As meninas merendaram na cabana.
Embora presa na cama, Chica não se esqueceu de cumprir o dever da hospitalidade.
Tirou duma prateleira suspensa ao lado da cama umas latas e cestas, cheias de biscoitos, rosquinhas, beijus e frutas; o pajem foi buscar a água fria da rocha e a Eufrosina pôs a mesa sobre um banco largo.
Tudo nessa habitação revelava o mais apurado asseio; a roupa, apesar do grosseiro tecido, cegava de alvura; a louça, até nos lugares desbeiçados, era tão limpa que parecia recentemente quebrada.
— Merenda, minha nhanhã, um bocadinho. Estas rosquinhas de goma foram feitas mesmo para lhe mandar. Mas eu estou aqui amarrada nesta cama pelo reumatismo e pai Benedito tem sua obrigação!... O que a gente há de fazer?
Durante a merenda, o silêncio das vozes tornou mais sensível um surdo rumor, que desde princípio se ouvia na cabana. Parecia o eco subterrâneo do frêmito das ondas batendo em alguma praia muito remota.
— Que barulho é este? perguntou Adélia aplicando o ouvido. Será algum carro que vem da corte?
— Ah! quem dera! exclamou a Felícia.
Alice abaixou a voz e disse com um tom receoso e triste:
— É o boqueirão.
— O boqueirão?...
— Sim; onde morreu o pai de Mário.
— Cala a boca, nhanhã, não fala nisso. Depois, olha lá! ponderou a Eufrosina.
— Ah! já sei, exclamou Adélia; é um buraco muito fundo.
— Não, respondeu Alice. É um palácio encantado que há no fundo da lagoa... onde mora a mãe-d'água.
— Como é que você sabe?
— Vovó é que me contou uma vez.
Alice tornou para junto da preta, a qual se conservara inteiramente estranha à conversa, preocupada ainda com as palavras que haviam agastado a Mário.
— Conta a história da mãe-d’água, vovó!
— Ora, nhanhã, eu nem me lembro mais.
— Para Adélia ouvir! Sim, vovó, sim!
— Já esqueceu! Faz tanto tempo que eu ouvi a minha senhora velha D. Generosa, aquela santa que Deus tem na sua glória entre seus anjos.
— Era vovó de mamãe! disse Alice para Adélia.
— Faz tanto tempo que eu ouvia ela contar a sinhá, quando era mais pequena que nhanhã. Sinhá não queria dormir, e então sinhá velha sentava-se junto da cama, com a cabecinha tão branca como capucho de algodão, e começava... Deixe ver se me alembro, nhanhã. Ah! foi um dia...
Os restos da merenda foram completamente abandonados à gulodice do Martinho, o qual na sua qualidade de pajem de boa sociedade, sabia que nada apura e afina as ouças como um estômago repleto. Os outros, movidos pela curiosidade cercaram o catre de Chica:
— “Foi um dia uma princesa, filha de uma fada muito poderosa, e do rei da Lua, que era o marido da fada.
“Sua mãe tinha feito a ela rainha das águas, para governar o mar e todos os rios, todos.”
— O Paraíba também, vovó?
— Já se sabe; todos os rios do mundo.
— E era bonita a princesa?
— Não se fala. Era uma Virgem Maria. Os cabelos verdes, tão verdes, chegavam até os pés e ainda arrastavam; nhanhã não tem visto aqueles fios muito compridos, que às vezes andam boiando em cima d'água? A gente chama limo; são as tranças dela.
— Tão bonito! Cabelos verdes, não é? Eu queria ter! disse Alice.
— Mas, tia Chica, quando ela nada, não se vê?
— A princesa?... Às vezes, quando a água está dormindo, ela se deita assim de bruços para olhar o céu. Tem saudade das irmãs.
— Que são as estrelas? acrescentou Alice.
— É nhanhã!
— Como são os olhos dela? perguntou Adélia.
— Aposto que são verdes como os cabelos?
— Verão que são bem pretos!
— Os olhos não têm cor; é assim como uma claridade da lua que está cegando a gente.
— Está bom; ninguém atrapalhe mais! recomendou Alice.
— “Pois a mãe-d’água, como era assim tão bonita, foi adorada por muitos príncipes, que todos queriam casar com ela; mas seu coração já pertencia a um rei, lindo como o sol. Dizem mesmo que era filho dele.”
Aqui, sinhá velha contava como houve muitos combates, e como o rei, filho do sol, saiu sempre vencedor e alcançou a mão da princesa; e depois as festas que se fizeram, que foi uma cousa de abismar. “Mas essas historias de branco, eu não sei não, minha gente; façam de conta que foi assim uma cavalhada, como houve na vila pelo São João passado.”
— Ah! já sei, a mascarada! observou Martinho.
— “Houve muita alegria pelo casamento, luminárias, foguetes. Nunca se tinha visto festa assim; e durou nove dias e nove noites, que ninguém descansou. Ao cabo desse tempo partiu o rei para seu palácio, levando consigo a princesa. E esta dizia ao marido que três meses do ano havia de passar com sua mãe, a fada, e o resto do tempo com ele, seu marido. O rei, que lhe queria muito, ficou triste; mas era tão bom, que consentiu; porque ele pensava que, se ela não fosse boa filha, não seria boa mulher, nem boa mãe. E esse tempo que ela estava ausente passava com a mãe embaixo d'água, no seu palácio de diamantes.
“Assim viveram muitos anos, tão felizes, que era um contentamento para toda gente; e a rainha deu um filho ao rei, o menino mais bonito que já se viu. O pai o adorava; a mãe morria por ele; e todo o mundo quando olhava para o menino, ficava mesmo cativo.”
A preta fez uma pausa.
— Não me alembro mais!
— Ora, vovó! disse Alice queixosa.
— Ah! sim! “Chegando o tempo em que a princesa ia visitar sua mãe, quis levar o príncipe; mas o rei lhe pediu tanto e rogou, que ao menos deixasse metade de seu coração e não lhe levasse todo!... Ela teve pena e deixou o filhinho, sabe Deus com que dor, e depois de recomendar muito e muito ao rei que tivesse cuidado nele.
“A fada, mãe da princesa, estava encantada. Quer dizer, nhanhã, que o rei das fadas tinha mudado a ela em uma flor; essa flor grande, muito alva, que nasce em cima d'água.”
— Coitada! Por quê?
— “Não se sabe. Então a princesa, não achando sua mãe dela, e pensando que lhe tinha sucedido uma desgraça, pôs-se a procurá-la por toda a parte, perguntando: “Peixinhos do rio, conchinhas do mar, vistes minha mãe, por quem eu choro mais pranto que as águas em que nadais?” Ninguém respondia; até que afinal o rei das fadas teve pena dela, e vendo-a tão formosa, perdoou à mãe. Com que alegria elas se abraçaram; e logo se puseram ambas a caminho, navegando em uma concha de pérola e ouro, ansiosas de ver, a rainha, seu caro esposo e filho, e a fada, seu lindo neto.
“Tinha-se passado muito tempo, para a gente da terra, que para as fadas não há tempo. O rei quando viu que a rainha não voltava, ficou desconsolado e triste de sua vida; mas havia na corte gente malfazeja que começou a espalhar certas cousas: que a rainha se tinha namorado de um príncipe do mar, muito bem parecido. Como as cousas más sempre se acreditam, o rei desesperado quis vingar-se, e casou-se com outra princesa, que estava muito longe da primeira. A madrasta, toda cheia de si, logo mandou o príncipe, filho da princesa das águas, para a cozinha, como se fosse um criado.
“Um dia que o príncipe vinha, todo sujo de carvão, carregando lenha do mato, encontrou com a princesa do mar que chegava: ele não sabia quem era, ainda que ficou abismado com sua beleza; mas ela o reconheceu e abraçou chorando.
“Então soube o que se tinha passado; e sem querer mais ver o ingrato que a tinha esquecido, sumiu-se com o filho de seu coração no fundo do mar. Por sua ordem as águas começaram a subir, a subir, e afogaram o palácio, o rei, a nova rainha, e todos que tinham dito mal dela.
“De tempos em tempos ela vem à terra para afogar a gente, e todo o menino que entra no rio, ela agarra para servir de criado ao filho. Também de noite, quando alguma criança chora e aflige sua mãe, ela a carrega para o fundo d'água.” Aqui está, nhanhã; é o que me alembra.
— Muito bonita história!
— Mas, vovó, e o boqueirão?
— Isto não é da história. Era sinhá velha, que dizia... Como aqui no boqueirão sempre estava sucedendo desgraças, ela dizia que a mãe-d'água morava na lagoa; e que assim no lugar onde tem mais sombra, às vezes se vê ela olhando e rindo com tanta graça, Senhor Deus, que a gente tem vontade mesmo de se atirar no fundo para abraçá-la.
— Mas era para meter medo à mamãe que ela dizia? perguntou Alice.
— Era, nhanhã!
— Então esse boqueirão é muito perigoso? observou a Felícia.
— Tanta gente que tem morrido aí! disse a Eufrosina.
— Olha!... Basta meter a ponta do pé dentro, e ele faz glu!... assim!
O Martinho representou ao vivo o boqueirão; fazendo a goela o papel de sorvedouro, e simbolizando uma banana a vítima tragada pelo abismo.
— Passa fora! disse a Felícia.
— E não se pode ver de longe? perguntou Adélia.
— Qual! Meu senhor não quer que ninguém vá lá. Como sucedeu aquela desgraça ao amigo dele tão do peito, o Sr. Figueira, pai de nhonhô Mário... Coitado, tão bom homem!... Por isso, meu senhor logo que tomou conta da fazenda, mandou tapar tudo que nem se pode ver mais a lagoa.
— Então ninguém, ninguém, vai lá? perguntou Felícia.
— Só pai Benedito, que vai rezar por seu defunto senhor moço dele!
Alice, que ficara um instante pensativa, ergueu-se de chofre:
— Vovó, eu vou ver a minha galinha. Já tem muitos pintos?
— Qual, nhanhã, a trovoada matou tudo. Uma ninhada tão bonita que tirou na quaresma!
Alice penetrou no interior da cabana.
— E como morreu o pai de Mário? perguntou Adélia.
— Quem sabe, sinhazinha? Foi uma noite... Ele veio ver o pai, que já estava muito doente. Passando por aqui disse a seu pajem dele que esperasse, enquanto vinha falar uma cousa com pai Benedito. Tudo isto era aberto. Parece que errou o caminho e foi dar dentro da lagoa.
— Jesus!...
— Quando o pajem acudiu, já não se via senão o cavalo que estava labutando. Mas do Sr. Figueira nunca mais se soube; no outro dia procurou-se tudo; só se encontrou o chapéu nas folhas de aguapé!
Pai Benedito assomou à porta da cabana.
— Mãe, cala sua boca. Você não se emenda ainda não, hem! Olha! Coruja está piando no mato; assim mesmo com dia claro. Não chama mais desgraça, não!
Com efeito uma coruja assustada soltava o lúgubre estrídulo que não deixou de impressionar as pessoas reunidas na cabana.
— Que tem falar nisto, pai Benedito? acudiu a Felícia.
— Não tem nada, rapariga! murmurou o preto velho, voltando o rosto para esconder uma lágrima que esmagou com as costas da mão.
— Eu não disse que era senhor moço dele?... murmurou tia Chica a meia voz.
— Ah!...
— Fazem onze anos, e é aquilo mesmo! disse tia Chica apontando para o marido.
— É porque, disse pai Benedito com a voz grave e triste, ainda não se passou uma noite só que eu não visse meu senhor em pé olhando para mim com aquele modo de bondade que ele tinha. Eu ouço ele chamar: “Pai Benedito! Pai Benedito!” Depois vai seguindo até lá na várzea; mostra o tronco do ipê; e caminha para o boqueirão...
O pai Benedito calou-se, arrependido de ter falado; e concentrou-se em profundo silêncio. Debalde as pessoas presentes o interrogaram; não puderam obter a menor resposta.