O governo central assustou-se com a tomada da Laguna, viu a ilha de Santa Catarina ameaçada de próxima invasão, como os navios mercantes apresados por um inimigo cuja audácia e valor não tinham limites e chegavam até as fortificações de Tamarim e Ratones.
Resolveu pois acabar com tão precária situação.
Nomeou no intuito o marechal Francisco José de Souza Soares de Andréa comandante das armas da Província invadida, e chefe de uma força naval o capitão-de-mar-e-guerra Frederico Mariath.
No dia 15 de novembro de 1839 entre imperiais e republicanos ia renhir-se porfiada luta, em que ambas as facções tinham de cobrir-se de memorável glória.
Canabarro campava na bateria que defendia o porto. Garibaldi com a esquadrilha em ordem de batalha.
Rompeu o fogo...
Quantas façanhas, quantos atos de bravura e heroismo não ficaram sepultos nesse dia em nuvens de fumo, no fundo das águas e no estrupido da peleja?
Como Canabarro e Garibaldi sorriam jubilosos, sob um céu de metralha e fogo! Leões da guerra, colunas avançadas da liberdade, cederam; mas, quando o exército dizimado por forças superiores constituiu num pugilo de bravos, quando da flotilha se viam apenas fragmentos boiantes sobre as ondas, cederam, é certo, ao número de recursos poderosos, não ao esforço e bizarria. Grandes na vitória e no infortúnio. Grandes na derrota, porque tinham no coração as lágrimas do desespero!
Derrota?! Não... Retirada grotiosa, ressaca de vagalhões que imprimiram o selo de sua pujança onde bateram, fracassando.
Senão, por que não os seguiram aqueles que cantavam os hinos triunfais? Por que os deixaram voltar sem oferecer combate, quando eram senhores da liça?
Razão intuitiva. A natureza do lugar, sem amplo desenvolvimento de fortificações, deslocou-os, não os venceu. O rio-grandense confia mais em seus braços do Briareo e em seus ombros de Atlante do que nos recursos oferecidos pela engenharia militar.
Retirando-se, poucos na verdade, ainda infundiam terror nas hostes contrárias, imobilizavam-nas.
O reduto fora arrasado. As pedras do parapeito atulhavam a berma, ostentando calva a banqueta onde pisavam tantos valentes, onde ainda alguns davam o último arranco de vida pela República.
Mariath varava a barra.
A bandeira tricolor flutuava na haste, crivada de balas, porém, como sempre, medindo altiva a bandeira do Império.
- Colham a bandeira! - bradou Canabarro, rubro de cólera, trêmulo de desesperação... - Coepuxa! Que é impossível estacar mais um momento! A posição vai ser tomada...
E de fato vários destacamentos vinham em direção.
- General, deixe-a - disse o vaqueano -, eu fico, vou dar-lhe uma lição. O chefe o conhecia muito bem para lhe confiar o estandarte, sem susto. Não quis saber mais, abraçou-o.
Tocou-se a retirada.
E partiram tantos heróis ainda com ímpetos de retrocederem, se a voz do chefe ordenasse.
Quantos naquele momento não preferiam ter ficado na arena da batalha, ouvindo o som estridente das cornetas? Quantos não seguiam constrangidos? O contrário, no entretanto, era impossível.
Mas o campeiro onde é que vê impossíveis, ele habituado às intempéries, vencendo dia após dia a natureza selvagem?
Partiram.
Avençal, só, ali se conservava. Por minutos desaparecera na casamata. Quando voltou trazia na mão um morrão aceso. As feições, há tanto contraídas pelos sofrimentos, difundiam-se numa alegria íntima e inefável. Volveu os olhos para o céu e pronunciou:
- Rosita, espera... é um instante.
Os imperiais aproximavam-se.
Ele espalhou um rastilho de pólvora através do terrapleno, da casamata até o mastro em que desfraldava o pavilhão. E sentou-se junto dele num cômoro de ruínas.
Os legalistas galgaram a posição, julgando-a abandonada, com tanta rapidez que nem viera a lembrança de retirar a bandeira. Vinham desprevenidos, porém mal o viram as armas procuraram a pontaria.
Não tiveram tempo.
Avençal bradou:
- Viva a República! - E seu braço abaixou o morrão; o rastilho incendiou e... uma detonação horrenda, nuvens de fumo, espadanas de fogo!
Quando o ar desanuviou, viu-se que o pavilhão da República não costumava render-se, ardia com seus inimigos.
Em frente à barra da Laguna ou do Tubarão demora a ilha dos Lobos. Enquanto o combate seguia as diversas evoluções, ali, sobre um penhasco, um homem contemplava impassível a cena. O fresco do mar açoitava-lhe a fronte e as ondas marulhavam-lhe as plantas, sem demovê-lo.
Tinha a fisionomia carregada de ódio. Parecia o ideal do mau gênio assistindo ao espetáculo da destruição entre os homens.
A rocha que lhe servia de pedestal não era mais imaleável, áspera e dura do que a têmpera de seu caráter.
Viu a explosão.
O lampejo de um pressentimento iluminou-lhe a alma. Sorriu como Caliban ou Mefistófeles! Instilação de fel e veneno!
- Meu pai - exclamou, gesticulando para o céu - estás vingado!
Meia hora depois um cadáver surgiu ao longe. O sangradouro o vomitava ao oceano. Ele, em cima do rochedo como o abutre farejando a preá, estendeu a vista e estorceu-se no acesso de uma gargalhada.
- É ele! É ele! - fremiu.
E arrojou-se ao mar após o corpo do morto...
Este homem era André Capinchos...
Moisés chorava no acampamento.
O caso era virgem, por isso mesmo teve o respeito de todo o exército.
Naquele dia que ia finar, perdera o querido irmão e quase todos os índios, seus fiéis companheiros.
Os guaicanã desapareciam para sempre da Terra. Entravam no domínio da posteridade, como uma tradição. Alguns 20 sobreviviam feridos e mutilados; poucos para representarem sua tribo guerreira.
Mas não era só a face do mulato que rorejava.
Todos que conheciam o vaqueano, ainda que muitos lhe invejassem a morte, o choravam. É que o pranto é sempre o epitáfio da saudade numa ruína onde vicejam flores olentes.
Porto Alegre, 1869.