Veio o Rochinha de S. Paulo, e daí em diante ninguém o tratou senão por Dr. Rochinha, ou, quando menos, Dr. Rocha; mas já agora, para não alterar a linguagem do primeiro capítulo, continuarei a dizer simplesmente o Rochinha, familiaridade tanto mais desculpável, quanto mais a autoriza a própria prima dele.
— Doutor! disse ela. Creio que sim, mas lá para as outras; para mim há de ser sempre o Rochinha.
Veio pois o Rochinha de S. Paulo, diploma na algibeira, saudades no coração.
Oito dias depois encontrava-se com Maria Luísa, casualmente na Rua do Ouvidor, à porta de uma confeitaria; ia com o pai, que o recebeu muito amavelmente, não menos que ela, posto que de outra maneira. O pai chegou a dizer-lhe que todas as semanas, às quintas-feiras, estava em casa.
O pai era negociante, mas não abastado nem próspero. A casa dava-lhe para viver, e não viver mal. Chamava-se Toledo, e contava pouco mais de cinqüenta anos; era viúvo; morava com uma irmã viúva, que lhe servia de mãe à filha. Maria Luísa era o seu encanto, o seu amor, a sua esperança. Havia da parte dele uma espécie de adoração, que entre as pessoas da amizade passara a provérbio e exemplo. Ele tinha para si que o dia em que a filha lhe não desse o beijo da saída era um dia fatal; e não atribuía a outra coisa o menor contratempo que lhe sobreviesse. Qualquer desejo de Maria Luísa era para ele um decreto do céu, que urgia cumprir, custasse o que custasse. Daí vinha que a própria Maria Luísa evitava muita vez falar-lhe de alguma coisa que desejava, desde que a satisfação exigisse da parte do pai um sacrifício qualquer. Porque também ela adorava o pai, e nesse ponto nenhum devia nada ao outro. Ela o acompanhava até a porta da chácara todos os dias, para lhe dar o ósculo da partida; ela o ia esperar para dar o ósculo da chegada.
— Papaizinho, como passou? dizia ela batendo-lhe na face. E, de braço dado, atravessavam toda a chácara, unidos, palreiros, alegres, como dois namorados felizes. Um dia Maria Luísa, em conversa, à sobremesa, com pessoas de fora, manifestou grande curiosidade de ver a Europa. Era pura conversa, sem outro alcance; contudo, não passaram despercebidas ao pai as suas palavras. Três dias depois, Toledo consultou seriamente a filha se queria ir dai a quinze dias para a Europa.
— Para a Europa? perguntou ela um tanto espantada.
— Sim. Vamos?
Não respondeu Maria Luísa imediatamente, tão vacilante se viu entre o desejo secreto e o inesperado da proposta. Como refletisse um pouco, perguntou a si mesma se o pai podia sem sacrifício realizar a viagem, mas, sobretudo, não atinou com a razão esta.
— Para a Europa? repetiu.
— Sim, para a Europa, disse o pai rindo; mete-se a gente no paquete, e desembarca lá. É a coisa mais simples do mundo.
Maria Luísa ia dizer-lhe talvez que sim; mas recordou-se subitamente das palavras que proferira dias antes, e suspeitou que o pai faria apenas um sacrifício pecuniário e pessoal, para o fim de lhe cumprir o desejo. Então abanou a cabeça com um risinho triunfante.
— Não, senhor, deixemo-nos da Europa.
— Não?
— Nem por sombras.
— Mas tu morres por lá ir...
— Não morro, não senhor, tenho vontade de ver a Europa e hei de vê-la algum dia, mas muito mais tarde... muito mais tarde.
— Bem, então vou só, redargüiu o pai com um sorriso.
— Pois vá, disse Maria Luísa erguendo os ombros.
E assim acabou o projeto europeu. Não só a filha percebeu o motivo da proposta do pai, como este compreendeu que esse motivo fora descoberto; nenhum deles, todavia, aludiu ao sentimento secreto do outro.
Toledo recebeu o Rochinha com muita afabilidade, quando este lá foi numa quinta-feira, duas semanas depois do encontro na Rua do Ouvidor. A prima de Rochinha também foi, e a noite passou-se alegremente para todos. A reunião era limitada; os homens jogavam o voltarete, as senhoras conversavam de rendas e vestidos. O Rochinha e mais dois ou três rapazes, não obstante essa regra, preferiam o círculo das damas, no qual, além dos vestidos e rendas, também se falava de outras damas e de outros rapazes. A noite não podia ser mais cheia.
Não gastemos o tempo em episódios miúdos; imitemos o Rochinha, que ao cabo de quatro semanas, preferiu uma declaração franca à multidão de olhares e boas palavras. Com efeito, ele chegara ao estado agudo do amor, a ferida era profunda, e sangrava; urgiu estancá-la e curá-la. Urgia tanto mais fazer-lhe a declaração, quanto que da última vez que esteve com ela, encontrara-a um pouco acanhada e calada, e, à despedida, não teve o mesmo aperto de mão do costume, um certo aperto misterioso, singular, que se não aprende e se repete com muita exatidão e pontualidade, em certos casos de paixão concentrada ou não concentrada. Pois nem esse aperto de mão; a de Maria Luísa parecia-lhe fria e fugidia.
— Que lhe fiz eu? dizia ele consigo, ao retirar-se para casa.
E buscava recordar todas as palavras do último encontro, os gestos, e nada lhe parecia autorizar qualquer suspeita ou ressentimento, que explicasse a súbita frieza de Maria Luísa. Como já então houvesse entrado na confidência dos seus sentimentos à prima, disse-lhe o que se passara, e a prima, que reunia ao desejo de ver casada a amiga, certo pendor às intrigas amorosas, meteu-se a caminho para a casa desta. Não lhe custou muito descobrir a Maria Luísa a secreta razão de sua visita, mas, pela primeira vez, achou a outra reservada.
Você é bem cruel, dizia-lhe rindo; sabe que o pobre rapaz não suspira senão por um ar de sua graça, e trata-o como se fosse o seu maior inimigo.
— Pode ser. Onde é que você comprou esta renda?
— No Godinho. Mas vamos; você acha o Rochinha feio?
— Ao contrário, é um bonito rapaz.
— Bonito, bem educado, inteligente...
— Não sei como é que você ainda gosta desse chapéu tão fora da moda...
— Qual fora da moda!
— O brinco é que ficou muito bonito.
— É uma pérola...
— Pérola este brinco de brilhante?
— Não; falo do Rochinha. É uma verdadeira pérola; você não sabe quem está ali. Vamos lá; creio que não lhe tem ódio...
— Ódio por quê?
— Mas...
Quis a má fortuna do Rochinha que a tia de Maria Luísa viesse ter com ela, de maneira que a prima dele não pôde acabar a pergunta que ia fazer e que era simplesmente esta: — Mas amor? — pergunta decisiva, a que Maria Luísa devia responder, ainda que fosse com o silêncio. Não produzindo esta entrevista o desejado efeito, antes parecendo confirmar os receios do Rochinha, entendeu este que era melhor e mais pronto ir diretamente ao fim, e declarar-lhe ele mesmo o que sentia, solicitando uma resposta franca e definitiva. Foi o que fez na seguinte semana.