O missionário/Belém, 20 de dezembro de 18...

A folha estava datada de Belém. Lendo o nome da capital do Pará, o seu contentamento aumentou. Era em Belém, na capital, que se falava dele, na grande cidade comercial que é o empório da riqueza e civilização do Amazonas onde se resume toda a vida intelectual das duas províncias gêmeas.

Padre Antônio de Morais era célebre em Belém. Ali, na grande cidade, falava-se nele àquela hora do dia. O Filipe do Ver-o-peso, o reitor do Seminário, o padre Azevedo estariam, talvez, lendo e relendo o famoso artigo, transportados de admiração e cheios de enternecimento.

E súbito lhe veio clara e perfeita a recordação da sua chegada à capital do Pará, quando fora para o Seminário, mandado pelo padrinho. Era então um rapazola de quinze anos, de negras melenas caídas sobre os olhos e de magras formas angulares de camponês robusto.

Recordava-se bem. A noite vinha, pesada e escura, envolvendo em lâminas de chumbo o horizonte curto de que se destacavam as torres da Sé, e mais longe as do Carmo, por cima do casario, sujo de pó vermelho, aglomerado em ruas estreitas. Renques de varas cercavam os espaços não edificados, abrigando mal da indiscrição dos transeuntes os poucos limpos quintais, logradouros de galináceos e de não raros suínos, escapos às vistas grossas dos fiscais da Câmara. Quase em frente ao Ver-o-peso, onde atracara a galeota do padrinho, o velho casarão do governo fechava a vasta praça verdejante, em que os sendeiros da polícia montada pastavam sossegados, sob o olhar cobiçoso de numerosos urubus, empoleirados no alto do telhado do Palácio, cujas janelas abertas de par em par pareciam haurir sofregamente a mesquinha aragem do mar, que os coqueiros se transmitiam dum para outro, no balanço indolente das palmas flexíveis. Os últimos raios do sol esbraseavam as vidraças poeirentas da igreja de Santo Alexandre, dando-lhe reflexos metálicos, duros à vista, e punham nas águas do canal uma réstia de luz fugitiva e trêmula. Um acendedor do gás rodeava o largo a passos apressados, armado duma vara, em cuja extremidade brilhava um ponto luminoso que, de longe, parecia um vaga-lume grande, estonteado, a procurar o abrigo dum mato protetor. A medida que o acendedor passava, uma sucessão de pontos luminosos pingava a indecisa claridade do último crepúsculo de manchas pálidas, que se ruborizavam pouco a pouco, dando aos objetos uma saliência fantástica. As árvores da praça pareciam afagar com as ramagens as nuvens negras que lhes passavam por cima, caminhando lentamente para o sul em esquadrão cerrado. Vultos de homens passavam devagar por baixo do arvoredo, projetando na selva a sombra comprida e esguia, e os corvos assumiam proporções enormes, cobrindo os telhados com as asas negras e inquietas.

Do lado do bairro de Santana um surdo murmúrio, o último ruído da agitação industrial, de carroças que se recolhiam, de quitandas que se levantavam, de portas que se fechavam, traduzia o fim do dia para os homens de trabalho que iam repousar, exaustos de calor e de fadiga.

Negras da Costa, com as panelas de tacacá e de quibebe equilibradas sobre as rodilhas de riscado, que em forma de turbante lhes cingiam a carapinha, passavam, balançando os quadris num descadeiramento ridículo, e enchendo o ar de forte catinga suarenta, que se misturava ao aroma irritante do trevo e da manjerona exalado pelo penteado das mulatas, e ao pixé nauseabundo dos resíduos do Ver-o-peso. Raparigas de cor arrastando servilhas de marroquim vermelho ou verde, ofereciam aos olhos dos homens o busto moreno meio nu, apenas velado pela fina camisa de renda, decotada e de mangas curtas, mais excitante do que a nudez. Os negociantes de retalho, em mangas de camisa, pescoço nu, calças de brim, chinelos de tapete ou de couro claro, cavaqueavam com pachorra à porta da loja, ou sentados à beira do canal, sob as árvores quietas, abanando-se com ventarolas de papel. Homens vestidos de casimira, com ares de empregados públicos, avançavam lentamente, opressos pelo alto chapéu de seda, que lhes aquecia a cabeça, e contendo a custo nas mãos úmidas o guarda-chuva previdente e pesado, trocavam, a furto, olhares de inteligência com as mulatas de camisa de renda. Carroceiros portugueses, baixos e barbados, carrancudos, suados, recolhiam-se com as suas carroças de duas rodas, que uma parelha de burros puxava a custo, depois dum dia inteiro de labutar contínuo por um calor de janeiro. Dois ou três padres saíram do colégio descendo a calçada com passo grave, e dirigiram-se para fora da cidade pela estrada de S. José, cujas grandes árvores, salpicadas de luzes, estendiam-se a perder de vista pela frente de rocinhas elegantes e ricas. Caleças, puxadas a dois cavalos, passavam pela porta do Palácio, vindo da Travessa da Rosa e tomavam pela Rua da Cadeia. Os cocheiros estalavam o chicote, e o ruído dos trens punha, por momentos, uma nota alegre na tristeza monótona da praça.

Um instante de repouso se dava na vida da capital provinciana. Ao longe o chiar dos carros de lenha que se retiravam pela estrada fora, ao passo vagaroso dos bois, evocava idéias do sossego e tranqüilidade da roça, aumentando a melancolia vaga que fazia nascer a hora crepuscular da tarde, ao derradeiro eco do toque da Ave-Maria, pausadamente badalada pelo sino grande da sé.

Mas fechava-se a noite. As casas iluminavam-se uma a uma. Das lojas francamente abertas um jorro de luz clareava as calçadas, a trechos, mergulhando na sombra o centro da praça, o leito do canal do Ver-o-peso e a copa das árvores de todo oculta na escuridão do céu. Das janelas do Palácio do Governo escassa luz se derramava sobre o passeio, onde se formavam grupos, cada vez mais numerosos, de homens de paletó e chapéu alto e de mulheres. do povo. As ruas iam-se animando. Ouviam-se frases proferidas em voz alta, ditos alegres ou grosseiros atirados a grande distância, cortando subitamente o ar numa vibração metálica. Do lado da Rua dos Cavalheiros aproximava-se um tropel confuso de vozes e de passos.

E ele matutinho imberbe, recém-chegado na galeota do padrinho, pusera-se a olhar para todos os lados, a princípio deslumbrado e medroso, depois com maior segurança, numa grande curiosidade. Primeiro, ao levantar a cabeça, ficara embasbacado a admirar o tamanho do Palácio, que achava senhoril e nobre, as torres da sé, duma altura descomunal, ameaçando desabar sobre as casas próximas, a igreja de Santo Alexandre que lhe pareceu grande e majestosa, seguida do colégio vasto, cheio de janelas com vidros; a chefatura de polícia com o seu mirante de três janelas, com certeza o supra-sumo do gosto e da elegância. Depois ficara atordoado com o barulho dos carros de praça, duma novidade estranha e dum luxo caro; enlevara-se na contemplação dos vestuários dos homens de chapéu alto, que contrastava singularmente com o seu terno de brim pardo, os seus chinelos de tapete e o chapéu de palha de tucumã, ornado de larga fita preta. Apesar do esforço que fazia para dominar-se, a multidão de gente que vagabundeava na praça, cruzando-se em diversos sentidos, a infinidade de lojas e tavernas, freqüentadas e claras, e, sobretudo, o renque de lampiões de gás projetando uma luz brilhante sobre o colo de mulatas atrevidas, desembaraçadas, provocadoras, que lhe lançavam olhares esquisitos e incômodos, obrigando-o a virar o rosto para disfarçar o vexame, tudo isso causava-lhe um acanhamento invencível.

O povo continuava a afluir para a praça, desembocando da Travessa da Rosa, da Calçada do Colégio e mais ruas adjacentes. Algumas senhoras, raras, tímidas, destacando-se dos grupos pelos' chapéus enfeitados de flores artificiais, passeavam devagarinho pela frente do Palácio, como por acaso, não desejando mostrar que a concorrência as atraía, relanceando o olhar artisticamente indiferente sobre os grupos de rapazes alegres e de mulatinhas faceiras. A banda de música do corpo de polícia chegara finalmente, precedida de moleques armados de pequenas bengalas toscas que brandiam marcialmente, e começou o pot-pourri da Norma com vibrações metálicas dos instrumentos de sax.

Confuso, apalermado, tonto, pisara pela primeira vez o solo da grande capital da Amazônia, sentindo-se mesquinho e ridículo no meio daquela gente acostumada ao movimento dos carros e à luz brilhante dos lampiões de gás.

Agora, porém, era outra coisa.

Graças ao próprio esforço era célebre, respeitado, admirado naquela mesma cidade que sete anos antes o vira chegar desconhecido e semi-selvagem.

Agora preocupava a atenção pública!

Aqueles homens vestidos de casimira, com ares de empregados públicos, que passeavam lentamente a calçada do Palácio, talvez que, àquela hora, estivessem falando dele, padre Antônio de Morais, à sombra das árvores quietas, no intervalo do ruído dos carros que vinham da Travessa da Rosa, e os padres, ao saírem do colégio para se encaminharem dois a dois para a estrada de S. José, comentariam talvez a história extraordinária do antigo seminarista que em assunto de teologia moral levara à parede o maior teólogo do bispado.

Embebido nos pensamentos que as recordações evocadas lhe faziam nascer, padre Antônio não sentia o ubá correr pela superfície do Ramos. João Pimenta e o Felisberto respeitavam-lhe o silêncio, supondo-o causado por amargas saudades da Clarinha.

No fim de duas horas de viagem, o ubá saiu ao Amazonas, vasto, estendendo-se para todos os lados a perder de vista, e no meio daquele imenso rio, cujas águas cor de barro, açoitadas por forte viração do mar, balançavam a esguia embarcação selvagem, estranho veículo naquela artéria dia e noite sulcada por inúmeros paquetes, o sacerdote sentiu a impressão do alargamento dos horizontes, como se de fato a vitória que alcançara sobre o próprio temperamento lhe tivesse rasgado às vistas, deslumbradas pela ambição, uma perspectiva infinita de glorioso futuro.

Um paquete da Companhia subia a correnteza em direção a Serpa, com grande barulho de rodas, e o vapor formava um penacho de fumo negro que maculava o esplêndido céu azul dum meio-dia de dezembro. Comparado ao ubá, o barco a vapor parecia um gigante enorme que devorava o espaço e agitava o rio, trêmulo de orgulho; e o contraste formado pelas duas embarcações que por acaso se cruzavam em frente à embocadura do rio Ramos, exprimia a diferença entre o passado recente do vigário de Silves que a natureza dominara e possuíra, e o futuro que se lhe antolhava no desdobramento da sua carreira de padre inteligente e forte. Aquele vapor em breve voltaria de Manaus, e receberia em Silves a notícia do regresso do missionário da Mundurucânia, para a levar, embelezada pela fama e pela ardente imaginação do povo amazonense, à sofreguidão novidadeira da imprensa do Pará e da corte, onde o nome do jovem sacerdote despertaria a atenção pública. As recompensas não tardariam. Antes de tudo, D. Antônio, o bispo justiceiro, apreciador do mérito dos seus padres, lhe obteria facilmente uma prebenda inteira no cabide da Sé de Belém, onde a sua voz de barítono brilhante, ecoando nas abóbadas severas do majestoso templo, despertaria emoções fortes e provocaria expansões de sentimento religioso nas solenidades aparatosas do culto católico. O imperador não podia perder de vista o missionário que sacrificara vida, cômodos e saúde ao serviço da propaganda católica. A sorte de padre Antônio de Morais seria mais brilhante do que lha podia fazer a benevolência do bispo justiceiro.

Nas auras sopradas do mar lhe vinham os perfumes acres da cidade que entrevira uma vez ao cair da tarde, e que lhe deixara uma impressão confusa de luzes, de sons e de objetos estranhos, entre os quais se destacavam as mulatas de camisa de rendas impregnada de trevo e pipirioca, perfumes fortes que lhe excitavam o temperamento sensual, dando-lhe o antegosto duma infinidade de prazeres. Ao mesmo tempo na toalha larga, clara e movediça do rio, a perder-se intérmina no horizonte, parecia refletir-se a imagem dum esplêndido futuro, em que ofuscavam a fantasia as cintilações diamantinas da mitra episcopal numa diocese do sul...


Praia do Embaré, abril de 1888.