Correndo à cabana, Mário não era levado pela solicitude que lhe devia inspirar a sorte de Alice, sua companheira de infância; nem mesmo, cumpre confessá-lo, pelo natural estímulo da compaixão.
Não hei de encobrir os defeitos desse caráter, como não pretendo exaltar suas qualidades.
O coração de Mário, desenvolvendo com um vigor prematuro as fibras da energia, da perseverança, do heroísmo, da amizade e do ódio, ficara atrofiado a respeito da piedade, da simpatia, da ternura, de todos esses sentimentos brandos e suaves que formam o bemol da clave humana.
Em qualquer outro momento, se viessem dizer a Mário que a filha do barão tinha morrido, ele sentiria apenas a surpresa que produz um acontecimento imprevisto, e essa turbação do espírito diante do terrível mistério, todas as vezes que ele formula o seu inexorável problema.
Passado esse primeiro assomo, se ele procurasse no íntimo a recordação do acontecimento, não acharia senão um pouco de lodo entre a vasa que existe sempre em todo o coração; não acharia senão sua antipatia por Alice, e a satisfação de ver-se livre de uma presença impertinente.
Naquela ocasião porém, a vida de Alice era precisa para Mário; pertencia-lhe como cousa sua; ele a disputara ao abismo, à morte; e tinha-a afinal conquistado com uma coragem que o elevava perante a consciência. Essa existência arrancada ao boqueirão era o complemento de seu esforço; o remate de sua obra; a palma de seu triunfo. Sem ela, sua ação ficava truncada, sua vitória mutilada: ele teria salvado, embora com risco de vida, um cadáver apenas, um despojo inútil.
Como os conquistadores antigos, de que falava o seu Plutarco, ele carecia de um troféu; e esse troféu era Alice viva, e o barão humilhado no auge mesmo de sua felicidade, na viva expansão de seu amor paterno.
Imagine-se pois qual devia ser o seu abalo e irritação, vendo a morte furtar-lhe perfidamente, de uma maneira vil e indigna, essa existência que ele havia arrebatado de suas garras em luta franca, rosto a rosto! Que tropel de pensamentos lhe tumultuavam no cérebro, lutando para arrojar-se em borbotões! Às vezes eram ímpetos de indignação contra o acontecimento que o espoliava de seu triunfo. Outras vezes eram ideias loucas de ressuscitar o cadáver, transmitindo-lhe metade da própria existência.
Que inextricáveis são os fios dessa urdidura moral, com que se tecem as paixões humanas!
Esse menino inacessível à compaixão, indiferente ao sofrimento alheio, encerrado no frio egoísmo que formava um orgulho desmedido, essa aberração da infância, acabava de expor a vida, e daria sem hesitar metade dessa vida, para salvar uma criatura de sua aversão!
O corpo de Alice estava deitado na cama de sua vovó preta, que, sentada aos pés e debulhada em pranto, não sentia o próprio mal. Às bordas do leito, Eufrosina e Felícia ajoelhadas seguravam as mãos inanimadas da menina; Adélia, reclinada por cima delas, pálida de comoção, não sabendo que fazer, se afastar-se ou ficar ali, dividia-se entre os dois movimentos.
Junto dela um menino de dezesseis anos, ultimamente chegado à cabana, acompanhava com atenção delicada seus movimentos, dirigindo-lhe palavras de animação ou consolo. Era Lúcio, filho de D. Alina, e muito camarada de Mário, apesar da repugnância que mostrava sua mãe por – essa gente. Chegado à fazenda quando os outros já tinham partido, apenas soube do passeio encaminhou-se para o lugar, muito seu conhecido.
À cabeceira estava o barão, sustendo no joelho a loura cabeça da filha. Sepultado no fatal desengano de seu infortúnio, amparava o rosto em uma das mãos. Mas de repente um vislumbre desse crepitar da esperança, que bruxuleia como a lâmpada ao apagar-se, atravessava aquela treva lúgubre. Abaixava então a cabeça; interrogava ansiosamente os olhos, a face e os pulsos da filha.
O frio glacial e a imobilidade respondiam apenas à sofreguidão e às ânsias daquele coração de pai. Ele retraía-se dolorosamente, e sepultava-se de novo em um desespero mudo e estúpido.
Alice era a imagem de um anjo em cera. Seus cabelos louros, molduravam-lhe o rosto como um resplendor; o vestido despedaçado, aparecendo por cima das coberturas junto às espáduas, figurava as pontas de lindas asas azuis. Seus lábios entreabertos não sorriam, porque não tinham mais alma que os animasse, e o sorriso é uma flor d'alma; porém, essa flor, ali ficara como a pálida bonina arrancada de sua haste. Os olhos abertos e completamente pasmos, coalhavam-se, como a luz na gota que se congela; aqueles céus estavam ermos do anjo que os habitara.
A cútis alva tinha uma doce transparência produzida pela polarização da luz de sua alma que se refrangia para o céu.
Mário estacou em face dessa pura imagem, cobrindo-a com um olhar ardente. Não foram porém os toques suaves da beleza inanimada, nem a candura da linda menina, ceifada no alvorecer da inocência, que seus olhos viram naquele corpo inanimado; foi a presa por ele disputada ao abismo, foi o prêmio de seu esforço, o despojo opimo do vencedor.
Assim também não viu ele na cabana em torno ao leito, pai, ama, escravos, afeições mais ou menos ardentes; pessoas com melhor direito ou mais experiência para se interessarem pela sorte da menina, e tentarem os últimos, embora vãos esforços. Para ele não havia ali senão testemunhas da luta, que tendo assistido ao primeiro recontro, iam presenciar o outro. Alice não era a seus olhos uma filha, uma amiga, uma senhora; não passava de uma cousa, que lhe queriam usurpar.
Arredando bruscamente os escravos, Mário se inclinou sobre o leito e apoderou-se do corpo de Alice, retirando sua cabeça dos joelhos do pai.
Nas circunstâncias supremas, as distinções sociais, e até mesmo as que estabelece a norma comum da natureza, se apagam diante da superioridade real. Entre as pessoas aí presentes, algumas encanecidas, a vontade firme e resoluta, o coração forte e sobranceiro, era o de Mário. Ele devia exercer sobre os espíritos abatidos, a influência que é o efeito da eletricidade moral. Ninguém opôs a seus movimentos o menor obstáculo. Completamente desanimados, não sabendo o que fazer, na expectativa ilusória do socorro que Martinho montado no cavalo do senhor fora buscar, permaneciam todos atados pela dor e espanto.
No meio dessa indecisão, uma energia era a ressurreição moral: era o exemplo. Todos submetendo-se espontaneamente àquele coração capaz de querer, quando eles sucumbiam, àquele espírito que pensava no meio do torpor geral, puseram-se ao seu serviço com uma obediência passiva e tímida.
O barão viu lhe retirarem dos joelhos a cabeça da filha, e não fez um movimento; logo depois ergueu-se sem dizer palavra, porque o menino lhe indicara que saísse da cama. Seus olhos seguiam os gestos de Mário, sem os compreender; mas com essa vaga esperança, que se embebe de fé, como o menor vapor na atmosfera se embebe de luz. Mário não desesperara ainda, e o barão sentia em si o reflexo tênue dessa crença.
Com os travesseiros, colchas e esteiras, que pôde obter, arranjou Mário rapidamente e ajudado de Benedito, um plano inclinado sobre o leito, e aí colocou a menina. Depois, debruçado sobre ela, colou seus lábios na mimosa boca desmaiada, e apertando com os dedos as cartilagens do nariz, insuflou-lhe fortemente o ar nos pulmões.
A perícia do menino na prestação de socorros aos afogados, sendo para admirar, explicava-se contudo muito naturalmente. Na barca de salvação, montada a expensas do barão, Mário tivera frequentes ocasiões de ver aplicadas pelo administrador da fazenda as instruções de um hábil médico da Corte, para combater a asfixia por submersão conforme as indicações do Dr. Curry. Ávido de tudo saber, aquela jovem inteligência compreendeu o mistério da morte aparente pela falta do ar; e viu em alguns casos a eficácia desse meio supremo de restabelecer pela inflação do fôlego a vida já extinta no coração.
Ele sabia que no caso de asfixia por submersão, havia completa cessação de vida, equivalendo a cura a uma ressurreição; e lembrava-se de ter lido no extrato da obra do Dr. Curry, que, embora a salvação dos afogados não fosse comum, quando a submersão durava um quarto de hora, contudo havia exemplos de ressurreição depois de uma submersão por mais de meia hora e até de algumas horas. Alice estivera dentro d'água apenas uns dez ou doze minutos; e felizmente nenhuma lesão tinha sofrido.
Eis porque Mário, em vez de assustar-se com a algidez que apresentava o corpo da menina, e a completa cessação da vida, empreendera salvá-la.
A operação repetiu-se muitas vezes sucessivas. Todos silenciosos e atentos, com os olhos cravados no leito, esperavam em uma ansiedade indizível os palpites de uma esperança que, mal assomando, afogava-se para logo no receio de que Mário, exausto de forças, não pudesse continuar a operação. E quem teria a calma e destreza necessária para substituí-lo?
— Silêncio! disse Mário mais com o gesto do que com a voz.
Pousando a mão sobre o seio da menina e interrogando o coração, parecia recolher toda sua alma, e concentrá-la na ponta dos dedos que tateavam uma pulsação imaginária. O canto de seu lábio frisado pela contenção do espírito, foi-se distendendo em um sorriso, a princípio quase imperceptível. Quando afinal seu rosto expandiu-se, a cabeça erguida ressumbrava a veemência do prazer que sentia.
Alice respirava.
Ele tinha duas vezes em menos de uma hora arrancado à morte sua presa. Tinha duas vezes esmagado com sua superioridade o homem a quem mais odiava no mundo, salvando-lhe a filha, e obrigando-o a dever-lhe a felicidade de sua vida. As esmolas que o barão fazia à sua mãe, esses sobejos de uma riqueza talvez bem mal adquirida, ele as pagava por esse preço.
— Tem café quente ou esprito?
A respiração da menina, quase insensível durante alguns instantes, afinal sublevou-lhe docemente o seio. Sentiu-se um raio tenuíssimo de luz perpassar na pupila imóvel e cristalizada. A vida foi a pouco e pouco derramando-se pelo corpo, já cadáver. Quando o rosado das faces, a pulsação distinta e o movimento muscular, revelaram uma reação franca, o menino, conhecendo que Alice estava salva, eclipsou-se no meio das efusões de contentamento do barão e das outras pessoas presentes.
A alguns passos do leito, encontrou-se com Lúcio, que o olhava cheio de ardente admiração.
— Adeus, Lúcio!
— Mário, você já é um homem!
— Hei de ser!
— Que homem era capaz de fazer isto?
Mário sorriu com indiferença:
— Qualquer pessoa que estivesse acostumada como eu. Não vale nada.
Um sorriso de Adélia atraiu Lúcio, enquanto Mário ganhava a porta.
Ninguém o viu afastar-se. Era natural. Esse júbilo do coração, ao ver dissipar-se a desgraça; essa festa da vida que torna, mais solene sem dúvida do que a festa da que nasce, bastariam para ocupar naquele instante as testemunhas da cena. Além disso, porém, havia ali um extremoso amor de pai, a ternura apaixonada da mãe de leite, e outras afeições sinceras.
Benedito contudo não tardou em reparar na ausência de Mário. O velho africano, que já adorava aquele menino e admirava sua destreza e coragem, começou desde então a venerar nele alguma cousa de sobrenatural, incompreensível para seu espírito inculto. Um ente que participava do anjo, do feiticeiro e do homem, tal era a imagem que se gravou em sua alma.
Recobrando inteiramente os sentidos, entre os beijos ardentes do barão e as carícias de Chica, Alice correu o olhar ainda entorpecido pelas pessoas que cercavam o leito. Sorriu ao pai, a Adélia, a todos; mas faltava alguém que esperava achar ali e que debalde procurou.
Seu lábio balbuciou um nome:
— Mário!...
No momento em que, presa da voragem, ela se debatia nas vascas da agonia, a derradeira impressão desse transe supremo fora a do braço de Mário que lutava para arrancá-la ao abismo. Também tornando à vida, a primeira visão, embora confusa, de sua alma sopitada, fora a do rosto do companheiro de infância, que debruçado sobre ela, sorria-lhe.
— Seria tudo isto um sonho?
— Ele estava aqui, disse o barão. Mário!
— Saiu! exclamou Benedito.
— Vão chamá-lo. Ainda não o abracei.
Benedito percorreu durante algum tempo os arredores da cabana: daí podia ele dominar toda a várzea e uma parte do pomar. Depois de algumas voltas inúteis, descobriu além, na baixa, alguma cousa alva, que excitou-lhe a atenção, porque destacava entre o verde da folhagem. Com uma vaga suspeita do que era, seguiu naquela direção; verificou ser a roupa do menino, estendida para enxugar, no lugar onde batia o sol.
Mário dormia profundamente, coberto com as folhas secas das próximas bananeiras. Descansava a cabeça no braço direito dobrado sobre uma raiz que lhe servia de travesseiro. Extenuado de fadiga, o organismo reclamara imperiosamente aquele sono profundo e reparador.
Saíra da cabana com intenção de voltar à casa para mudar a roupa molhada, que o estava resfriando; mas, chegado àquele lugar, os contínuos arrepios obrigaram-no a despir-se para secar o corpo. Então cedendo à fadiga dormiu.
Benedito o estava contemplando enternecido, quando ouviu um rumor de passos nas folhas secas. Por entre as árvores avistou D. Francisca, arrastando o passo trôpego em direção à cabana. Benedito correu à senhora e carregando-a nos braços robustos, a trouxe para junto do filho, animando-a com a narração entrecortada do que havia passado.
— Deixa, minha sinhá, deixa ele dormir. Precisa bem.
D. Francisca ajoelhada roçou a fronte de Mário com os lábios, cobriu-lhe o corpo com o xale, e rendeu ao Senhor ferventes graças, por lhe haver conservado o filho querido.
Benedito também ajoelhara aos pés do menino, mas em vez de rezar por ele, pôs-se a adorá-lo, como a um ídolo.