhos se ergueram do abismo ao céu, e aí se engolfaram cheios de uma expressão indefinível. Que passava nessa alma para assim transfigurar o rosto grosseiro do escravo? Era dor, era espanto, era unção? ou tudo isso reunido?

Quem o pode saber?

A grande estatura do negro de pé sobre o rochedo, iluminada em cheio pelo sol, e moldurada pela natureza agreste que o rodeava, era digna de um cinzel.

— Castigo do céu!... balbuciavam surdamente seus lábios.

Tudo isto foi rápido como o pensamento; não durou o espaço de um minuto. Mal a palavra expirava nos lábios de Benedito, que uma voz súbita e vibrante estrugiu nos ares:

— Meu pai!...

Na posição em que se achava, Benedito dava as costas à crista do alto rochedo, que lhe ficava sobranceira de muitos pés. Voltando-se imediatamente ao som da voz, não viu senão surgir um vulto, volver sobre si mesmo, e despenhar-se do alto.

Era Mário. O menino acabava de precipitar-se no vórtice mesmo do remoinho; e desaparecera submergido pela onda, que seu corpo velozmente impelido pelo arremesso, retalhara apesar da correnteza.

A alta estatura do africano rodou como uma árvore enovelada pelo tufão, e desabou em terra. Seu corpo foi rolando pesadamente pela encosta, até que as moitas de espinheiros bravos o retiveram suspenso sobre a voragem.

Além repercutiu surdamente o estrépito de um cavalo a galope.