O chefe político e o seu eleitor

Seu doutor, eu vim incomodá-lo; mas precisava muito ficar bem com minha consciência.

— Que há?

— Eu não voto no doutor Rui.

— Como você vai votar no Epitácio ?

— Nem num nem noutro.

— Você está ficando indisciplinado; não é mais o correligionário disciplinado de antigamente. Que diabo foi isso?

— Eu não tenho sido companheiro para você?

— Sim senhor. Devo ao doutor todos os obséquios desta vida, pelo que lhe sou muito agradecido. Foi o doutor que abaixo de Deus, salvou a Marocas, minha mulher, sem cobrar nada... Quando foi o enterro do meu filho Dodoca, o doutor me ajudou muito...

— Isso tudo não vem ao caso. Falemos...

— Não; vem sim, doutor! Quero que o senhor não pense que sou mal agradecido. Se estou empregado, devo ao dou­tor e...

— Se você continuasse no partido, podia subir ou nós ar­ranjávamos uma equiparação ou mesmo um aumento de venci­mentos; mas...

— Continuo no partido, doutor...

— Como? Você não vota conosco...

— Mas não voto no outro.

— É o mesmo.

— Não é doutor.

—É sim Felício! Em política, quem não é por mim é contra mim. Você sabe disso não é?

— É e não é. Não estou contra o senhor não senhor! É que me deu uma coisa cá dentro e eu...

— Que foi que deu em você?

— Eu me explico, tanto mais que tenho pensado muito no caso. O senhor quer me ouvir?

— Ouço, mas você não demora muito.

— Não demoro não senhor.

— Conte lá a história.

— Vou contar. Trata-se - não é verdade? - de escolher o homem que vai governar isto tudo. Quero dizer que ele vai governar todos os brasileiros, inclusive eu.

— Daí?

— Espere doutor! Pensei, então, eu cá com os meus botões: vou escolher uma pessoa que deve mandar em mim, na minha mulher, nos meus filhos, na minha casa até - pre­ciso cuidado. Não é doutor?

— Mais ou menos, é, pois há a lei que ...

— Isto de lei é história. Quem governa é ele mesmo...

— Vamos adiante.

— Um homem que vai ter tanto poder sobre mim, sobre os meus e sobre as minhas coisas para ser escolhido por mim mesmo, deve ser meu conhecido velho. Voluntariamente pela minha própria vontade, vou escolher um dono para mim, e sendo assim o meu dever é estar inteirado do sujeito que é - não acha?

— Sim, não há dúvida. Mas você sabe bem quem é o Rui, penso eu.

— Conheço. É um homem muito inteligente...

— A maior glória do Brasil.

— É um grande talento.

— É um gênio.

— Sei de tudo isto doutor. Mas daí não posso concluir que ele possa mandar-me.

— Porque?

— Pode ser caprichoso, implicante ...

— Ora!

— Quer dizer que ele nunca me enxergará, não é?

— Não é bem isso...

— Ele pode não me enxergar, mas um dia enxerga outro por ele, e lá estou eu a braços com um homem de veneta.

— Não digo que ele seja...

— E o Epitácio?

— Esse ouço dizer que também é inteligente, doutor, tem sido muita coisa...

— Mas não é o Rui.

— Sei, doutor. Rui Barbosa não tem igual.

— Mas porque você não vota nele?

— Não voto porque não o conheço intimamente, de perto, como já disse ao senhor. Antigamente...

— Você não pensava assim - não é?

— É verdade; mas, de uns tempos a esta parte, dei em pensar.

— Faz mal. O partido...

— Não falo mal do partido. Estou sempre com ele, mas não posso por meu próprio gosto dar sobre mim tanta força a um homem, de que eu não conheço o gênio muito bem.

— Mas, se é assim, você terá pouco que escolher a não ser, nós colegas e nós amigos de você.

— Entre esses eu não escolho, porque não vejo nenhum que tenha as luzes suficientes; mas tenho outros conhecidos, entre os quais posso procurar a pessoa para me governar, guiar e aconselhar.

— Quem é?

— É o doutor.

— Eu?

— Sim, é o senhor.

— Mas, eu mesmo? Ora...

— É a única pessoa de hoje que vejo nas condições e que conheço. O senhor é do partido, e votando no senhor, não vou contra ele.

— De forma que você...

— Voto no senhor, para presidente da república.

— É voto perdido...

— Não tem nada; mas voto de acordo com o que penso. Parece que sigo o que está no manifesto assinado pelo senhor e outros. "Guiados pela nossa consciência e obedecendo o dever de todo republicano de consultá-la"...

— Chega Felício.

— Não é isso?

— É mas você deve concordar que um eleitor arregimentado tem de obedecer ao chefe.

— Sei, mas isto é quando se trata de um deputado ou senador, mas para presidente, que tem todos os trunfos na mão, a coisa é outra. É o que penso. Demais...

— Você está com teorias estranhas, subversivas...

— Não tenho teoria alguma, doutor. Consultei a minha consciência e a minha gratidão, e voto no senhor.

— Mas... já sou deputado.

— Que tem? Sobe mais um posto, ganha mais...

— Não preciso, já ganho na clínica muito.

— Com o lugar de deputado? Então pra que quis ir para a Câmara?

— Para nada.

— Doutor, eu decididamente não compreendo nada disto. Essa política é mesmo igual aos mistérios dos padres... Passe bem.

O Malho, Rio, 1-4-1919.