Negrinha (4º milheiro)/O collocador de pronomes


ALDROVANDO Cantagallo veio ao mundo em virtude dum erro de grammatica.

Durante sessenta annos de vida terrena pererecou como um perú em cima da grammatica.

E morreu, afinal, victima dum novo erro de grammatica.

Martyr da grammatica, fique este documento da sua vida preposto a pedra angular da sua futura e bem cavada canonização.


Havia em Itaóca um pobre moço que definhava de tedio no fundo dum cartorio de paz. Escrevente. Vinte e tres annos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogeneos e pae duns "Acrosticos" dados á luz no "Itaóquense", com bastante successo.

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou uma zarabatana venenosa de Cupido. Objecto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha do escrevente, então nos dezesete, e a do Carmo, encalhe da familia, vesga, madurota, hysterica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeiras. Esguelára um vereador opposicionista, em plena sessão de camara e desd'ahi transformou-se no tutú da terra. Toda a gente lhe tinha um vago mêdo, mas o amor, que é mais forte do que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados, nem tufos de cabello no nariz.

O escrevente ousou namorar-lhe a filha, apesar da distancia hierarchica que os separava. Namoro á antiga, já se vê, que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na egreja, á missa, troca de olhares, dialogo de flores — o que havia de mais innocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d'Ella, em dias de folga.

Depois, a serenata fatal á esquina, com o

Acorda, donzella...

sapecado a mêdo num velho pinho de emprestimo. Depois, um bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou... Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afóra pontos exclamativos e reticencias:

                      Anjo adorado !
                          Amo-lhe !...
                                           ?...

Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.

Ora, aconteceu que o pae do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de tres dias de sobrecenho carregado, mandou chamar á sua presença o moço, com disfarce de pretexto:— para umas certidõezinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto resabiado, com a pulga atrás da orelha.

Não lhe erravam os presentimentos. O coronel, mal o pilhou portas a dentro, tranca o escriptorio, fecha a carranca e diz:

— A familia Triburtino Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permittirei nunca — nunca, ouviu ? que contra ella se commetta o menor deslise.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho côr de rosa, desdobrou-o:

— E' sua esta peça de flagrante delicto ?

O escrevente, a tremer, balbuciou uma confirmação medrosa.

— Muito bem ! — continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então a minha filha e teve a audacia de o declarar... Pois agora...

O escrevente instinctivamente ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos á janella, sondando uma retirada estrategica.

—... é casar ! — concluiu de imprevisto o vingativo pae.

O escrevente resuscitou. Abriu os olhos e a bocca, num pasmo. Depois, tornando a si, commoveu-se e com lagrimas nos olhos disse, gaguejante:

— Beijo-lhe as mãos, coronel ! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano !... Agora vejo com que injustiça o julgam ahi fóra!...

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões:

— Nada de phrases. moço. vamos ao que serve : declaro-o solennemente noivo de minha filha !

E voltando-se para dentro gritou:

— Do Carmo ! venha abraçar o teu noivo !

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro :

— Laurinha, quer o coronel dizer...

O velho fechou de novo a carranca.

— Sei onde trago o nariz, disse. Vassuncê escreveu este bilhete á Laurinha dizendo que ama-"lhe". Se amasse a ella deveria dizer amo-"te". Dizendo — amo-lhe — declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não póde ser senão a do Carmo. Salvo se declara amor á minha mulher !...

— Oh, coronel...

— ... ou á preta Luzia, cozinheira — escolha !

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lagrima a escorrer rumo á asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragedia. Por fim, o coronel, batendo-lhe no hombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua grammatica matrimonial:

— Os pronomes, como sabe, são tres: da primeira pessoa — quem fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa — a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possivel.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo, "pró fórma", a ponta do avental. Viu tambem sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova, ao alcance do machiavelico pae. Submetteu-se, e abraçou a urucáca, emquanto o velho, estendendo as mãos, dizia theatralmente.

— Deus vos abençôe, meus filhos !


Um mez depois, solennemente, casavam-no com o encalhe, e onze mezes mais tarde vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, conspicuo sabedor da lingua que, durante cincoenta annos a fio, coçou na grammatica a sua incuravel sarna philologica.

Até os dez annos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo proprio, teve o sarampo da praxe, mais a caxumba e a catapora. Mais tarde, no collegio, emquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo — empalamento de moscas e moidellas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel , coisa de ver o desenho que sae—Aldrovando apalpava com emoção erotica a obesa grammatica de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furunculo philologico que o determinaria na vida, para matal-o, afinal.

Deixemol-o, porém, evoluir e tomemol-o quando nos serve, aos 40 annos, já a descer o morro, arcado ao peso da sciencia e combalido de rins. Lá está elle em seu gabinete de trabalho, fossando, á luz dum lampeão, os pronomes de Felinto Elysio. Corcovado, magro, secco, d'oculos de latão no nariz, créca, celibatario impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mez e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo insulso idyllico com as veneraveis constaneiras onde cabeceiam os classicos lusitanos. Versou-os, um por um, com mão diurna e nocturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma sécca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo.

Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da brôa encruada de Fr. Pantaleão de Aveiro. Na edade em que os rapazes correm atrás das raparingas, Aldrovando escabichava belchiores, na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher, o amor — mundo, diabo, carne, eram para elle os alfarrabios freiraticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborrhéa espapaçava os instinctos lerdos, como porco no lameiro.

Em certa época viveu annos a fio acampado em Vieira. Depois, vagamundeou, qual um selvagem nú, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo actual. Despresava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernardim Ribeiro, e se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar "pomos de Hesperides" na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrophes:

— Salta fóra, regionalismo de má sonancia!

A lingua lusa era-lhe um tabú sagrado que attingira á perfeição com Fr. Luiz de Souza, e dahi para cá, salvo lucilações esporadicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

— A ingrezia d'hoje, declamava, está para a Lingua, como está o cadaver em putrefacção para o corpo vivo.

E suspirava, condoido dos nossos destinos:

— Povo sem lingua... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz !...

E não lhe objectassem que a lingua é organismo vivo e que a temos a evoluir na bocca do povo.

— Lingua? Chama você lingua á garabulha bordalenga que estampam periodicos ? Cá está um desses gallicigraphos. Deletreemol-o, ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

— "Teve logar hontem!..." E' lingua esta espurcicia negral ? Oh, meu seraphico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma, estes sarrafaçaes da moxinifada !"

E continuava:

— "... no Trianon..." Por que, Trianon ? Por que este perenne barbarrisar com alienigenos arrevezos? Tão bem ficava — a Bemfica, ou, se querem neologismo de bom cunho — o Logratorio... Tarelos é que são, tarelos !"

E suspirava, compungindo devéras:

— Inutil proseguir. A folha inteira cacográpha-se por este teor. Ai ! onde foram as boas letras d'antanho ? Fez-se perú o niveo cysne. Ninguem attende á lei summa: — Horacio. Impera o desprimor, e o máo gosto vige como suprema regra. A gallica intrujice é maré sem vasante. Quando penetro num livreiro confrange-se-me o coração ante o pelago de operas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrosim, que a ellas se vão as preferencias do vulgacho. Não muito faz vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordica de Octavio Mirbello — "Canhenho duma dama de servir", creio, á... adivinhe ao quê, amigo? A' "Carta de guia" do meu divino Francisco Manoel!...

— Mas a evolução...

— Basta. Conheço ás sobejas a escholastica da época, a "evolução" darwinica, os vocabulos macacos — pithecophonemas que "evolveram", perderam o pêlo e se vestem hoje pela moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que alli daquella costaneira, escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipatica sesquipedalice.


Um biographo, ao molde classico, separaria a vida de Aldrovando em duas phases distinctas: a estatica, em que apenas accumulou sciencia, e a dynamica, em que, transfeito em apostolo, veio a campo, com todas as armas, para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com um memoravel officio ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma:

— "Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito á defensão do idioma prepostos. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimonio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem..."

Os pronomes, ai ! eram elles a tortura permanente do professor Aldrovando. Doia-lhe, como punhalada, vel-os por ahi pre ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagellante, concitando os paes da patria á creação dum Santo Officio grammatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memoria, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais crueis chalaças.

— Quer patibulo para os máos collocadores de pronomes ! Isso seria auto-condemnarmo-nos á morte ! Tinha graça !

Tambem lhe foram á pelle os jornaes, com pilherias soezes. E, depois, o publico. Ninguem alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação nalma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao pulpito dos jornaes . Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos "gallicigraphos de papel e graxa". Transigiu e, breve, desses "pulmões da publica opinião", apostrophou o paiz com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu columnas e columnas de objurgatorias ultra violentas, escriptas no mais estreme vernaculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor mettia os dentes naquelles interminaveis periodos, engrenados á moda de Lucena; e, ao cabo da asperrima campanha, viu que prégara em pleno deserto. Leram-n'o, apenas, a meia duzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda a parte, como notas resinguentas da symphonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu illesa dos flammivomos pelouros de sua colubrina sem raia. E, por fim, os "periodicos" fecharam-lhe a porta no nariz, allegando falta de espaço e mais coisas.

— Espaço não ha para as sãs idéas, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto rescende á podriqueira... Gomorrha ! Sodoma ! Fógos do céo virão um dia alimpar-vos a gafa!... exclamou, prophetico, sacudindo á soleira duma redacção o pó das cambaias botinas de elastico.


Tentou em seguida uma acção mais directa. abrindo consultorio grammatical.

— Têm-nos os physicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatas de toda a especie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a lingoa. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas as moscas vagabundas vinham esvoejar em torno da sciencia que se offerecia na salinha modesta do apostolo. Creatura humana, uma só, siquer, não veiu alli remendar-se philologicamente.

Elle não esmoreceu, todavia:

— Experimentemos processo outro, mais suasorio.

E annunciou a montagem da "Agencia de Collocação de Pronomes e Reparos Estylisticos".

Quem tivesse um autographo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compôr-se com os "affeites" do lidino vernaculo fosse lá, que, sem remuneração nenhuma, nelle far-se-ia obra limpa e escorreita.

Era bôa a idéa, e logo vieram os primeiros originaes necessitados do orthopedia, sonetos a concertar pé de versos, officios ao governo pedindo concessões, cartas de amor. Taes, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando que os autores não mais reconheciam suas proprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar:

— Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memoria em latim...

Aldrovando ergueu os oculos para a testa:

— E traduzi em latim o tal ingranzéo ?

— Em latim ou grego, pois que o não consigo entender...

Aldrovando impertigou-se.

— Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alli, com o alveitar da esquina !...


Pouco durou a Agencia, morta á mingoa de clientes; teimava o povo em permanecer empapado no charfudeiro da corrupção...

O rosario de insuccessos, entretanto, em vez de desalentar, exasperou o apostolo.

— Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me á férula os maráos de páo e corda ? Ir-lhes-ei empós, filal-os-ei pela gorja !... Salta rumor !

E foi-lhes "empós". Andava pelas ruas examinando disticos e taboletas com vicios de lingoa. Descoberta a "asnidade", ia ter com o proprietario, contra elle desfechando os melhores argumentos catechistas. Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma taboleta — "Ferra-se cavallos" — escoicinhava a santa grammatica.

— Amigo, natural a mim me parece que érres, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção !...

O ferreiro poz de lado o malho e entreabriu a bocca.

— Mas da boa sombra do teu focinho espero que ouvidos me darás. Naquella taboa um dislate existe que sériamente á lingua lusa offende. Venho pedir-te em nome do asseio grammatical, que o expunjas.

— ? ? ?

— Que reformes a taboleta, digo.

— Reformar a taboleta ? Uma taboleta nova, com licença paga ? Estará acaso rachada ?

— Physicamente, não. A racha é na syntaxe. Fogem alli os dizeres á sã grammaticalidade.

— Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz...

— Digo que está a fórma verbal com eiva grave. O "ferra-se" tem que cair no plural, por que a fórma é passiva e o sujeito é "cavallos".

O ferreiro abriu o resto da bocca.

— O sujeito sendo "cavallos" a fórma verbal é "ferram-se" — "Ferram-se cavallos"!

— Ahn, respondeu o ferreiro, começo agora a comprehender. Diz v. s. que...

— ... que "Ferra-se cavallos" é um solecismo horrendo e o certo é "Ferram-se cavallos".

— V. s. me perdôe, mas o sujeito que ferra os cavallos sou eu, e não sou plural. Aquelle "se" da taboleta refere-se aqui a este seu criado. E' como quem diz: Serafim ferra cavallos — Ferra Serafim cavallos. Para economisar tinta e taboa abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavallos. isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueo os olhos para o céo e suspirou.

— Ferras cavallos e bem merecias que te fizessem elles o mesmo !... Mas não discutamos. Offereço-te dez mil réis pela admissão dum "m" alli...

— Se v. s. paga...

Bem empregado dinheiro ! A taboleta surgiu no dia seguinte desolecismada, e, de tanto gosto, o professor rodas as tardes passava por lá, a gosar o enlevo da primeira victoria.

Por mal seu não durou muito o regalo. Coincidindo a enthronização do "m" com máos negocios na officina, o supersticioso ferreiro attribuiu a macaca á alteração dos dizeres, e lá raspou o "m" do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a sua victoria borrada ! Entrou, furioso, pela officina a dentro, e mascava já uma apostrophe de fulminar, quando o ferreiro, ás brutas, lhe barrou o passo:

— Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na lingoa, sou eu. E é ir andando que se não ferramol-o já com um bom par de ferros inglezes !...

O martyr da lingua metteu a grammatica entre as pernas e muscou-se. E parando na rua, com olhos compadecidos daquella honrada estupidez,

— "Sancta simplicitas !" murmurou, suspirando. E, triste como se lhe morresse a mãe, retornou á casa em busca das consolações seraphicas de Fr. Heitor Pinto. Mas lá, entre as costaneiras centenarias, não mais reteve as lagrimas, chorou.


O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desvial-os do ruim caminho. E elle, velho, com o rim a resingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

— Não hei de acabar, porém, antes de dar a prélo um grande livro, onde compendie a muita sciencia que hei accumulado.

E emprehendeu a realização de um vastissimo programma de estudos philologicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a collocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorrha. Fel-o, e foi feliz nesse preiodo de vida em que, alheio ao mundo, todo se concentrou, dia e noite, na obra magnifica. Saiu trabuco volumoso, que daria tres tomos, de 500 paginas cada um, corpo miudo. Mas que proventos não adviriam para a lusitanidade ! Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de bôa vontade salvos da gafaria... O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez... Maravilhosa coisa!

Prompto o primeiro tomo — "Do pronome "se" — annunciou a obra pelos jornaes, ficando á espera da chusma de editores que viriam disputal-a á sua porta. E por uns dias o apostolo sonhou as delicias da grande victoria literaria accrescida de gordos proventos pecuniosos.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autoraes, que cederia por cincoenta, generoso que era. E cincoenta contos para um velho celibatario como elle, sem familia nem vicios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em emprestimos hypothecarios sempre eram seus quinhentos mil réis por mez de renda, a pingar pelo resto da vida numa gavetinha onde até então nunca entrára pellega maior de duzentos. Servia, servia !... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos, de ouvido alerta, preparando phrases para receber o editor que vinha vindo...

Que vinha vindo, mas não veio, ai!... As semanas se passaram e nenhum representante dessa miseravel classe de judeus surgiu a chatinar o maravilhoso livro.

— Não me vêm a mim ? disse Aldrovando. Salta rumor! Pois me vou a elles!...

E saiu, em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente ! Nenhum lhe quiz o livro em condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo: "não é vendavel", ou: "porque não faz antes uma cartilha infantil approvada pelo governo?" Aldrovando, com a morte nalma e o rim dia a dia mais derrancado, reteseou-se nas ultimas resisteincias.

— Fal-a-ei imprimir á minha custa ! Ah, amigos ! Acceito o cartel ! Sei pelejar com todas as armas e irei até o fim. Bofé !...

Para lutar havia mister de dinheiro e bem pouco do vilissimo metal possuia na arca do alquebrado Aldrovando. Não importa ! Faria dinheiro, venderia moveis, imitaria Bernardo de Pallissy, e não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorrha sob o peso da sua sciencia impresso. Editaria, elle mesmo, um por um, todos volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse periodo de vida alternando revisão de provas com padecimento de dores renaes. Venceu. O livro compoz-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luiz de Souza.

"A' memoria d'aquelle que me sabe as dores.

O autor."


Mas não quiz o destino que colhesse o já tremulo Aldrovando os fructos da sua obra. Filho dum pronome improprio, a má collocação d'outro pronome cortar-lhe-ia o fio da vida. Mui correctamente escrevera elle na dedicatoria "... d'aquelle que me sabe..." e nem poderia escrever d'outro modo um tão conspicuo collocador de pronomes. Máos fados intervieram, porém—até os fados conspiram contra a lingua ! — e por artimanha do diabo que os rege, empastellou-se na officina essa phrase. Vae o typographo e recompõe-na a seu modo... "d'aquelle que sabe-me as dores..." E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Prompta a obra e paga, ia Aldrovando recebel-a naquelle dia. Que gloria ! Construira finalmente, o pedestal de sua propria immortalidade, ao lado direito dos summos cultores da lingua.

A grande idéa do livro, exposta no capitulo X — Do methodo automatico de bem collocar os pronomes — engenhosa applicação duma regra mirifica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com grammatica, operaria como o "914" da syntaxe, limpando a lingua da avariose produzida pelo espirocheta do pronomococus.

A excellencia dessa regra estava em possuir equivalente chimicos de uso na pharmacopéa humana, de modo que um bom laboratorio, com a maior facilidade, reduzil-a-ia a ampolas para injeções hypodermicas ou a pilular, pós ou poções para uso interno.

E quem se injectasse ou engulisse uma pilula do futuro PRONOMINOL CANTAGALLO curar-se-ia para sempre do vicio, collocando os pronomes instinctivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para os casos agudos de pronomorrhéa aguda, evidentemente incuravel, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 3, onde entrava a estrychnina em dose sufficiente para libertar o mundo do infame sujeito.

Que gloria ! Aldrovando prelibava essas delicias todas quando lhe entrou pela casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutos de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos , em rumas que lá se iam, e confusa a faina, pediram:

— Me dá um mata-bicho, patrão!... Aldrovando severisou o semblante e tomando um exemplar da sua obra offereceu-o ao "doente":

— Toma lá. O máo bicho que tens no sangue morrerá asinha ás mãos deste vermifugo. Recommendo-te a leitura do capitulo terceiro.

O carroceiro não se fez rogar, e sahiu com o livro dizendo ao companheiro:

— Isto no Gazeau sempre nos rende cinco tostões. Já serve !...

Mal sairam, Aldrovando abancou-se á velha mesinha de trabalho e deu começo á tarefa de lançar dedicatorias num certo numero de exemplares destinados á critica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Ruy Barbosa, quando seus olhos deram com a horrenda cinca:


"daquelle QUE SABE-ME as dores".


— Deus do céo! Será possivel?

Era possivel. Era facto. Naquelle, como, em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatoria a Fr. Luiz de Souza, o horripilantissimo — Que SABE-ME...


Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, e em todo o rosto uma estranha marca de dôr — dôr grammatical inda não descripta nos livros de pathologia — permaneceu immovel uns momentos, trnasformado, como a mulher de Loth, numa estatua de sal, — sal-amargo, pois que a amargura attingira nelle sua expressão suprema.

Depois, empallideceu. Levou as mãos ao abdomen e estorceu-se nas garras de repentina e violentissima dôr.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza, murmurando:

— "Luiz ! Luiz ! Lamma Sabachtani ? !"

E morreu. De nó na tripa, dizem uns. De prolapso do utero, opina Toledo Malta. Não importa o nome exacto da causa-mortis. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da grammatica, o martyr numero um da collocação dos pronomes.

Paz á sua alma.







_______________

NOTA. — Do espolio de Aldrovando Cantagallo faziam parte numerosos originaes de obras ineditas, entre as quaes citaremos:

O ACCENTO CIRCUNFLEXO — 3 volumes.

A VIRGULA NO HEBRAICO — 5 volumes.

PSYCHOLOGIA DO TIL — 2 volumes.

A CRASE — 10 volumes.

Pesavam todas, por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidas a tres tostões o kilo, 18.000 réis.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.

Todas as obras publicadas antes de 1.º de janeiro de 1929, independentemente do país de origem, se encontram em domínio público.


A informação acima será válida apenas para usos nos Estados Unidos — o que inclui a disponibilização no Wikisource. (detalhes)

Utilize esta marcação apenas se não for possível apresentar outro raciocínio para a manutenção da obra. (mais...)