Graças à proteção de Mendes, de quem mestre Gregório dependia como todo o usurário dos homens dinheirosos, a existência de Paulo Maurício viu-se transformada de repente; entre os espinhos de sua jornada laboriosa brotam algumas flores peregrinas.

O filho do fazendeiro forçara o poeta a receber um ou outro mimo das mãos do pai, e ele próprio rara vez deixava de visitar, depois da aula, o modesto aposento da rua Misericórdia.

Embalado por tão inesperadas carícias, a alma do poeta, contrária à dos sibaritas, agitou no ar chamejante da mocidade as suas asas diáfanas, e o talento de Paulo Maurício com mais ânsia entregou-se às conquistas da inspiração e do futuro. O poema limado e concluído esperava apenas a hora da publicidade, esse mar tormentoso em que, segundo una frase célebre, navegam quase sempre sem perigo os batéis e soçobram as grandes esquadras.

O filho de Mendes surpreendeu uma noite Paulo Maurício na leitura do seu amado manuscrito. O poeta, à vista do amigo, ocultou o livro.

— Tens medo de que eu te roube algum pensamento?

— Que idéia!

— Sorriram os dois e saíram braço aqui, braço acolá, com direção à praça da constituição. O cão seguia-os como uma sombra.

Havia festa na cidade essa noite; uma festa nacional. A praça da constituição, toda embandeirada e iluminada, mal continha a multidão que a atravessava de lado a lado.

— Sabes, Paulo, que eu chego a invejar a sorte deste quadrúpede que nos acompanha?

— Explica-te!

— Decerto. É o teu único confidente, parece-me. Para mim tens segredos, caro mio!

Paulo Maurício contemplou lentamente o companheiro:

— Um dia será divulgado esse segredo.

— De forma que só no supradito dia é que este teu humilíssimo servo entrará na confidência geral?

— Olha, Eduardo. Eu sou como um desgraçado joalheiro cuias mãos tímidas e assustadas gastam noites, meses e anos na confecção de um tesouro, destinado a fazê-lo rico ou a abismá-lo de todo na miséria. Enquanto não estiver completamente terminada a obra, o silêncio e o mistério devem cercá-la como sentinelas constantes. Perdoa a perífrase e admira a estátua do primeiro imperador.

Discutiram e conversaram sobre mil coisas ainda. As aspirações da mocidade e os sonhos dessa fulgurante quadra da vida voavam pousando sobre as duas esperançosas almas, como um bando de pombas no topo de uma palmeira. Às dez horas da noite o poeta quis voltar à casa. Eduardo Mendes conseguiu demorá-lo mais tempo, e, apesar de inúmeras negativas da parte de Paulo Maurício, entraram os dois num café.

— É preciso habituar-te um pouco à vida, meu guaicuru — observou, rindo, o filho do fazendeiro.

O licor produz uma série de indiscrições e confidências, que fora ocioso catalogar aqui. À meia-noite, já Eduardo Mendes conhecia o título e o assunto do poema de Paulo Maurício.

— É o tesouro do joalheiro — disse o poeta. — Se eu o perdesse, morreria!

Iam a sair do café quando ouviram badaladas fúnebres em várias freguesias e algumas pessoas do povo a correrem azafamadas.

— Oh! diabo! — exclamou o filho do fazendeiro; é fogo!

Os dois amigos foram instintivamente conduzidos na mole sussurrante, que o mesmo pensamento atraía.

Os bombeiros corriam arrastando as pesadas máquinas, cujas rodas reboavam como um agouro pelas calçadas e ruas. Ao longe um clarão sinistro avermelhava o horizonte.

— Tens medo? — perguntou Eduardo Mendes graciosamente.

— Por quê?

— Senti teu braço estremecer.

O cão, perdido entre o povo, deu um arranco ouvindo o poeta chamá-lo, e não os deixou mais, acelerando a corrida um pouco febril. Por vezes o animal estacava de súbito e espreitava o horizonte aclarado pelo incêndio.

Próximos à rua da Misericórdia, Paulo Maurício e Eduardo Mendes foram forçados a diminuir os passos. O povo engrossava, e os gritos dos bombeiros, o estalido do incêndio, o próprio calor do fogo, não punha mais em dúvida o lugar do desastre.

— É na minha rua! — gritou Paulo Maurício, e arrastando o amigo cortou as ondas tumultuosas do povo. Um cordão de policiais e de curiosos circulava a casa de mestre Gregório. Era lá o incêncio. As labaredas enroscavam-se pelas janelas, as faíscas subiam vertiginosamente, enovelando-se no ar como um repuxo sibilante; desabavam com estrondo as paredes, e a água das bombas mal podia cortar aquela muralha rubra e vaporenta. Paulo Maurício, lívido, ofegante, alucinado, quis arremessar-se ao fogo, arrancando-se dos braços de Eduardo Mendes.

— Paulo Maurício!

— Deixa-me pelo amor de Deus! — bradou o poeta estendendo as mãos para as chamas convulsivas. — Não vês que eu perco ali a minha felicidade, o meu sangue, a minha glória?

E desprendendo-se do amigo lançou-se à porta da casa. Os policiais impediram-no a custo.

O poeta quase exânime, com os dedos cerrados entre os cabelos úmidos, foi cercado pelo povo e sentiu-se preso entre as mãos nervosas de Eduardo Mendes.

Nesse momento fez-se um vácuo nas chamas; a onda rubra entreabriu-se de súbito, e um cão, um cão com o pêlo incendiado, e o corpo aberto em chagas, de um salto miraculoso, passou sobre o povo e sobre a tropa, caindo aos pés de Paulo Maurício. Na boca do animal vinha um rolo de papéis.

O poeta desprendeu um grito de angústia e de prazer, reconhecendo o seu poema, salvo do incêndio.

Foi difícil arrancar das presas espumantes do cão o manuscrito. Paulo Maurício, seguido por Eduardo Mendes e algumas pessoas do povo, vibrantes de curiosidade e de pasmo, correu à primeira botica onde em vão tentou restituir à vida o seu heróico e sublime amigo.

O poeta de joelhos, junto ao animal agonizante, chorava como uma criança.

— Pagaste cedo a tua dívida, meu leal companheiro! — articulou ele através dos soluços que o abalavam. — E a providência te abandona! E Deus não me concebe a suprema ventura de te salvar!

O cão, cravando o derradeiro olhar no rosto pálido do seu amigo, esforçou-se por mover ainda a cauda, como nas horas da passada alegria e, estendendo a cabeça mutilada sobre a mão do poeta, expirou gemendo.

Publicou-se, seis meses depois, o poema de Paulo Maurício.

A primeira página, tarjada de negro, era consagrada à memória de um cão.