Aprovou o Senado, há quatro dias, em primeira discussão, o projeto do divórcio. Noticiando esse fato lamentável, dissemos que ele não correspondia à opinião daquela câmara. O nosso Naquet mesmo confessou de plano a sua certeza dos maus fados, que ali aguardam o inocente, batizado pelo seu ilustre autor em nome da Convenção Francesa, nossa “mãe espiritual”. Não é mistério para quem freqüenta aquela casa que os votos ali se definirão daqui a pouco em sentido inverso ao exprimido no escrutínio do 1º do corrente. Este primeiro resultado não passa de uma demonstração de complacência, que se explica pelos hábitos desse ramo do Congresso, aliás no caso mal invocados. Na primeira discussão, que se reputa de mero expediente, é de praxe habitual o voto aprobativo, ainda nas matérias a que se sabe decididamente oposto o sentir daquela assembléia. Não se generalizou, porém, assim esse uso, que, sistematizado por este modo, inutiliza aquela fase do processo legislativo, e logicamente deveria levar a aboli-la por desnecessária, senão porque, em regra, nesse período inicial da elaboração dos projetos não há debate. A primeira discussão não discute: é uma formalidade silenciosa, terminada simbolicamente pelo sufrágio mudo. E então era de justiça que, esperando-se o parecer das comissões durante o intervalo da primeira discussão para a segunda, só nesta se pronunciasse, depois de ouvir as partes, a primeira sentença dos legisladores.
Mas, na hipótese, não havia, para essa aparente homenagem a uma idéia, que o Senado não adota, e a nação abomina, o motivo, que autoriza esses estilos de tolerância e cortesia. Não o havia, porque na primeira discussão, desta vez, a tribuna derramara a sua luz. A novidade, que já o não era para o Senado, onde por larga maioria fora condenada uma vez, tinha tido o seu plenário, com audiência das duas opiniões opostas. O projetista da reforma falara em seu prol três vezes, ouvindo-se, por outro lado, contra ela dois discursos. Estavam, portanto, satisfeitas, para com a idéia e o seu introdutor, as tradições de eqüidade e polidez, que o costume transformou em lei naquele recinto. O que se deu, pois, foi um rasgo de condescendência, ao qual não favorecia o apoio das razões, que no comum dos casos a legitima. E não nos parece que fosse justo, nem prudente, render esse preito de consideração, no Brasil, a uma tentativa, que, aferida pelos sentimentos do país, seu estado social, sua consciência moral e religiosa, não traduz mais que uma excentricidade bem caracterizada pelo próprio autor do projeto, quando, no Senado, comparou a sua situação solitária à de Milton, advogando o divórcio, na Inglaterra, dois séculos antes que ela o viesse admitir.
Por nossa parte não nos incomodaria o fato, que antes nos traz a vantagem de podermos ventilar, nestas colunas, a questão a todos os aspectos, evidenciando a extravagância, a maleficência, o exotismo da imitação, que, há três anos, bate com insistência pertinaz à porta das duas câmaras republicanas. Sentimo-nos felizes em ter, graças a esta circunstância, ensejo de contribuir com alguns elementos persuasivos, para fortalecer no espírito dos nossos conterrâneos a repugnância a uma instituição, que entre nós com pouco mais conta de admiradores que um estreitíssimo grupo de interessados na inovação e alguns homens de letras, cuja cultura abstrata confunde o Brasil com a França, a Alemanha e os Estados Unidos.
Mas os propagandistas da mercadoria refugada pela cristandade brasileira não perderão a oportunidade, que lhes ministra o efêmero triunfo, de registrar no fato um sintoma animador para as suas aspirações, um incentivo à reprodução ânua destas acometidas “à maior, à mais antiga, à mais universal de todas as instituições sociais”, na frase de Gladstone, a grande instituição do casamento. Dir-se-á, quando tivermos rechaçado o assalto, que foram precisas duas batalhas sucessivas, para o repelir. Colher-se-á daí que não é tamanha, como se presumiria, e se inculca, a hostilidade, entre os mandatários do povo, à revolução planejada nesse tentâmen. Tanto mais vantajosamente se jogará com a inferência, quanto vem do Senado o argumento, e com ele raciocina. E destarte se dirá menos impenetrável do que se suporia a uma temeridade tamanha como a do divórcio entre nós o ramo mais conservador, mais prudente, mais reflexivo da legislatura. Continuando a discorrer, enfim, sobre estas premissas, se concluirá que os divorcistas estão menos longe da vitória do que os seus antagonistas pretendem, e que alguns anos mais de persistência nesta reivindicação subversiva da felicidade dos nossos lares bastarão, para nos inscrever, macaqueadores satisfeitos do protestantismo germânico e da impiedade francesa, no rol dos povos civilizados pela poligamia ocidental.
Aqui está por que deploramos que o Senado brasileiro transigisse, neste assunto, com uma pragmática, de cuja aplicação o eximia a especialidade do caso, em vez de assumir imediatamente a responsabilidade de sua opinião, e deixar manifesta logo no primeiro encontro a fraqueza da minoria, a cujo erro concedeu honras imerecidas.
Ou muito nos enganamos, ou na indulgência dos senadores adversos ao divórcio, que o obsequiaram com a momentânea maioria daquela sessão, transparece claramente uma dessas debilidades, que têm sido, especialmente entre os latinos, a desgraça das opiniões moderadas e a fortuna das radicais. Gabba, a propósito da atitude recolhida e modesta dos antigos divorcistas na Itália, notava precisamente a incongruência e os perigos dessa timidez. “Quantos personagens estimabilíssimos, entre deputados e senadores”, escrevia ele, “inimigos do divórcio, e por mim solicitados a fazerem para logo profissão pública da sua fé, não têm andado a se evadir, mendigando pretextos, e reservando-se, ora para o debate na câmara baixa, quando terão contra si toda a coorte ministerial, ora para o da câmara alta, já prejudicada a questão de modo bem dificilmente reparável por uma deliberação da outra!”
Neste receio de parecermos atrasados pela fidelidade às coisas antigas, acaba a gente por se envergonhar da língua, da religião, da história, da nacionalidade e do siso comum. Nem tanto obedecer ao cativeiro da moda, que nos seduza a esdruxularia dos incroyables do Diretório, renascente nos arremedos gálicos da teoria do amor fácil, e nos sintamos jarretas, por vestir, em matéria de moral doméstica, ao gosto dos espíritos mais livres, desde Heine a Bentham e Hegel, desde Augusto Comte a Proudhon e a Gladstone. Pelo que nos toca, muito à nossa vontade nos sentimos nesta roda, para erguer a cabeça com o desembaraço do bom-senso, dizendo como Lutero, que não cheirava a sacristia: “Ego quidem detestor divortium”.