Parece que há, no fundo inclemente e duro do caráter humano, detritos perpetuamente renováveis, que se deslocam, mas não se extinguem nunca, e, dissimulados sob as convenções sucessivas em que se traduz a ordem social, variam ao infinito nos derivativos, necessitando, porém, sempre de alguns, por onde irrompam e desafoguem na primitiva rudeza. Quando uma vez, ao impulso desse trabalho visceral, o costume rasga na tênue crosta da civilização uma dessas fisgas, tão cedo o borbotão não lhe perderá o rumo; e então, já não há nada que o coíba: nem a inocência, nem a fraqueza, nem o amor, nem a arte nas suas influências mais sedativas. Polidez, inteligência, generosidade, tudo se esvai na aluvião do elemento rebelde, a cuja passagem as qualidades menos simpáticas da nossa natureza lhe acodem à tona em sua mais íntima grosseiria. Nas assembléias numerosas principalmente é que se amiúdam esses eclipses da bondade, da educação e do gosto. O homem, produto da cultura, desapareceu. Resta o número, a massa, o peso dos instintos aglomerados, rolando inconscientemente para a sua satisfação opressiva e brutal.
Não falemos nos ciclones da rua, onde muitas vezes o turbilhão se faz da escória das paixões plebéias, de resíduos insalubres e rasteiros. É noutros meios que essas transfigurações odiosas exibem mais tipicamente a sua singularidade. Na turba, agitada por uma tromba de cólera, reina a cegueira dos oceanos desencadeados. Mas aqui estamos num recinto consagrado à flor do espírito e da graça. Como numa corbelha imensa, em camadas superpostas de flores, sorri toda uma sociedade inumerável de rosas, de violetas, de carbúnculos, à luz quase meridiana da eletricidade. Desses corimbos de cabeças negras e loiras, dessas constelações de olhares, desse maravilhoso ramalhete de sorrisos orvalhados, desses festões de espáduas, colos, seios e leques ondulantes se espalha um gorjeio, uma fragrância, uma doçura de alvorada, onde todas as asperezas se diluem, e os mais obtusos, os mais fossilizados, os mais revessos absorvem um ambiente de êxtase, ou, pelo menos, admiração, civilidade e respeito. Deixar cair ali uma palavra menos fina, deixar ouvir ali um movimento menos delicado, seria como nodoar aqueles vestidos, marear aquelas jóias, destoucar aqueles cabelos, esquecer que se está num salão entre senhoras, numa galeria de telas vivas, num círculo eminentemente raro, elegante e sensitivo.
A música vai entornar a sua magia naquela atmosfera de templo da beleza. Desse feitiço dizem que já moveu as pedras, mas que, hoje mesmo, na decadência do seu poder, amansa feras, e ensina a bailar as serpentes. Ainda não estremeceram os violinos, ainda não rugiram os contrabaixos, ainda não modularam as frautas, ainda os bronzes não ressoaram, ainda não gemeram as harpas, ainda a vaga cantante aguarda, represada, o aceno magistral, e já a imensidade do nume enche o recinto, cativa as atenções, e assoberba as almas. Alguns momentos mais, e a nota alada entra a roçar as cordas, sussurra a inspiração nos arcos, muge nos atabales a torrente próxima da harmonia, e do marulho encantado, como Afrodite das ondas alvejantes, a voz do homem, florescência misteriosa do poema, eleva a ressonância da sua coroa em arrulhos e lágrimas, soluços e bramidos, arrojos e carícias, expressão indefinível do universo das nossas impressões no instrumento sobre todos divino entre os instrumentos humanos. Mas de improviso, como se um tropel de Pégasos insurgidos contra as Musas atravessasse, de freio nos dentes, a majestade do ritmo, o edifício restruge, atroa o pavimento, a melodia soçobra entre os estampidos, e o canto esmorece nos lábios dos atores. É a vaia! A vaia, a manga rechinante e bramidora, a orquestra do alarido, a lei de Lynch no território da cena, a potência do assovio, da pulha e do tacão. Quando ela meneia o seu cetro de chalaça, e decreta os seus caprichos a bengaladas no assoalho, a batuta passou-lhe para as mãos, cada berrador é um maestro, e o auditório inteiro tem de curvar-se à ditadura dos forts en gueule.
Aí está de que modo a justiça lírica executa as suas sentenças. Custa realmente a entender que a melomania saiba acertar com o jeito de tão desafinadas vinganças. Mas, como quer que seja, as incorreções da solfa em todos os graus vão tendo assim a mesma errata no tribunal definitivo da surriada. Muitas vezes não será senão uma infelicidade momentânea, que um momento de indulgência bastaria a reparar. É, porventura, uma tímida mulher. Adoeceu talvez, ou quebrantou-a a estréia. Mérito não lhe faleceria; mas passageiramente a traiu a comoção. Por ela militava o sexo, a fraqueza, o abandono, o pranto. Sozinha e indefesa, um leve movimento de simpatia nos seus juízes bem pode ser que a salvasse. Mas os Apolos de belveder da cimalha estariam desonrados, se transigissem com essas fragilidades. Eles é que são o público. O teatro são eles. Tudo o mais, desde a platéia e as cadeiras, pelas varandas e os camarotes acima até à última ordem, são apenas os degraus do trono do paraíso, onde os mortais cá debaixo vão esquadrinhar com a vista os sinais do contentamento dos deuses.
Ora deveras que muito atrevidos estamos sendo em falar menos reverentemente de tão alta supremacia. Mas que remédio, se até hoje ainda nos não pudemos convencer do direito da pateada?
Anacrônica e destestável tradição de selvagismo intelectual, vai filiar-se a épocas, já bem longínquas, em que o artista, servo subalterno do povoléu, ainda se não enobrecera com a sagração da sua dignidade. Hoje que ele recebe a corte dos soberanos, e faz pagar em chuva de oiro os acentos da sua voz, o os sublime da criatura humana já se não pode ver condenado a estafermar nas tábuas do palco, tragando passivamente, à luz da ribalta, os cobardes insultos da multidão. E, se esse exercício irresponsável e descomposto da força tem por alvo a debilidade de um sexo recomendado pela natureza à nossa proteção, custa a crer que tão assinalada baixeza não se envergonhe de afrontar o clarão das gambiarras.
Boileau provavelmente não diria hoje que le droit de siffler
C’est un droit qu’à la porte on achète, en entrant.
O direito de apupar não se concilia com o direito de ouvir. Por uma exígua minoria, que se não quer descartar do primeiro, temos a mais vasta maioria, a quem não é menos caro o segundo. E, como este se resolve numa faculdade inofensiva, enquanto aquele constitui um privilégio malfazejo e violento, claro está que um há de ser eliminado pelo outro. Voltem as corrimaças a acabar nos recreios dos colégios, nos pátios das academias, se os moços da transição para o século vinte sentem outra vez delícias em renovar o martírio dos caloiros decantado na gaita de macarrônea escolar:
Namque solent novatorum rasgare baetas,
Sopaposque dare, unhis arrancareque barbas,
Inque suis caris cuspire deinde: novatis
Siqua sit a pobris res impolitica, murri,
Et barretadae cum pontapedibus ipsis.
Fervent (heu mihi!); nam praeter pagare patentem
Illis, et rijam nobis sacare tolinan,
Nos certe faciunt, plusquam pimenta, miudos
Nemo potest demum tantas tolerare matracas.
Mas no santuário de Mozart, de Mayerbeer, de Wagner não estruja a vozeria, não chocalhe a pilhéria deslavada. Cantem os maus intérpretes para o auditório gelado, ou as bancadas ermas, e estarão fulminados os profanadores da inspiração, os parasitas da arte. Se se tem de empunhar o açoite contra os vendilhões, recaia a expiação justiçadora na algibeira dos empresários e sejam eles os amarrados ao peloirinho das iras da clientela iludida. Mas isso, quando a impressão reprovadora for geral. Porque o critério do teatro não se refugiou nas suas águas-furtadas. Abaixo delas está quase inteiro o público, a freguesia liberal, cujas contribuições alimentam as companhias, e a cujas assinaturas lhes devemos a vinda. Está, com ele, toda a parte feminina da casa, a sua parte mais bela, mais vibrátil, mais influente, com todos os direitos do principado sobre a outra, ainda que abandonados entre nós pela extravagância de um costume, que coagula o entusiasmo entre as luvas brancas das nossas damas. E toda essa jerarquia do gosto, do luxo, da formosura não se distribui ali, unicamente para adornar o sólio à realeza das torrinhas.