Sob esta inscrição, num opúsculo dado a lume pelos prelos de Nova York, em março do ano corrente, um publicista hispano-americano, o Sr. César Zumeta, levanta a sinistra questão, de que mais de uma vez temos dado rebate nestas colunas, e cuja iminência ensombra o horizonte, neste hemisfério, aos povos latinos. “Periga a independência das repúblicas da América Intertropical?” pergunta ele. “Ominosos presságios o anunciam, e não há indício de que os povos ameaçados se aprestem, para conjurar a catástrofe.”

Os povos ameaçados! Quantas vezes, a julgá-los pelo nosso, não nos sentimos, com o coração pertransido, obrigados, no fundo d’alma revoltada pelas nossas misérias, pelas nossas ignorâncias, pelas nossas cegueiras, a reconhecê-los dignos da calamidade, que lhes impende? Não há muito que o governo brasileiro apelava, no porto da metrópole, das lutas do nosso sangue dividido contra o nosso sangue para a intervenção perigosa dos Estados Unidos. Não há muito que se decantava na doutrina de Monroe a salvação da nossa independência. Não há muito que, numa das nossas praças, se tentava erigir uma estátua ao inventor estrangeiro desse lema falaz, e que um livro feito de ciência, verdade e patriotismo, como aquele em que o Sr. Eduardo Prado espelhava a Ilusão Americana, era maldito, proscrito e confiscado como uma blasfêmia, um sacrilégio e uma traição.

Entretanto, um pouco do bom senso mais vulgar teria bastado, para não esquecermos quão caro sai sempre às famílias dilaceradas a paz obtida à custa da força em mãos estranhas, um pouco de reflexão política, para advertir na facilidade, com que, para os estados fracos, se converte em tutela a intrusão doméstica dos poderosos, um pouco de história, para saber que a doutrina de Monroe no uso diplomático dos Estados Unidos, tivera, em todos os tempos, “um caráter exclusivamente norte-americano”, que a face por ela apresentada ao resto da América era puramente “uma limitação da soberania das outras repúblicas”, que a democracia de Washington nunca irmanara a sua causa à nossa, e que, cerrando, por aquela fórmula memorável, o continente americano à cobiça européia não fizera mais do que o reservar aos empreendimentos futuros da sua.

Foi a política de Canning que ergueu a muralha protetora entre a emancipação da América e a Santa Aliança. Daí o benefício comum a todo o continente, a que ficou associado o nome do célebre presidente dos Estados Unidos. Quando, porém, a consciência da sua força os tranqüilizou contra qualquer hipótese de pretensões ultramarinas antagônicas aos seus interesses no seu próprio solo, vendo que podiam, em face da Europa indiferente, levar a guerra e a ruína ao seio de uma das nacionalidades, cuja preservação tamanho papel representou sempre no equilíbrio europeu, “substituíram o critério democrático americano pelo critério monárquico” do velho mundo, contra cujas ambições tinham arvorado em princípio de direito internacional a declaração monroína.

A mesma nação, que, pela conveniência de as coibir, repudiara, no primeiro quartel deste século, a pretensa legitimidade do direito de conquistar, acaba de invocar, em proveito seu, esse direito, declarando, em Manilha e Santiago, possuir, a esse título, as Filipinas, ao mesmo passo que, sob a forma de anexação, ou protetorado, se apodera de Cuba. Com razão, pois, diz o autor do opúsculo: “Não se toma a sério a lei das nações, senão entre as potências cujas forças se equilibram; e, como o só direito que não prescreve, é o da força, os tratadistas, em definitiva, universalmente reconhecidos são Armstrong, Bange e Krupp.”

O uso, que do seu triunfo contra a Espanha nas hostilidades do ano passado, fez o governo vencedor, inscrevendo-se francamente entre as nações retalhadoras do globo, e prenant son bien où il le trouve, indiferentemente, em terras do continente novo, ou nas do velho, acabou com a derradeira aparência de seriedade ao veto internacional de Monroe, e reduziu a eventualidade prática da renascença das aspirações européias nas duas Américas a uma questão dos meios de resistência, de que dispuserem as suas nacionalidades, ou, se estas se não puderem defender a si mesmas, de um ajuste entre os Estados Unidos e os pretendentes de além-mar.

Nesta situação, “o resto da América vem a ficar à mercê das forças complexas e múltiplas, que põe em jogo a nova ordem de coisas”. Repartido já o mais da superfície partilhável do globo “volvem-se os olhos ávidos para a posse da América, afligida, segundo Mulhall, por terremotos e revoluções; e a diplomacia européia solicitará necessariamente a anulação, ou modificação da doutrina Monroe e a combinação com os Estados Unidos de um modus vivendi adaptável à política imperialista da Casa Branca. Versarão essas negociações, com o seu séquito de partilhas territoriais, sobre o domínio da América tropical, dos seus canais marítimos, das suas grandes vias fluviais, das selvas quase virgens, das suas ba­cias hidrográficas.” O perigo é quase extremo, e infelizmente “a hora crítica da nossa existência nacional nos colhe desapercebidos para a defesa”.

Haverá coração, na América Latina, onde não repercuta esse grito?