Tinha decorrido uma semana.
Alice estava completamente restabelecida. Naquela idade as impressões se apagam rapidamente. A gentil menina tinha recobrado sua graciosa e cintilante vivacidade.
Para dar expansão a seu regozijo, o barão improvisara um suntuoso banquete e convidara as famílias dos fazendeiros da vizinhança.
Era meio-dia. Já muitas senhoras e cavalheiros se tinham apeado no pátio da Casa Grande e achavam-se agora reunidos na sala e varanda.
O barão parecia outro homem; a alegria transbordava de sua alma, no rosto e nos movimentos. Saudava a cada um dos convidados, com tanta efusão! Parecia agradecer-lhes o grande prazer que sentia.
A baronesa recebia os hóspedes com a amabilidade que permitiam sua altivez e frieza. O aparato da riqueza e os rumores da festa reanimavam sua natureza apática.
D. Luíza, sentada ao piano, misturava ao burburinho da conversação e aos rumores do campo, os brilhantes ritornelos de uma valsa então muito em voga. Ao trinado das teclas do instrumento, a graúna pousada na próxima aroeira suspendia um momento o gorjeio, para ouvir a estranha harmonia.
Aos moços, os sons do piano lembravam a quadrilha; aos velhos o canto, a dengosa modinha brasileira. Ambos os desejos foram submetidos à baronesa, que aprouve deferir a ambos com uma magnanimidade de rainha.
Entretanto D. Alina, com duas ou três roceiras, criticava dos ares que tomava a baronesa, do desembaraço de D. Luíza que, sem a chamarem, tomara conta do piano, e do vestuário das senhoras mais elegantes.
O Conselheiro Lopes, rodeado por algumas das influências da província a quem desejava granjear, achava-se em uma situação difícil. Ele manifestara na Câmara uma opinião favorável à extinção do tráfico, ideia então muito impopular entre os fazendeiros. Increpado a este respeito, fez o conselheiro largas e luminosas considerações sobre a opinião europeia, o canhão inglês, o bill Aberdeen; e concluiu afirmando que não havia realmente a menor divergência entre o voto dos amigos que o ouviam, e a sua opinião.
Nesse momento uma recomendação de silêncio foi sofrear a eloquência do conselheiro. D. Luíza cantava uma ária do Dominó Noir, recordações da ópera francesa que ultimamente havia feito as delícias da Corte.
Acabavam de chegar os últimos convidados, o que aumentou a animação da festa. Depois do canto veio a dança baralhar damas e cavalheiros, velhos e moços, nessa agradável confusão que rompe durante algumas horas a monotonia das existências calmas.
A par da festa das senhoras e dos homens havia na Casa Grande outra festa, porventura mais interessante pela sua originalidade.
Próximo à varanda, em uma saleta, onde costumava assistir a baronesa, estavam agrupados junto ao sofá alguns dos nossos conhecidos da semana anterior; e tão embebidos no seu divertimento que não ouviam as contradanças.
Enchia o tapete do sofá uma profusão de objetos, que aos olhos do menino-homem são uma ninharia, mas aos olhos do homem-menino parecem um tesouro das mil e uma noites. Eram trastes, camas, berços, guarda-roupas, lavatórios, poltronas, aparelhos de louça, talheres; um oratório com imagens e candelabros; jardins, com alamedas de flores, repuxo e estátuas; casas com repartimentos, carros puxados por parelhas de cavalos; uma fazenda cheia de árvores, de bois, carneiros e outros animais; tudo isto em delicada miniatura.
Havia também cestas, caixinhas e pequenos baús, uns já vazios, e outros ainda cheios de vestidos de seda ou cassa, chapéus, sapatos, e toda a espécie de roupa de um tamanho proporcional às dimensões dos trastes.
Finalmente sobre o sofá, gravemente enfileirados pelo braço do recosto, viam-se os donos dessas riquezas; bonecos e bonecas de todos os feitios e qualidades, uns já vestidos com o maior apuro e elegância, e outros ainda em fralda de camisa, mostrando muito sem-cerimônia, as pernas de pano, de louça, de pau ou de cera.
Alice, sentada em um banquinho de almofada, com o regaço cheio de mil cousas tiradas das cestas e baús, estava ocupada em fazer a distribuição e arranjo da festa, ajudada por Eufrosina e Felícia. Do outro lado, Adélia, acomodada em uma cadeira baixa de costura, acabava o trajo de noivado de uma formosa boneca de cera. De joelhos aos pés da menina, o Lúcio com sua habitual galanteria, adivinhava os desejos da menina para satisfazê-los, procurando no tapete já o véu de renda, já a grinalda de flores, o lenço ou o leque.
A causa de todo esse alvoroto que ia pelo mundo das bonecas, talvez ninguém se lembre dela. Pois não era outra senão aquele casamento de D. Elisa com o Dr. Oscar; casamento sobre o qual as meninas tinham conversado no pomar, por ocasião do fatal passeio à cabana de pai Benedito.
Essa união, que estava projetada para outro domingo, não pôde ter lugar em virtude do desastre. Festejando-se porém naquele dia a sua salvação e restabelecimento, não quis Alice demorar por mais tempo a felicidade dos dois noivos. Acresce que Mário, padrinho por ela escolhido, devia partir no dia seguinte para a Corte, a fim de completar ali seus estudos preparatórios.
D. Elisa e o Dr. Oscar eram um lindo casal de bonecos, vindos diretamente de Paris por encomenda do barão. Alice os tinha recebido havia alguns meses; foi o presente do pai no dia de seus anos. D. Elisa era um anjo de bonita e o Dr. Oscar um serafim, na opinião de Eufrosina; Felícia porém comparava-o a um cabeleireiro francês, para ela o tipo da suprema elegância parisiense.
— A noiva está pronta! disse Adélia mirando a boneca enfeitada.
— O noivo também! acudiu a Felícia.
— Agora falta o oratório, disse Lúcio. Acendo as velas?
— Não; Mário ainda não chegou, respondeu Alice.
— Onde anda ele? perguntou Adélia.
— Foi se despedir de Benedito.
— É verdade, ele vai amanhã. Tão depressa!
— Foi ele mesmo que pediu; não foi, nhanhã?
— Mário quer estudar depressa para se formar logo, disse Alice com um suspiro. Depois vem morar aqui na fazenda e não há de sair mais. Papai me prometeu.
— Gentes, quedê a colcha rica da cama dos noivos? perguntou a Eufrosina.
— Não é a de cetim? Está ali no baú de tartaruga.
— Deixe ver!...É muito rica, observou Felícia; mas para meu gosto havia de ser cor-de-rosa, que significa amor.
— Azul quer dizer constância e fidelidade. É mais próprio, acudiu Lúcio. Que eles se amam, todos sabem, porque são noivos. Não é, Adélia?
— Decerto! Eu hei de querer muito bem ao meu! respondeu a menina com a ingenuidade da infância.
— Quem há de ser?
— Isto é o que ninguém sabe.
Lúcio corou:
— Mário não vem, disse ele disfarçando; depois fica tarde, e não se faz o casamento.
— Não tenha cuidado! replicou Alice.
— Se quiser que eu sirva de padrinho...
— Pois, não. E Mário?
— Ele não se importa.
— Mas importo-me eu! exclamou Alice, batendo com o pezinho no tapete.
Lúcio de esperto queria substituir-se a Mário porque a madrinha era Adélia; esse ponto de contacto com a menina lhe daria um prazer imenso; parecia-lhe que ficava unido a ela por algum laço, por uma recordação mútua.
Mário porém acabava de chegar. Alice o viu da janela e chamou-o.
O menino já não se lembrava do tal brinquedo de bonecas. A despedida de Benedito o impressionara. Esse negro era o único ente a quem a sua alma se abria. Sem dúvida amava ele mais a sua mãe; porém o coração se recatava dela, e difundia-se no seio do velho africano. Há caracteres assim, que se concentram para com as pessoas que mais amam, e entretanto afagam um cão ou um cavalo.
Além disso o negro dissera algumas palavras que excitaram a curiosidade do menino ao último ponto, e alvoraçaram em seu espírito as suspeitas que aí pululavam a respeito da morte de seu pai.
Nestas condições, estava ele pouco disposto a brincar, e decerto não acudiria ao chamada da menina, se de repente não lhe ocorresse a ideia de se distrair com as zangas e contrariedades, que podia causar aos outros.
Foi chegar ele, e sentir-se imediatamente a perturbação produzida por sua presença. Ele entrou, como costuma entrar o tufão, a torrente, o raio; sem pedir licença, nem escolher caminho.
Todo o arranjo que tanto trabalho dera a Alice e às mucamas, desapareceu de relance; porque ele entendeu que não estavam os objetos colocados em regra. A unha da Eufrosina, a mesma unha da topada, fez conhecimento com o tacão do botim do menino, enquanto a Felícia chiava com um beliscão que ele lhe pespegava no braço em resposta a uma observação impertinente.
— Esta cadeira é para o padrinho? perguntou Mário mostrando uma poltrona de marfim acolchoada de cetim verde.
— É, respondeu Alice.
— Então posso sentar-me!
— Mário!... exclamou Adélia.
O menino acabava de espedaçar o mimoso traste em miniatura pretendendo sentar-se nele.
— Que graça! disse Lúcio.
— Cale a boca. Não bula comigo!
— Olhe, nhanhã; sua cadeirinha, tão bonita, em que estado ficou.
— Não faz mal, dizia Alice rindo.
Ela, a boa e gentil Alice, achava nas travessuras de Mário uma graça extrema. Em vez de zangar-se, aplaudia.
Mário entretanto ia continuando a desordem começada, despindo umas bonecas e vestindo outras da maneira a mais grotesca e ridícula, o que suscitava observações da parte de Adélia e Felícia, defensoras da moda e elegância. Grande porém foi o alvoroço quando o menino, armando-se de uma grande agulha de enfiar, perguntou:
— Onde está a noiva?
— Para quê?
— Quero ver uma cousa.
— Eu não dou! disse Adélia.
— Nhanhã Alice, tome conta de D. Elisa; porque ninguém pode com este menino, não.
— É melhor, disse Adélia restituindo a noiva a Alice.
— Tome, Mário.
E Alice entregou sorrindo a boneca a seu companheiro de infância. Este porém perdeu o gosto da travessura, desde que a menina, em vez de revoltar-se contra ela, parecia ao contrário associar-se de boa vontade.
— Está bom, era para abrir-lhe o coração; mas já vejo que é oca.
— Oca é a cabeça bem sei de quem, disse Lúcio.
— A nossa!... Ah! esta é cama dos noivos?
Mário acabava de descobrir a cama à Luís XV que Lúcio estava arranjando com todo o esmero.
— Vamos a ver se está macia!
— Deixe-se disso, Mário; tire a cabeça.
— Espera, espera que eu te mostro.
Mário travou-se de luta com o camarada, e como apesar de mais moço, era mais ágil e robusto, em breve o subjugou. Então levantando-o nos braços, gritou:
— Preparem o berço para o nenê!
Nesse momento felizmente apareceu o Sr. Frederico de Matos, moço de vinte anos, filho de um fazendeiro da vizinhança. A voz geral o apontava como o noivo de Alice, e afirmava que esse casamento já estava justo entre os pais. O Comendador Matos era, depois do barão, o homem mais rico do lugar; todos achavam pois muito natural que essas duas riquezas se atraíssem mutuamente por uma irresistível paixão matrimonial.
Frederico era bonito moço, mas tinha um rosto de alfenim, redondo, sem a menor sombra de buço; o que lhe dava certo aspecto afeminado e ingênuo. Sem intenção de transtornar os futuros planos matrimoniais de seu pai, se tais planos existiam, o rapaz tinha suas quedinhas por Adélia.
— Falta um par, disse ele entrando. Venha dançar comigo, Alice.
— Eu não! respondeu a menina com estouvamento.
— Então me rejeita? Muito obrigado. E a senhora, D. Adélia? perguntou corando.
O pedido a Alice não fora mais do que uma tabela para dar no alvo. Adélia também enrubesceu ligeiramente, e hesitou:
— Não posso dançar agora! respondeu com ligeiro pesar.
— Temos cá um casamento, disse Mário.
— Ah! e não me convidaram!
— Está convidado, tornou Mário.
Frederico procurara com o pretexto da falta de par se aproximar de Adélia. Indeciso entre o desejo de participar do folguedo, e a vergonha de meter-se com as crianças, ele ia deixando-se ficar.
— Aqui não é lugar para moço, disse Alice contrariada.
— Também acho! observou Lúcio.
— Fique! atalhou Mário categoricamente. Carecemos de um padre para casar os noivos; e o senhor tem justamente cara disso.
— Está engraçado!
O riso geral que provocou o gracejo de Mário desconcertou Frederico. Foi-se pois o cupido da roça como tinha vindo, nas asas de um pretexto: a quadrilha estava à sua espera.
— E o casamento? disse Eufrosina. A noiva já está cansada de esperar.
— O ditado bem diz: “Casamento demorado, com certeza é desmanchado”. Está-me parecendo que é o que vai suceder.
— Vamos, vamos, disse Alice. Acenda o oratório, Lúcio.