Depois que Alice voltara a si do desmaio, o barão tomou-a nos braços, e levou-a para casa.

A menina estava ainda muito fraca e pálida do abalo que sofrera; mas em seu lindo semblante ressumbrava uma resignação meiga e serena, como se um reflexo do céu já iluminasse-lhe a alma.

— Que te disse ele? perguntou o pai à filha.

Tudo que passara entre ela e Mário, poucos momentos antes, Alice referiu ao pai minuciosamente, não só pela necessidade de expansão, como pela esperança de que ele a ajudasse a penetrar o mistério.

— Está bem; não fiques triste, disse o barão com uma carícia. Ele voltará, e muito breve!

A menina abaixou a cabeça.

— Queres apostar? disse o barão gracejando.

Esse tom a surpreendera; fitou os olhos no semblante do pai, ele não a enganava. O contentamento brilhava-lhe no semblante; se ele se alegrava, quando a via triste e abatida, é porque tinha realmente o meio de fazê-la feliz.

— Então?... exclamou ela cheia de esperança.

— Há de ser teu marido!

— Mas esse mistério!...

— Ideias de moço!... Não te preocupes com isto; a esta hora já está arrependido!

Alice duvidava ainda.

— Sossega: procura dormir um pouco. Quando menos esperares... Sou eu que te hei de pedir as alvíssaras!

Ao despedir-se, o barão abraçou com efusão a filha, e cobriu-a de beijos, dizendo-lhe meiguices e gracejos. Quando porém transpôs o limiar da porta, a emoção, que por muito recalcara, irrompeu-lhe em soluços e pranto.

Felizmente estava deserto o corredor, e ele pôde ganhar seu gabinete sem que o vissem naquele estado de perturbação.

Apenas conseguiu vencer a emoção, o primeiro cuidado do barão foi ler a carta de Mário, que ainda conservava intacta. O que ali estava escrito, ele o adivinhava, ou pelo menos pressentia. Eis o teor da carta:


Il.mo Ex.mo Sr. Barão da Espera

Minha resolução não o deve surpreender; foi V. Ex.a quem a ditou.

Colocando-me na posição de rejeitar seu último benefício, obrigou-me V. Ex.a a romper o vínculo que me prendia ao benfeitor e restituiu-me a liberdade.

Retiro-me pois de sua casa.

Não o devia fazer, sem pagar a dívida de minha subsistência e educação; mas sabe V. Ex.a, e ninguém melhor, qual a herança que me tocou.

De V. Ex.a
Atento venerador e criado
Mário Figueira

13 de Janeiro de 1857.


Chegado às últimas palavras, o rosto já desmaiado do barão contraiu-se. Embora já esperasse a alusão e talvez mais ferina, essa prevenção, longe de embotar, ao contrário exacerbou-lhe a consciência.

Quando vieram chamá-lo para almoçar, já estava inteiramente calmo. Em toda sua pessoa transpirava a placidez, que incute a confiança de si mesmo.

Na mesa conversou alegremente, e conseguiu distrair Alice, que sorria sem querer, e sentia-se reanimar ao influxo daquela jovialidade expansiva. Às vezes porém o pai esquecia-se dentro de si, e lá ficava absorto em profunda meditação; de seu lado a filha, desprendida da atenção que lhe prestava, recolhia-se em sua mágoa, como a flor que fecha, mal se apaga o calor do dia.

Terminado o almoço, voltou o barão ao gabinete, onde encerrou-se para trabalhar. Não passou muito tempo porém, que o não interrompessem; bateu à porta o Martinho com recado do Comendador Matos, que lhe queria falar a todo o custo.

— Manda-o entrar, disse o barão.

E continuou a trabalhar sobre os livros de sua escrituração mercantil, abertos em cima da vasta carteira de vinhático.

— Já sei que está ocupado! gritou o comendador entrando. Mas a demora é pouca.

— Estou fazendo meu balanço! respondeu o barão com um sorriso.

— Ah! boa safra, já se sabe?

— Sofrível.

— Aí uns cinquenta contos, hem?...

— Não chega a tanto.

— Pois, meu amigo, já que tocamos no ponto, vou dizer-lhe o que me trouxe hoje aqui. O Frederico parece que está caído pela filha do conselheiro; portanto é preciso que decida sobre a Alice. Eu cá prefiro o sólido; mas isso de rapazes...

— Eu pensava que era cousa já decidida.

— O que, homem?

— O noivo de Alice é Mário.

— Hanh!... Bem me dizia a D. Alina. Leva um bom dote o maganão; mas enfim...

— Acabe! exigiu o barão franzindo o sobrolho.

Perturbado, o comendador buscou disfarçar a sua malícia com uma pilhéria, afogada como de costume em um gargarejo de riso grosso e gutural.

— Mas enfim... tocou-me o conselheiro, que me há de fazer visconde da primeira fornada: e antes disso não me pilha a legítima do rapaz.

Ficando só outra vez, concluiu o barão seu trabalho, acrescendo algumas parcelas a um livro menor, que fechou em uma capa de papel com endereço a Mário. Feito o que, sentou-se à secretária e escreveu uma carta ao moço.

Bateram de novo à porta. Era Benedito que o barão mandara chamar.

— Já sabes que Mário nos deixou!

O preto ficou sucumbido.

— Quando?

— Esta manhã. Mas é preciso que ele volte.

— É preciso, repetiu o preto como um eco.

— Segue-o por toda a parte; e onde o achares, entrega-lhe os papéis que vou confiar à tua fidelidade. Ele voltará e seremos todos felizes... todos.

— Deus queira!

Abriu o barão no cofre de bronze um segredo onde havia um maço lacrado com sobrescrito a Mário, e fechando-o com a carta e o livro em uma lata de trazer a tiracolo, deu-a ao preto:

— Aqui tens. Tu lhe entregarás, quando ele estiver só. Juras?

— Por alma de meu senhor!

— Vai.

O preto hesitava:

— E se ele perguntar?

— Dize-lhe a verdade; mas pede-lhe que lembre-se de Alice!

Com o coração angustiado, Benedito dobrou o joelho, para pedir a bênção do senhor, e partiu com os olhos cheios de lágrimas.

Eram horas de jantar.

O resto da tarde, o barão consagrou-o todo à família, porém especialmente a Alice, com quem esteve por largas horas conversando no jardim, enchendo-a de esperanças e de carícias.

Quando o sino tocou trindades, ele ergueu-se:

— Não queres rezar por Mário?

— Quero! respondeu a menina agradecendo-lhe com um olhar aquela terna lembrança.

Ambos dirigiram-se à capela e fizeram uma oração.

O Martinho veio anunciar que os animais estavam prontos, e como a baronesa que chegava se mostrasse admirada daquele passeio a tal hora, disse-lhe o barão:

— Quero aproveitar o luar para concluir com o Matos um negócio que ele veio hoje propor. Até logo!

E abraçou a mulher. Esse afago não era habitual; assim a baronesa o tomou por gracejo.

— Vou tratar de tua felicidade! murmurou o pai ao ouvido da filha, apertando-a ao coração com um afago de ternura.

Um instante depois, no ponto do caminho em que se perdia a vista da casa, oculta pela colina, o barão voltou-se e acenou com a mão por muitas vezes, dizendo adeus a Alice que o acompanhara de longe com a vista. Nesse momento foi preciso um supremo esforço, para sufocar as ânsias que lhe transbordaram d'alma; ainda assim o peito lhe estalava de dor.

— Senhor tem alguma cousa? perguntou o Martinho.

— Não, respondeu o barão que, fustigando o animal, tossia para sufocar a vasca do peito.

Demorou-se o barão em casa do Comendador Matos até dez horas, discutindo a proposta que lhe fizera de comprar certa porção de terras contíguas à Fazenda do Boqueirão. Fora o pretexto inventado para essa visita, que entrava em seu plano oculto.

De volta para a Casa Grande, o barão deixou ir o animal a passo como quem não tinha pressa de chegar. Ao menor rumor do vento nas folhas ele voltava-se agitado, pensando que alguém se aproximava; e não vendo senão o Martinho que o seguia a cochilar na sela, interrogava o relógio ao clarão do luar, para saber a hora.

Parecia esperar alguém; talvez um incidente, um obstáculo, que viesse impedir a sua resolução.

Avistando de longe a cabana de Benedito e o lago que se alisava, como uma lousa alvacenta, entre o verde-escuro da folhagem, o barão estremeceu. Era chegado o momento. O relógio marcava onze horas; justamente aquela em que José Figueira fora vítima da catástrofe.

— Deus condenou-me! murmurou o barão. Se ele me permitisse viver, Benedito teria encontrado Mário; e o perdão do filho chegaria a tempo!... Contanto que minha Alice não maldiga a memória de seu pai e seja feliz!...

Esbarrando de encontro ao cavalo do barão, a mula em que vinha o Martinho, o despertou.

— Passa adiante e vai à cabana chamar Benedito. Que me venha falar!

O pajem obedeceu; mas apenas avistou o tronco do ipê, começou a tremer em cima da sela. Mais depressa se deixaria fazer em postas do que passar pela árvore mal-assombrada. Tomou um expediente; pôs-se a gritar pelo preto.

Entretanto o barão, que de propósito afastara o pajem, mal este encobriu-se, lançou o cavalo para o lago, e quando o animal espantado empinou arrojando-se fora do remoinho, ele pronunciando uma última vez o nome de Alice, precipitou-se.

No arremesso, o chapéu saltou-lhe da cabeça, e à claridade da lua, Mário o reconhecera.

O mancebo não hesitou um momento. São assim feitas as organizações generosas: os atos de heroísmo e abnegação as reclamam imperiosamente; não pensam, não refletem. Esquecem tudo ante o perigo: não se lembram, nem indagam, por quem se esforçam. Dedicar-se é para elas um impulso, um instinto; prodigalidade sublime!

Antes que Benedito se recobrasse do espanto, Mário se arremessou da lapa a tempo de agarrar o corpo do barão. Foi renhida a luta, porém o mancebo tinha dessa vez a vantagem de um ponto de apoio que desde princípio ele conservara, travando com a mão esquerda a raiz de um arbusto encravada entre as fendas do rochedo.

Afinal, ajudado pelo preto, conseguiu tirar d’água o corpo do fazendeiro e conduzi-lo à cabana, onde o deitaram no mesmo catre, que sete anos antes recebera Alice. O barão perdera os sentidos; mas os sinais da vida se manifestaram, apenas lhe foram prestados os primeiros socorros.

Deixando a Chica velar sobre o enfermo, Benedito chamou à parte Mário para entregar-lhe os papéis que o senhor lhe confiara, referindo o modo por que fora incumbido dessa comissão.

— Bem meu coração estava adivinhando quando ele me entregou, disse o preto.

A carta do barão que Mário leu ao frouxo bruxulear da candeia continha estas palavras:


Mário.

Sou menos culpado, do que talvez me suponha.

Meu crime foi a paixão por uma mulher que me fez cobarde e ambicioso. Por causa dela tive

medo de morrer, e não me sacrifiquei por um amigo, ou antes um irmão. Para não perdê-la, calei-me, conservando o que não me pertencia.

A vergonha do crime fez o resto.

A morte de seu pai, tenho-a expiado severamente durante estes longos anos que são passados. Sua riqueza, quando Deus me concedeu uma filha, eu jurei restituir-lha pela mão inocente e pura de Alice.

Esse casamento, que foi o meu sonho de esperança e era a promessa de perdão, minha vida tornava-o impossível.

Destrua-se o obstáculo.

O crime vai ser reparado e o réu punido. Envio-lhe com esta meu testamento feito há 16 anos, e a minha escrituração particular; com esses documentos poderá reclamar sem contestação a riqueza que lhe pertence.

E agora não é um homem rico e poderoso quem oferece ao moço desprotegido a mão de sua filha; é o infeliz, que do seio da eternidade, implora de seu juiz a felicidade de uma pobre órfã desvalida.


Quando o moço acabou de ler, sua emoção era profunda. Prestes a sucumbir, ele se lançou fora da cabana como se quisesse fugir à impressão produzida pelas últimas palavras da carta.

— Mário! murmurou o barão erguendo-se no leito.

O moço fez um gesto de desespero, e parou indeciso. Voltando rapidamente, apanhou a carta que atirou com os outros papéis ao fogo, acendido pouco antes para aquecer o corpo e as roupas do afogado.