Estava José Figueira a trabalhar de fouce na sua roça, quando lhe chegou de casa a notícia de achar-se doente e muito mal o comendador.

Ouvindo essa notícia, o filho tudo esqueceu para lembrar-se unicamente que o enfermo era seu pai. Correu à casa, e montando a cavalo dirigiu-se para a fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão, que distava cerca de três léguas. Ao aproximar-se, porém, o impulso que o trouxera ia-se desvanecendo; e insensivelmente a mão colhendo as rédeas demorava o passo do animal.

— Ele pensará que vim trazido pelo interesse.

Nisso Benedito, que o avistara da cabana, corria para ele com as maiores demonstrações de alegria. O preto conservava pelo senhor moço a mesma ardente afeição; e não se passava semana que ele não fosse duas vezes pelo menos visitá-lo em casa, e levar um cesto de frutas, um molho de canas, ou qualquer outra cousa para Mário, a quem apenas começavam a despontar as presas.

— Como está meu pai, Benedito?

Apagou-se a alegria do preto, vendo o pesar que ressumbrava no semblante de José Figueira, e recordando o acontecimento que havia esquecido no alvoroço de ver seu querido senhor moço.

— Caiu doente há três dias, mas não há de ser nada de cuidado, nhonhô! disse o preto com voz baixa e desviando os olhos.

— Sei que ele está mal!

— Vosmecê vai lá?

— Não! disse José Figueira. Vinha com essa intenção, mas tenho medo que ele zangue-se por me ver e piore.

Apenas o senhor moço afastou-se, Benedito foi à Casa Grande tomar a bênção ao comendador e saber como ele ia. Encostado no braço da cama do enfermo, espreitou o momento favorável para contar-lhe o que ocorrera naquela manhã. D. Alina, que desconfiava do preto, veio interrompê-los; mas o enfermo comovido teve tempo de murmurar ao ouvido do escravo fiel:

— Dize a ele que venha abraçar-me...

Na mesma noite José Figueira recebeu de Benedito o recado do pai e partiu para a Casa Grande. Parece que a entrevista teve lugar em segredo, e que seguiram-se outras à mesma hora adiantada da noite.

Infelizmente, voltando de uma delas, na noite de 15 de janeiro de 1839, José Figueira errou o caminho e precipitou-se no boqueirão. Ao choque produzido pela notícia de semelhante desgraça, o comendador que estava agonizante não pôde resistir e expirou, tendo sobrevivido ao filho apenas dois dias em que não deu acordo de si.

Com espanto dos fazendeiros e até dos correspondentes da Corte, descobriu-se que em vez de ser um dos homens mais ricos do lugar, como todos acreditavam, era ao contrário pobre, e muito pobre. Estava crivado de dívidas que absorviam todos os seus bens.

Atribuiu-se a ruína do comendador ao jogo, paixão que dominara o espírito do velho durante os últimos tempos: “Sem dúvida, diziam as comadres do lugar, para disfarçar os amargores de boca e as zangas que lhe causava a enfunada da mulherzinha”.

Se a ruína do comendador surpreendeu geralmente, maior admiração houve ao saber-se que um dos principais credores do falecido era Joaquim Freitas, a quem estava hipotecada a Fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão no valor de cem contos de réis. É verdade que o moço apresentava-se como procurador de vários capitalistas da praça do Rio de Janeiro, associados para o fim de empregarem alguns fundos em empréstimos à lavoura com a devida segurança.

Esta circunstância bem provada como estava, explicou o fato muito naturalmente; mas a impressão da súbita mudança de fortuna do Freitas, perdurou; e se avivava sempre que sua prosperidade nascente tomava um novo incremento.

Apenas se liquidou a sucessão do comendador e Freitas tomou posse da fazenda, teve lugar seu casamento com D. Júlia. A este respeito contava-se um incidente curioso, e que por algum tempo deu tema às conversas da vila.

Dias depois da morte do comendador e do filho, estava Freitas em casa de D. Isabel; o moço conservava a mão direita metida no peito do colete, pretextando um talho que dera com o canivete ao aparar uma pena. A concorrência era pequena; estavam ausentes os candidatos festejados; tocava pois a noite ao Freitas, o que raras vezes sucedia.

D. Isabel tinha pressentido alguma cousa no porte e no olhar de Freitas; assim recomendou à filha que fosse meiga e afetuosa. Júlia entregou-se pois à sua inclinação; e Freitas em um momento de ternura conversando à janela aproveitou-se de uma ocasião em que não reparavam neles para tomar a mão da moça e beijá-la.

Júlia disparou a rir, chamando assim a atenção das pessoas que estavam na sala. Freitas surpreso ao último ponto, não compreendia; quando de repente um gesto da moça, sufocada de riso, o tornou lívido como um lençol. Escondeu rapidamente a mão, porém era tarde; já todos tinham visto o que ele tanto insistira em ocultar.

O dedo índice, quebrado violentamente, enroscava-se como um parafuso, projetado em sentido inverso, de modo que estendido o braço, a ponta desse dedo em vez de apontar além, apontaria para seu próprio dono.

Este aleijão, que mais tarde Freitas atribuiu a uma queda desastrada, fora a causa da hilaridade da moça.

D. Isabel reprovou muito a imprudência da filha e com razão, porque uma semana depois começou a divulgar-se a notícia da súbita riqueza de Freitas. Mas o moço, além de apaixonado, tinha agora a vingar seu amor-próprio ofendido; era preciso que Júlia, a orgulhosa Júlia, fosse sua mulher; mal sabia ele que esse orgulho, como todos os outros sentimentos da moça, não era mais do que reflexo da vontade materna.

D. Alina, a viúva do comendador que esperava ficar senhora da fazenda, e de toda mais riqueza com exclusão de José Figueira, viu-se reduzida a uns vinte contos de réis que pôde salvar em joias. Ela que devia andar bem ao fato do estado da casa, foi, segundo afirmaram, das mais surpreendidas; e não cessava de gritar que seu marido tinha sido roubado. Constou que fora à Corte consultar advogados sobre uma demanda a propor; mas a cousa deu em nada.

Quanto à viúva de José Figueira, essa ficou em triste condição. A morte do marido destruiu o que seu trabalho havia começado: as terras abandonadas nem deram para pagar os dez contos de réis do empréstimo; foi preciso que o credor em atenção à desgraça da pobre mulher, lhe perdoasse o resto da dívida.

Freitas mostrou-se nesta emergência digno, pela gratidão e pela generosidade, da fortuna que o elevara. Deu amparo à viúva e filho do seu amigo de infância, chamando-os para a fazenda, onde foram habitar a antiga casa do administrador.

A D. Alina, tratou-a com todas as considerações; e de vez em quando a supria com dinheiros, que ela ia gastar na Corte em fitas e rendas, se não serviam para reaver os diamantes já tantas vezes empenhados.

Estes fatos, divulgados pelos parasitas de Freitas, e habilmente adornados de elogios, criaram uma merecida reputação de nobreza d'alma e elevação de caráter; reputação que mais tarde devia realçar um rasgo de filantropia.

Lamentando as catástrofes que anualmente causam as enchentes do Paraíba, o fazendeiro estabeleceu com avultado dispêndio um serviço especial para nessas ocasiões acudir aos infelizes náufragos, arrancá-los à torrente, e salvá-los da morte e ruína total.

Não foram porém sua reputação e filantropia que lhe valeram o título de barão, e sim a soma redonda de doze contos de réis que deu para o hospício de Pedro II, suntuoso edifício, que sob a augusta invocação tem servido de lenitivo à loucura de uns e à vaidade de outros.

A riqueza e importância de Freitas criaram-lhe invejosos e inimigos. Houve quem fomentasse suspeitas a respeito da origem de sua fortuna. Chegaram até a insinuar que José Figueira fora vítima de uma espera, junto ao boqueirão, onde tinham lançado o corpo para dar ao assassinato a aparência de um simples desastre.

A gente da vila porém não dava peso a semelhantes enredos.