Manduca e João de Deus ataram uma carreira entre um alazão-ruano e um pangaré.

Logo no acampamento formaram partidos, apenas feito o atilho, e a parada subiu a trezentos patacões.

O vaqueano era o corredor do alazão.

Do outro não se soube até o dia. Os dois pujantes animais, tratados a palha de jerivá e bem amilhados, apareceram na raia.

Havia ali um mundo de gente toda agitada, soltando alta grita, a efervescência da arraia miúda preparada para uma grande festa.

- Paro três doblas no ruano - bradava um. - lsto é que é ginete, pelichou de dias e já fino na raia como uma seta. O alazão não reserva tiro nem parada em cinco quadras... Coepuxa! - E sacudia o relho com ar provocador.

- Sente-se no tiro, e a parada morta - disse outro. - Não um salta-pedras que dá pancas.

- Envido, amigo - retorquiu.

- Reenvido...

Rebentou sáfara pocema.

Um aderente do pangaré, que não vira com bons olhos a provocação do primeiro interlocutor, também rugiu-lhe aos ouvidos:

- Aquilo é um matungo, patrício! Um reúno!... Largo-lhe na cola a tiro de bola e ainda vou tomar-lhe o boçal.

- Helá! Este potranquilho agora desponta o colomilho e já no partir mata o pangaré a sacar de paleta...

- De fiador...

- Nem de orelha...

- Eu torno a repetir que cem léguas em derredor não há cavalo mais monarquiador, voluntário e parelheiro...

- Basta de levantar polvadeira! Não é só a boca que faz jogo, é a raia que há de fazê-lo. Não é por escarcear que se conhece o pingo. Num prisco do pangaré vai tudo raso.

- Qual pangaré, nem meio pangaré! O ruano, sim, é que voa, nem risca o chão!...

- Por Deus e um patacão! Ao heu da carreira o bagual do ruano se desmancha. .. E se há quem diga o contrário pise-me no poncho, que verá como o corto de arreador. E, desenfiando o poncho, e o revoluteando nos ares, arremessou-o por terra.

Num minuto facas despiram as bainhas e rebenques alçaram as açoiteiras. Era iminente um grave conflito, se não fosse a intervenção de Moisés e outros, que interceptaram e fizeram abortar furiosas agachadas.

São prelúdios das corridas.

- O que não dirá o general - advertiu o mulato -, se sabe que no brinquedo houve rusgas? Sosseguemos, se não queremos conselho de guerra e fuzilamentos.

Aplacou-se a conflagração.

Ao tumulto sucedeu o murmúrio de vozes comentando baixinho o sucesso.

Decorridos instantes um ponderou em tom alto:

- Com o diacho! Onde está o corredor do pangaré? Esperam que caia ali da carapuça do morro? - disse aludindo à névoa que coroava o cume de Santa Marta.

Era motivo para novo distúrbio, porém João de Deus apaziguou-o.

- Há dias veio um sujeito falar-me para corrê-lo, afirmando que ganharia e ao contrário pagaria o dobro. Às duas horas ele vem. Prometeu. Moisés teve apreensão tão repentina que bradou:

- Vamos lá esperar!... Corro eu com o mesmo conchavo.

- Não queremos. Não queremos - tomou em coro um sem-número de vozes. - Esperemos nosso corredor.

O mulato sobresteve fulo de cólera.

Depois achegou-se ao vaqueano e pronunciou mansinho: - Abandona o alazão, quem corre o outro é André Capinchos.

O moço encolheu os ombros com indiferença.

- Por Deus o digo, José!

O mesmo movimento.

Moisés mostrou impaciência e foi até o arranchamento aconselhar-se com os índios.

Às duas horas viram um cavalheiro a toda a brida.

Chegou.

Era André.

Avençal nem de leve se fez surpreso.

Os corredores puseram-se em mangas de camisa, ataram um lenço nos cabelos, tomaram dois talos de jerivá e montaram os cavalos em pêlo.

A carreira era de quatro quadras. Os julgadores nomeados foram para a raia. O poviléu apinhoscara em duas imensas turmas.

Começaram a partir.

- Assassino - dizia entre dentes, André -, hoje não tens um velho... Covarde!

As faces de Avençal carminaram levemente, porém não respondeu.

O outro prosseguiu:

- É necessário que eu te corte a cara, para te fazer falar?

Ainda o mesmo silêncio.

Quem os visse, diria que conversavam. Só Moisés adivinhava o que se passava, acariciando a coronha dum pistolão.

Na quarta vez, cerraram pernas e saíram. Os animais dilataram as narinas, distenderam o talhe esguio. Assemelhavam dois dardos num arremesso violento à flor da terra. Os dois homens, inclinados sobre as crinas dos briosos ginetes, com a respiração difícil na vertigem do galope a toda a rédea, devoravam o lançante do cerro com a velocidade do corisco...

Segui-los com os olhos, fitá-los era crer nos centauros míticos, era sentir as fontes latejarem no ourijo do pensamento.

O alazão começou a cortar luz de fiador. Capinchos aproveitou a ocasião, levantou o braço, ia ferir na face a Avençal... Uma flecha silvou dentre a rama dum salgueiro e arrancou-lhe o talo da mão erguida.

O fato produziu tão profunda sensação, que por momentos paralisou todas as línguas. Depois uma tempestade.

Moisés foi abraçar com entusiasmo o guaicanã de vista certeira. Os julgadores, em vista da ocorrência, anularam o que se tinha feito.

Avençal na velocidade em que ia não vira o que passara.

Mal deram a assentada, pularam dos cavalos.

André esbravejou:

- Houve trapaça de pés e mãos, e meteram caboclos no meio...

O vaqueano não pôde conter-se.

- Mentiste, perro! - bradou.

Duas facas lampejaram.

Muita gente rodeou-os.

Moisés acercou-se dos grupos e disse com voz de trovão:

- Deixem-nos brincar.. . São contas antigas... Caramba! Deixem-nos, ou então faço saltar os miolos do último dos Capinchos, raça de matadores... E tinha na destra o pistolão engatilhado, e o cenho ameaçador.

- Querem pelejar, rapazes? - refletiu um capitão da República, testemunha ocular do combate entre Bento Gonçalves e Onofre e muitos outros. - Eu os arranjo, venham cá. E voltando-se para o ajuntamento, cuja maioria era composta de soldados:

- Retirem-se, ou mando convidar o pelego do que não obedecer.

As mós do populacho pouco a pouco se rarefizeram, ainda que com murmúrio de descontentamento.

No dia seguinte vamos encontrar o referido capitão, os dois adversários e Moisés na costa dum rincão. Iam atirar a faca numa distância de 15 passos. O capitão quis sorteá-los, em conformidade das leis da honra.

O vaqueano com o habitual sangue-frio e indiferença da vida e, quem sabe, por desprezo do antagonista deu-lhe a primazia. Este aceitou com um sorriso, onde transluziam íntimos júbilos, reflexos da alma que ia saciar a sede de sangue, alastro de ódio profundo. Tomaram os lugares.

Só o mulato tremeu diante da resolução do amigo, mas não ousou fazer a menor consideração deixou a Deus o desfecho do drama negro em que ele figurara entre as principais personagens.

André empalmou a faca, ficando o cabo para fora e a ponta da lâmina estendida sobre a parte interna do braço. Pinchou-a em direção ao peito de Avençal. Ia feri-lo no coração. Mas antes que o ferro o tocasse, este arredou o corpo e tomou-a no ar pelo cabo.

- Bravo! - exclamou o capitão, esfregando as mãos de contente. Isso é que é furtar a volta!

O filho de Capinchos empalideceu. Avençal fez o mesmo movimento, no entretanto com admiração de todos não fitou o adversário.

- Capitão - disse ele com voz onde o sarcasmo palpitava -, vê aquela lixiguana na ponta daque galho?

Todos olharam, viram a faca transpor um intervalo de 40 passos e vibrar encravada no centro da abelheira, a qual o mais que tinha era um palmo de diâmetro.

Era a soberania do desprezo.

André rugiu ao novo insulto, e, travando do pistolão na cinta, desfechou-o; o tiro seria mortal se Avençal presto como o galheiro não se inclinasse ... Num salto de rara agilidade coseu-se com o competidor, cingiu-o pela cintura, ergueu-o do chão e fê-lo rojar por terra como um brinco. Pôs-lhe um joelho no peito.

- André, vê? Podia matar-te... Não quero.

- Mata-me, que não perdoarei nunca a morte de meu pai.

- E quem assassinou os meus e a meus irmãos, roubando-lhes suas riquezas? Foi José Capinchos, amigo da casa. Fiz o que devia... Devia ter feito o mesmo em tua família, olho por olho, dente por dente. Não quis... entendeste? Deixa-me, não me procures mais ou então...

- Mata-me - repetia o outro -, venceste, salteador, tens direito... Não te pouparei se me deixas a vida.

- Vai-te, não temo os tigres.

O outro montou a cavalo ralado de raiva. Avençal foi buscar a faca na colméia. O capitão fez-lhe os maiores elogios. Só Moisés resmoneou entre os dentes:

- Aquela gavota. Aquela gavota, que tanto apreciou o cavalheiro de Amaral! - O mulato entendia que, se o irmão poupava André, era por causa de Rosita.

O vaqueano e o caçador, quando chegaram ao acampamento, foram rodeados dos populares, o capitão narrou o combate com todas as particularidades. Produziu hurras e algazarras formidáveis o acontecimento.

A popularidade do moço atingiu mais alguns furos.

João de Deus bebia como um inglês. Dizia ele satisfeito:

- Por Deus! Isto me livra dum peso de cem arrobas. Fui eu quem fez o amigo vaqueano ter a pendenga.

E os martelinhos de vinho se sucediam uns após os outros.