Alice, para abrigar-se do sol e arrumar os figos, procurou a sombra de uma bonita jabuticabeira, que ficava quase no centro do pomar.

Tinham rodeado de uma espécie de mesa tosca o tronco da árvore, correndo um banco em volta. Era um sítio aprazível para passar a sesta e merendar as belas frutas que pendiam das árvores. Daí se podia ver pelo cruzamento das alamedas uma grande extensão do pomar.

Covando a folha de taioba, que Mário lhe trouxera, a moça ocupada em arranjar os figos, continuou a garrular com a mesma graciosa volubilidade, que lhe servia para disfarçar o pejo de estar só com Mário:

— Esta mesa também você a não conhecia? Papai mandou-a fazer há dois anos, por minha causa...

— Que é também, se não me engano, a causa de tudo neste pequeno mundo, disse Mário sorrindo.

— Nem tanto assim! respondeu a menina com faceirice. Mas papai, esse, adivinha meus desejos!... Como eu quase sempre, todas as tardes, vinha me sentar aqui na raiz desta jabuticabeira, lembrou-se ele de fazer-me uma surpresa, e um dia achei tudo pronto, a mesa e o banco!

— “Por artes de meu condão”, como dizia a fada nas histórias da tia Chica?

— Tal e qual. Fiquei tão contente! continuou a moça banhando-se em risos de prazer; ninguém imagina como eu gosto deste lugar; e o senhor não adivinha por quê?... Esquecido!...

Mário volveu em torno um olhar profundo, interrogando a fisionomia do sítio, desejoso de avivar as reminiscências apagadas.

— Não me lembro!...

— Pois eu tinha chamado este lugar a – árvore da lembrança, agora há de chamar-se – do esquecimento... para você, que para mim ainda está cheia de recordações; é um ninho... Vê aquela pimenteira? Ali armava você a arapuca para apanhar sabiás que às vezes me dava, e depois os soltava da gaiola por pirraça! Não se lembra?

— Esqueça esse peralta, Alice!

— E eu também não tinha as minhas birras?... Acolá embaixo daquela parreira passei uma manhã inteira chorando, porque você não queria passear comigo! Esta vereda sabe onde vai dar? Olhe, lá embaixo perto do canavial; não vê o córrego? Um dia, eu por força queria passar para o outro lado, você me carregou nos braços...

— Ao menos desta vez fui cavalheiro!

— Espere; apenas me deitou da outra banda, fugiu, deixando-me sozinha a gritar!

— Recordo-me, disse Mário rindo a seu pesar.

— Ah! Já se lembra! E o jambeiro? lá, passando a parreira. Que estripulias fez nhonhô Mário no dia em que eu caí no boqueirão, donde ele me tirou com risco de sua vida! E você quer que eu o esqueça? disse Alice repousando no semblante do moço um olhar de inefável doçura.

Mário se tornara de repente sério e constrangido. Porventura aquelas recordações de sua infância, ressurgindo assim de tropel, lhe absorviam o espírito, e quem sabe se vexavam o mancebo, mostrando o estouvamento e rudeza do caráter do menino que ele fora outrora.

Alice, muito embebida no prazer de brincar com estas reminiscências, continuou sem aperceber-se do que se passava n’alma de seu companheiro de infância.

— Naquele cambucazeiro, você me amarrou um dia com a sua gravata, para que eu não o acompanhasse até a casa de vovô. Mais adiante há uma moita de pitangas... Olhe!... Está vendo?... Acolá?... Pois aí você se escondia para me meter medo. Mas, neste mesmo lugar onde estamos, um dia que você trouxe do mato um sagui, eu vim por detrás do tronco, deste... devagarinho, e soltei o laço com pena do bichinho, para que o Boca-Negra não o comesse.

— E era para você! acudiu com rapidez Mário, que por um instante julgou-se transportado àqueles tempos de sua infância agreste.

— Mas você nunca me disse!

— Para quê?

— Eu teria tanto gosto!

— Criançadas!...

— Se era para mim, eu paguei bem a travessura, porque além de perder o sagui, você pregou-me um beliscão!... Ah! Que forte! Aqui, olhe!

E a moça transportada também pela vivacidade de suas recordações aos dias descuidosos da infância, arregaçou estouvadamente a manga de cassa como fazia aos onze anos, para mostrar no braço alvo e torneado o lugar do beliscão.

— Meteu-me tanta raiva que fui contar a mamãe e mostrar a marca do braço. Ela o prendeu todo o dia de castigo na varanda; mas eu fiquei arrependida e com tanto dó quando o vi chorar de raiva por não poder sair, que fui lhe pedir perdão: – “Mário, disse eu, não esteja zangado comigo; nunca mais conto nada; você quer, vingue-se; me dê três beliscões bem fortes, que eu não me queixo.”

— E eu dei! balbuciou Mário de sobrolho rugado.

— Deu o primeiro; e vendo que eu não tinha chorado, deu o segundo com tanta força que me fez saltar as lágrimas em bagas. Então você soltou o braço de repente, me abraçou chorando e... me deu um... Mas aqui na face!

O semblante da menina lavou-se em ondas de púrpura; e seus lábios não se animando a pronunciar a palavra, insensivelmente se tinham apinhado, dando a imagem dessa carícia, que ainda lhe acendia as faces de rubor.

— Nunca mais você me deu outro... Só quando me tirou do boqueirão, como morta, e que para me fazer voltar à vida, foi preciso soprar-me ar com sua boca. Meu Deus, que vergonha eu tive quando soube!...

Alice calou-se, tomada pelo soçobro destas recordações, meio arrependida do que dissera, querendo resgatar cada uma de suas palavras, e contudo sentindo o coração ainda cheio a transbordar daquele perfume de saudade que tinha destilado durante tantos anos de infância para verter um dia no coração de seu amigo e camarada de infância.

Mário, cada vez mais submergido no passado, que a menina evocara, fitava nela um olhar triste e ao mesmo tempo severo, enquanto nos lábios perpassava-lhe um desses pungentes sorrisos de ironia, com que a própria consciência escarnece do coração do homem.

A menina, com a fronte baixa, temendo encontrar naquele momento os olhos, que antes ela procurava e recebia com tanto carinho, mais uma vez soltou as asas ligeiras e sutis de sua palavra para fugir ao vexame do isolamento.

— Deixe estar; amanhã ou depois, quando estivermos mais sossegados de festas e mais sós, havemos de dar um passeio, bem comprido: e só para ver os lugares onde brincamos e os objetos que ainda guardam as lembranças de nossa infância. Você já viu o Boca-Negra? Está muito velho, mas ainda é o mesmo cão valente e destemido. O meu pequira em que você corria, o rucinho, também ainda vive. Aquilo que nos lembrava de você, tudo se conservou, até o caminho do boqueirão que papai quis mandar tapar depois daquele dia, mas tanto eu pedi-lhe que deixou! Também havemos de ir lá; nunca, nunca mais aí voltei depois daquela vez; mas lembro-me de tudo como se fosse hoje. Agora posso ir; com você, papai não tem medo; nada me sucederá.

O sorriso desfolhou-se de repente nos lábios da menina, que tinha enfim reparado na singular expressão do rosto de Mário. O olhar surpreso que lançou ao moço, fê-lo cair em si e dominar-se:

— Alice, eu lhe peço! disse ele tomando-lhe a mão afetuosamente. Não desperte essas recordações; deixe-as dormir para sempre.

— Incomodam-lhe, Mário?

— Muito!

— Tão ruim foi para você esse tempo, que não pode suportar nem que se fale dele? exclamou Alice com uma queixa sentida. Que você não se lembrasse mais, era natural. Esteve na Europa!...

— Essas recordações, não se apagaram de meu espírito, como você pensa, Alice. Quantas vezes na capital do mundo civilizado, enquanto as maiores celebridades passavam por diante de mim, e o burburinho da grande cidade aturdia uma população ébria de prazer; quantas vezes meu pensamento não atravessava o oceano, para refugiar-se nestes sítios, onde vivi minha infância; para divagar pelas matas e campos, onde eu tantas vezes brinquei com a morte, como uma criança louca e imprudente?

— Somente disso é que se lembrava!

— Também via a sua imagem suave, que me seguia quase sempre como um anjo da guarda, contra quem eu, arrastado pela tentação, me revoltava de uma maneira às vezes brutal. E apesar disso você não se agastava nunca; nas minhas cismas, muitas vezes, seu rosto sempre meigo aparecia-me ao mesmo tempo orvalhado de lágrimas e desfeito em risos: porque a cólera em sua alma, Alice, era apenas o raio de sol que abre a flor.

Mário parou um instante como se hesitasse ainda.

— Mas essas recordações me faziam mal!

— Saudades? perguntou Alice com ternura.

— Oh! não! A saudade é uma doce tristeza, e a minha amargava. O que me deixavam aquelas cismas não era o enlevo do passado, mas um tédio inexprimível desse tempo que desejava não ter vivido. Sempre, depois disso, ficava-me por muitos dias a alma toldada, como a água daquele córrego, quando agitam o lodo que está no fundo. A razão do homem julgava as ações do menino, e condenava-o como uma criança ingrata e perversa!

— Ah! Mário, que severidade!

— Mas, balbuciou o moço com a voz surda, o mais cruel era que esse menino louco se indignava contra o homem, chamava a razão de cobardia, a gratidão de cobiça!

Observando a sombra que estas palavras lançavam no rosto da menina, ele sofreou o impulso de suas recordações.

— Esse menino louco, eu o consegui enterrar bem longe daqui... felizmente. Esqueça estas palavras, Alice, deixe-me esquecer o meu triste passado. Suponha que nos conhecemos de antes de ontem. Como se eu fosse um irmão nascido em terra estranha, que depois de tantos anos de exílio, voltando à pátria, encontra uma linda maninha, a quem não conhece, mas ama de todo o coração!

Alice abaixou a cabeça, com um sorriso; ela sentia que era impossível desprender de seu passado a existência, cujo fio se entrelaçara com a teia dourada de suas recordações de infância.

— Se este enlevo em que tenho vivido desde que cheguei, é um sonho, Alice, não me arranque a ele!...

— Não tocarei mais nisso, eu lhe prometo.

— Mas ficou triste!

— Triste?... Não; tenho saudade de minhas saudades!... Ai, bico!...

A linda menina, com as pontinhas rosadas do polegar e índice da mão esquerda cerrou os lábios; mas pelo ricto gracioso borbulhava um sorriso encantador.

— Pois olhe, se alguém tinha razão de queixa, era eu!

— Deveras!... Havia de ser curioso!

— Quem vive de recordações não prefere o passado ao presente?

— Nem sempre! Muitas vezes, lembrar-se não é senão desejar! disse Alice rapidamente, e afastando-se com direção a casa.

— Escute!

— São horas!

E a moça desapareceu.