Chovia. Era um aguaceiro forte de meados de março que lavara as ruas malcuidadas da vila, ensopando o solo ressequido pelos ardores do verão. O professor Francisco Fidêncio Nunes despedira cedo os rapazes da classe de latim, os únicos que haviam afrontado o temporal; e olhava pela janela aberta, sem vidros, pensando na necessidade que lhe impusera o Regalado de passar aquele dia inteiro dentro de quatro paredes, por causa da umidade, fatal ao seu fígado engorgitado.

A caseira, uma mulata ainda nova, chamara-o para almoçar.

Naquele dia podia oferecer-lhe uma boa posta de pirarucu fresco, e umas excelentes bananas-da-terra, que lhe mandara de presente a velha Chica ha Beira do lago, cujo filho cursava gratuitamente as aulas do professor. A caseira, a Maria Miquelina, sabendo que o senhor professor não poderia comer as bananas cruas, por causa da dieta homeopática do Regalado, cozera-as muito bem em água e sal, preparara-as com manteiga e açúcar e pusera-as no prato, douradas e apetitosas.

Mas o dono da casa nem sequer as provara. Fizera má cara também ao pirarucu fresco, rosado e cheiroso, preparado com cebolas e tomates, e, por almoço, tomara apenas uma xícara de café forte com uma rosquinha torrada, porque a estômago lhe não permitia alimento de mais sustância. Tivera durante a noite um derramamento de bílis, devido à mudança de tempo, erguera-se de cabeça amarrada, ictérico e nervoso. Fora ríspido com os dois ou três rapazes que compareceram à classe de latim, e despedira-os dizendo que iam ter férias, porque a semana santa se aproximava. Tratassem de decorar bem o Novo método, senão pregava-lhes uma peça.

Depois da saída deles, Chico Fidêncio ficara aborecido, vagamente arrependido de os ter despachado tão cedo. Que iria fazer agora? A chuva continuara a cair torrencialmente, transformando a rua num regato volumoso que arrastava paus, folhas, velhos paneiros sem préstimo, latas vazias e barcos de papel, feitos pela criançada vadia que não tinha

medo à chuva. Não passava ninguém, para dar uma prosa. As casas vizinhas estavam fechadas, para evitar que a chuva penetrasse pelas janelas sem vidraça. A flauta do Chico Ferreira, às moscas na alfaiataria, interrompia o silêncio da vila recolhida, casando os sons agudos e picados com o ruído monótono da água repenicando nos telhados.

Que dia estúpido aquele! Silêncio na rua, silêncio na casa! Nem ao menos a Maria Miquelina, de ordinário palradora, queria falar agora! Amuada, pois que o professor lhe desprezara o almoça, sentarase a um canto de sala de jantar e fazia rendas, silenciosa e trombuda.

Francisco Fidêncio voltara da varanda, e passeava a sala visitas, onde dava as aulas cruzando-a em todos os sentidos, parando diante duma mesa, ora em frente a um quadro, umas vezes ante a porta cerrada, como se tivesse vontade de sair, outras vezes defronte à janela aberta, para olhar a rua, silenciosa e molhada.

Era uma sala pequena, mal caiada, de chão de terra batida, coberta de palha de pindoba escura, uma sala miserável de pobre habitação sertaneja, mas com pretensões a aposento decente. A mobília constava de dois compridos bancos, postos um atrás do outro. Perto duma grande mesa de pinho mal envernizado. Outra mesa pequena colocada a um ângulo da sala era servida por uma cadeira, a única existente, de palhinha branca, de uso antigo. Sobre as duas mesas havia tinteiros, papéis, alguns livros velhos. Da parede do fundo pendiam, em quadro de madeira preta, uma litografia ordinária representando o conselheiro Joaquim Saldanha Marinho, e mais abaixo, num pequeno quadro de moldura dourada, muito gasta, uma gravura burlesca e desrespeitosa intitulada - O sonho de Pio IX. Numa das paredes laterais, pendentes dum pequeno cabide de bambu falso, estavam um chapéu de homem, um guarda-chuva de alpaca cor de pinhão e uma opa de irmão do Santíssimo, ostentando audaciosamente o seu encarnado vivo, ferindo os olhos. Ao lado, sobre um caixão virado, uma rima de jornais em desordem sustentava um candeeiro para querosene, sem abajur e com chaminé rachada. Na parede fronteira, numa litografia de jornal caricato pregada com quatro obreias verdes o papa Ganganelli fulminava com os raios pontificiais a Companhia de Jesus.

No chão mal varrido, com grandes manchas pretas feitas pelos pés molhados dos alunos de latim, pontas de cigarros e palitos de fósforo fraternizavam. Uma galinha com pintos ciscava embaixo da mesa grande, cacarejando.

Francisco Fidêncio lembrara-se de matar as longas horas desocupadas lendo alguma coisa. Mas que leria? Os últimos jornais chegados do Pará já haviam sido inteiramente devorados, lera-os todos e nada achara neles que lhe prendesse a atenção, e menos ainda merecesse segunda leitura. Os de Manaus também nada traziam de novo. As costumadas descomposturas ao presidente da província, uma notícia ou outra e os anúncios banais, em letras grandes, espaçadas. De livros estava farto. Bastava-lhe a maçada de os ler obrigatoriamente na aula, todos os dias, para lecionar os discípulos. Não iria agora dar-se ao luxo de estudar a lição do dia seguinte! Nada, que ele não era o seu colega Aníbal Americano!

Podia escrever para ocupar-se. Foi à pequena mesa do canto da sala, abriu uma gaveta, tirou algumas folhas de papel, caneta e pena, puxou a cadeira de palhinha, sentou-se e traçou sobre a alvura do papel em tiras as seguintes palavras:

"Amigo redator".

Depôs a pena, cruzou os braços sobre a mesa, e pôs-se a soletrar aquelas palavras, muito aborrecido.

Que diabo escreveria ele? Contaria o mau tempo que reinava em Silves, a falta do pirarucu e a carestia da farinha? Que lhe importava isso? Que interesse tinha de noticiar coisas tão banais aos seus leitores, e que graça achariam estes em conhecer tais borracheiras?

Só havia um assunto possível, em que poderia espraiar-se, lançando um belo artigo capaz de fazer sensação. Esse assunto era padre Antônio de Morais. Mas havia um mês que padre Antônio chegara, e Chico Fidêncio ainda não pudera formar dele um juízo definitivo, nem achara motivo para um pequeno artigo. Bem não queria dizer mal do vigário, porque isso era contra os seus princípios. Para dizer mal era preciso uma base, um motivo, um pretexto ao menos, e essa base, esse motivo, esse pretexto não aparecia.

Por isso andava a Chico Fidêncio muito descontente, por isso, talvez, se agravara a hepatite.

Todo aquele mês passara o padre Antônio de Morais em projetos de reforma da paróquia, em assear o templo, em confessar beatas, examinar crianças ao catecismo, dizer missas e cantar ladainhas. A população estava muito satisfeita. Nunca vira um vigário assim tão sério e zeloso, tão ativo e pontual. Pela manhã a missa, rezada devagar,

a durar vinte minutos pelo menos, macerando os joelhos do povo nos tijolos da capela-mor. Em seguida, a confissão longa, minuciosa, cheia de conselhos patemais e de repreensões bondosas. A Maria Miquelina fora confessar-se, a mandado do professor, e voltara maravilhada. Ao meio-dia a aula dos pequenos; à noite a ladainha, puxada pelo vigário em pessoa, à luz duvidosa das lâmpadas de azeite de mamona...isto um mês a fio... uma delícia! no dizer da senhora D. Eulália. Beatas velhas e beatas novas bebiam os ares pelo padre vigário, rapagão de vinte e dois anos, simpático, bem apessoado e de mais a mais um santo! Sempre sério, bondoso, paternal, caminhando de olhos pregados no chão, falando baixinho, minha filha, minha irmã, em voz suave e melíflua, que fazia correr um calafrio pela espinha dorsal das devotas, acostumadas às graçolas chocarreiras do defunto padre José. D. Cirila, mulher do capitão Fonseca, D. Dinildes, irmã do Mapa-Múndi, e a famosa D. Prudência, viúva do Joaquim Feliciano, não se fartavam de gabá-lo, admirando-lhe a barba bem escanhoada, o cabelo luzidio e penteado, a batina nova, a alva camisa engomada, os sapatos envernizados a capricho, o todo de petimetre de sotaina, que contrastava de modo frisante com as sobrecasacas domingueiras compridas e lustrosas, e com as largas calças brancas e os sapatos grossos, de couro cru, dos rapazes mais atirados da terra. E o mulherio todo as secundava nos elogios ao padreco. Até a Maria Miquelina, a negrada! tinha as suas simpatias pelo troca-tintas do vigário!

Tanto entusiasmo das mulheres teria certamente despertado o ciúme e o ódio dos homens, se, pelo seu procedimento - irrepreensível - não lhes tivesse padre Antônio captado a benevolência.

Nenhuma fraqueza lhe conheciam. Essa virtude inexpugnável causava pasmo ao Chico Fidêncio, desnorteava-o. Na sua opinião todos os padres eram mais ou menos como os cardeais do quadro de moldura dourada, sotoposta ao retrato do Ganganelli brasileiro: uns pândegos que bebiam champanhe abraçando irmãs de caridade. Entretanto com padre Antônio de Morais não se dava isso. A Luísa Madeirense perdera completamente os seus requebros, as suas provocações impudentes. Nem sequer lhe conseguira apanhar a freguesia do engomado, que fora dada à mulher do coletor, senhora quarentona e respeitável. D. Prudência debalde gastara dúzias de ovos em compoteiras de cocada amarela, com que o Macário sacristão apanhava azias desesperadas. S. Rev.ma lhas agradecia pelo portador, mas não a visitava. Todo trabalho entregue aos trabalhos do culto, parecia superior às fragilidades humanas. Andava atarefado, embebido na preocupação de regularizar o serviço da Igreja. Parecia querer ser um pároco modelo, solícito, atento e dedicado.

Na sua casinha solitária, acompanhado pelo Macário sacristão que lhe governava a casa, e servido por um preto velho que trouxera do Pará, levava a vida austera dum padre de S. Sulpício. Jamais nenhum dos sujeitos que viviam em Silves da espionagem da vida alheia, nem o Maneco Furtado, nem o Cazuza dos Tamarindos, pudera, naquele mês inteiro, divisar entre os umbrais da porta da entrada, ou na abertura da cerca do quintal, um vulto suspeito de mulher. Era simplesmente admirável.

O Macário sacristão, empanzinado de gulodices, palitando os dentes, satisfeito do mundo, clamava na vila que nunca vira um homem assim, que um padre daquele feitio era uma coisa espantosa. E batia-se, em discussões calorosas, com os maliciosos que, mais por pirraça ao sacrista do que por convicção, notavam a facilidade que havia em passar, sem ser visto da casa do vigário para o quintal da Luísa Madeirense. O Macário punha a mão ao fogo pela castidade de S. Rev. ma. É verdade que havia tentações... a Madeirense fazia o diabo! E uma certa viuvinha então? Era querer e estava feito, mas não! S. Rev. ma não queria. Macário desafiava a toda a gente a que o pilhasse em falso. Ele próprio, Francisco Fidêncio Nunes, o terrível inimigo dos padres, que escrevia correspondências para o Democrata, de Manaus, em que vazava a bílis revolucionária e ateísta, para esfregar aquela súcia, era obrigado a confessar que ou padre Antônio era um santo ou um verdadeiro ministro do altar!

O professor ergueu-se desanimado, deixando cair a caneta que tinha entre os dedos. Foi à varanda, onde a Maria Miquelina, sentada a um canto, tendo diante de si uma grande almofada branca, fazia rendas de bico, silenciosa e trombuda.

- Então o tal padreco é mesmo um Santantoninho, Maria Miquelina!

A mulata não respondeu.

- Tens as bananas atravessadas na garganta, rapariga? Olha que se me móis, não janto.

As bananas estavam perdidas, mas era preciso salvar a honra do pirarucu fresco, que a caseira guardara para a refeição da tarde, fritando-o em fino azeite doce. Estava de tentar.

- Olhe, seu Chico, disse a mulata depois duma pausa; vuncê sabe que eu não gosto de homens de saia. Mas o vigarinho é um santo, lá isso ninguém me tira.

O professor voltou para a sala, sentou-se de novo à mesa, pegou na pena e começou a escrever:

"O escritor destas modestas e despretensiosas linhas..."

Mas largou a caneta, sem ânimo de prosseguir. Não queria elogiar o padre, não queria comprometer-se. Demais, estava com um ferro por causa da Maria Miquelina! E não se conformava facilmente com os olhos baixos e o falar melífluo daquele padre elegante e belo.

Havia um ano que o Chico Fidêncio se estabelecera em Silves, espantando os pacatos habitantes da vila com as suas teorias irreverentes e ousadas, fascinando-os, tinha presunção disso, com o seu verbo colorido e ardente, espicaçando-lhes a mole diferença com o aguilhão das suas críticas acerbas e dos seus sarcasmos ferinos, dominando-os pelo espírito desembaraçado de convenções e dos prejuízos da estreita vida de aldeia.

Era natural do Rio de Janeiro, carioca da gema. Aquilo, sim é que era terra! Cursara dois anos da antiga Escola Central. Não gostara das matemáticas, era mais amigo das ciências sociais, e se fora rico, teria ido estudar a S. Paulo, teria entrado para a troça do Varela, do Castro Alves, teria sido talvez um Álvares de Azevedo. Era, porém muito pobre. Um tio, que o ajudava, fartara-se de o aturar e pusera-o fora de casa, quando saíra reprovado em cálculo diferencial, ao segundo ano. Arranjaram-lhe um lugar de caixeiro de armarinho à Rua do Cano, mas não ficara no emprego mais de três meses. O patrão era um galego, burro como seiscentos galegos e malcriado como todos os da sua igualha. Chico Fidêncio não estivera para o aturar, e despedira-se da casa, passando-lhe uma descompostura descabelada. Um dos fregueses do armarinho, que tinha queixas do patrão, meteu-o de condutor num ônibus de carreira de S. Cristóvão. Era uma vida deliciosa, divertida, cheia de episódios interessante e que contribuíra muito para a educação do Chico Fidêncio. Ouvia tanta coisa! Estava a par da política toda, conhecia todos os homens notáveis, sabia de mil pormenores da sua vida pública e particular. Soubera da resolução do ministério na crise bancária de 1864, antes de publicada nos jornais, vira Christie furioso, por ocasião do conflito entre o Brasil e a Inglaterra, dera fogo ao José Liberato quando fora pela primeira vez a S. Cristóvão! Era uma vida deliciosa, toda a gente o conhecia e o cumprimentava, dava-lhe cigarros. Infelizmente fora obrigado a deixá-la por intrigas dum cocheiro, seu inimigo. Havia já dado um passo decisivo na vida... entrara para a maçonaria! E o primeiro benefício que tirara dessa acertada resolução fora conseguir um lugar de despenseiro a bordo do vapor Santa Cruz, da Companhia Brasileira do Norte. Mais tarde, numa das viagens deixar-se ficar no Pará, porque enjoava muito, não nascera para a vida do mar. Tinha feito amizade a bordo com um deputado geral, cuja família gostava das passas, nozes e figos secos, com que Chico a presenteava generosamente. Obtivera uma cadeira pública, num arrabalde de capital, e a regenera durante um ano inteiro. Mas rompera a questão religiosa, e o Chico Fidêncio, fiel aos seu homens de roupeta que ele importava de Roma. A nomeação era interina, e o presidente, um carola, que ouvia missa todos os domingos, quisera ser agradável a D. Antônio, e demitira o professor amigo do livre-exame. Ficara então sem recursos. Recorrera à maçonaria, mas a maçonaria era impotente na administração daquele rato de sacristia que governava a província. Só podia obter um emprego no comércio, mas as suas aspirações não se davam com tal modo de vida. Demais, no comércio do Pará governavam os portugueses, e o Fidêncio, apesar de maçom enragé, nunca perdoara aos portugueses os desaforos que sofrera do dono do armarinho. Antes morrer de fome do que, no seu país, sujeitar-se novamente a ser mandado por um galego!

Enfim, Silves não pertencia ao Pará. O seu amigo Filipe do Ver-o-peso, um português excepcional, dissera-lhe que Silves era uma boa terra, não tinha professor que prestasse, e oferecera-lhe uma carta de recomendação para o seu correspondente Costa e Silva. Viera para tentar fortuna, e aqui soubera granjear muita consideração, graças à sua incontestável inteligência e aos conhecimentos que obtivera na sua acidentada existência.

A principio encontrara franca hostilidade, principalmente das mulheres, que o achavam antipático e desagradável, as lambisgóias! Como se ele não fosse da corte do Rio de Janeiro, que elas nunca haviam de conhecer! Depois embirraram com as suas idéias anti-religiosas, porque as expunha com a máxima franqueza, a todo o momento em qualquer ocasião, sem resguardo das conveniências devidas às pessoas e aos lugares. Ninguém lhe dera discípulos, poucos o cortejavam, nenhuma família lhe oferecera a casa. Até o próprio Costa e Silva, posto estivesse arrochado pela carta do Filipe do Ver-o-peso, tivera certas friezas, porque era católico, achava a religião necessária, principalmente para o povo. Parecia que temiam a infecção das heresias daquele inimigo da Igreja, já condenado em vida às penas eternas.

Fidêncio ergueu-se de novo, foi à janela e cuspiu para fora:

- Idiotas!

Voltou para junto da mesa, aliviado, preparou um cigarro, acendeu-o, sentou-se de novo firmando-se sobre os pés traseiros da cadeira, utilizada para balanço e, reatou o fio das suas recordações:

Alguns homens, na fácil convivência das portas das lojas, onde à tarde se renova diariamente o processo da sindicância da vida alheia, começaram a gostar de ouvir dizer mal de tudo e de todos, com umas frases novas, uns ditozinhos agudos, uma certa maneira de exprimir as idéias, entremeando calemburgos com palavrões sonoros e sibilando muito os ss, que adquirira ao tempo de estudante e de caixeiro de armarinho. Conquistara a fácil mentalidade dos bons matutos de Silves, posto não lograsse cativar-lhes o coração desconfiado. Mas o Chico Fidêncio tinha tanta graça! Tinha uns modos não sei como o diacho do mestre-escola! Sabia tão bem o ridículo duma pessoa ou duma coisa, que os seus ataques eram irresistíveis. Os matutos reconheciam assim, o seu incontestável mérito.

Um dia, lembrara-se de escrever uma correspondência para uma folha de Manaus, a propósito da última sessão do júri no termo, e dissera umas coisas agradáveis ao juiz de direito que lhe valeram a proposta para adjunto do promotor público, cargo que nunca fora servido na comarca e de que não havia necessidade. E satisfeito com o resultado obtido pusera-se em ativa correspondência com o jornal de Manaus, o Democrata, órgão público, noticioso, comercial, científico e independente, que lhe estampara a prosa, contente por ter matéria nova com que encher as colunas da obrigação. As cartas do Chico Fidêncio não seriam talvez muito lidas na capital da província, mas em Silves eram devoradas avidamente, comentadas, discutidas durante quinze dias a fio. O seu estilo tinha umas vezes o sarcasmo ferino da conversação ordinária, e outras, quando o Chico calçava as suas tamancas de jornalista grave, e queria discutir um assunto com a seriedade necessária, subia aos fraseados sonoros, recheados de declamações bombásticas, de trechos de bons autores, de citações novas, com muita erudição de idéias e palavras bebidas aqui e ali, na leitura de periódicos e panfletos.

E eram exatamente esses artigos, de que mais se orgulhava, que reputava melhor, que lia e relia aos amigos, chamando-lhes a atenção para o fraseado cheio, para as referências sábias e o rebuscado do estilo, os mais raros e os menos apreciados. O público, ignorante e grosseiro, preferia as pilhérias e as críticas mordazes, que iam subindo de tom até ao diapasão da descompostura, degenerando em maledicências e calúnias. Tinha, porém, uma justificação para esses excessos: a necessidade de não poupar o inimigo, para não lhe morrer às mãos.

Quando chegava o paquete e o Democrata aparecia, pequeno, massudo e mal impresso, coberto de pastéis e falhas, como duma lepra incurável, toda a gente queria saber se o Constante leitor, o pseudônimo do Chico Fidêncio, escrevera a sua carta, datada de Silves, com quem bulia, se desancava o padre José ou o subdelegado, se falava na Luísa ou na D. Prudência, se contava os novos amores do vigário, ou descobria as recentes ladroeiras do escrivão da polícia.

Apesar desses triunfos, Francisco Fidêncio Nunes sentia que pisava em terreno falso. Não contava com as simpatias da população, e teria de decidir-se em breve a procurar outro abrigo para a sua miséria e para o seu ideal de liberdade religiosa, tão mal amparado na povoação do lago Saracá. Não podia deixar de pensar que fora enganado pelo Filipe do Ver-o-peso: Sempre era galego, e bastava.

O vigário vingava-se das correspondência, fazendo-lhe uma guerra de morte. O coletor, que era o homem mais importante do lugar, não gostava dele, embora lhe tivesse medo. As mulheres eram-lhes hostis, não liam as suas cartas, não viam senão o homenzinho feio, que desrespeitava os santos e pregava heresias. Estranho à terra, sem ligações de família na província, sem a tradição dum passado qualquer que o protegesse, reconhecia-se fraco e dispunha-se a abandonar o campo, quando surgiu de chofre o segundo período da questão religiosa, ferida entre os bispos do Pará e de Olinda e a maçonaria.

A gente de Silves não tinha interesse algum na questão, mesmo porque o seu vigário, um pândego, valha a verdade! não se ocupava muito dessas coisas de Igreja. Mas o espírito de partido, muito vivo nas povoações pequenas, o amor da novidade, o instinto de contradição e de luta que divide os homens, mesmo desinteressados e indiferentes ao assunto da discussão, fracionaram a população em dois grupos. Um formara-se dos maçons, dos parentes dos maçons, dos inimigos pessoais do vigário e dos rapazes mais ardentes e mais instruídos. O outro constituíra-se com os homens timoratos e pacíficos, que, de preferência às inovações, queriam viver com os padres, acreditando, ou fazendo acreditar, em tudo o que esses exploradores da humanidade dizem. Francisco Fidêncio tornou-se naturalmente chefe do partido maçônico.

A luta, a falar a verdade, não passara do terreno do palanfrório, consistira unicamente em discussões fortes à porta do coletor ou junto as procissões e Nossos-pais de balandrau e tocha. Francisco Fidêncio era irmão do Santíssimo. A sua brilhante opa encarnada, que por acinte tinha na sala, exposta a todas as vistas, aparecia em toda a parte. Padre José bufava. Por fim tomara o pretexto de tão grande irreverência para acabar com festas e procissões que lhe davam muita maçada. Mas o melhor fora que o correspondente do Democrata lucrara em questão.

Primeiro que tudo, dedicando as suas cartas ao assunto da pendência que dividia os espíritos, atacando o papa, os bispos, os padres todos e especialmente os jesuítas, poupava os habitantes da vila, com exceção dos vigário. Mereceu com esse procedimento que se corresse um véu sobre as críticas antigas, amortecendo os ódios dos ofendidos. Não era mais o escrevinhador insolente, que se ocupava da vida privada de cidadãos conhecidos, achincalhando a reputação do capitão Fulano ou do negociante Sicrano. Passava a ser um escritor preocupado de questões sociais, um sujeito que zurzia os padres, uma espécie de adversário platônico. Os padres que se defendessem!

As antigas vítimas rejubilavam-se, descansadas, livres do temor, esforçando-se por esquecer e fazer esquecer as descomposturas recebidas no Democrata. Eram agora elas mesmas que chamavam a atenção pública para os artigos do professor, que os comentavam, indagando hipocritamente se seria verdade tudo aquilo que se dizia do padre José, alardeando indignação, exclamando que tais monstruosidades eram dignas de severo castigo.

Francisco Fidêncio contava à redação do Democrata, por miúdo as pândegas colossais do vigário, as aventuras noturnas, as bambochatas em canoa, as orgias nas praias de areia, ao tempo da desova das tartarugas. Citava nomes, falava da Chica da outra banda, da mulher do Viriato, da Luísa, e até da D. Prudência, veladamente - uma certa Imprudência. Dizia que o vigário bebera o dinheiro da província com as mulatas, em vez de consertar a Matriz, que seduzia as beatas, que prostituía as confessadas, que era ministro de Barrabás... o diabo!

Padre José ficava furioso. Ameaçava quebrar as bitáculas àquele safado, e caluniava-o, espalhando que Chico Fidêncio fora condenado no Rio por gatuno e expulso do corpo de permanentes do Pará por maus costumes, pecados contra a natureza.

Enquanto padre José apanhava bordoadas de cego nas colunas do Democrata, o subdelegado, o escrivão da polícia, o comandante do destacamento, o juiz municipal e o fiscal da Câmara folgavam, comprazendo-se numa feliz obscuridade, e como o vigário não opunha aos artigos do Chico um procedimento exemplar, as censuras e acusações calavam na opinião, o partido maçônico aumentava, uma corrente de simpatia estabelecia-se entre o jornalista liberal e a população de Silves.

Em segundo lugar, a sua posição de chefe de partido reunira em torno da sua pessoa um grupo dedicado e atento, que amparava e aplaudia na luta, dando-lhe prestígio e força. Francisco Fidêncio já se não sentia isolado, as sua palavras eram repetidas por alguns como Evangelho, as pilhérias que lhe saíam da boca tinham curso forçado. As suas opiniões eram aceitas geralmente, com desconto do exagero que lhe atribuíam os tais homens sérios, em questão de doutrina e de dogma:

- Aquilo é maluquice dele, mas tem razão no que diz dos padres.

- Maluquice resmungou Francisco Fidêncio, levantando-se de novo, e chegando à porta do corredor, gritou para a varanda:

- Então, nem um cafezinho hoje! Olhe que a gente não almoçou!

Cessou o ruído dos bilros, e a voz arrastada da Maria Miquelina respondeu lá de dentro:

- Pensei que vuncê não queria nada hoje. Está de burros, paresque!

A caseira já devia saber que, quando o fígado lhe não permitia comer, o Chico Fidêncio bebia muito café. Era a única coisa que o seu estômago suportava. Demais era carioca da gema. Era da terra do café. E quando estava danado, bebia café. No dia em que fora demitido de professor público no Pará, bebera mais de vinte xícaras desse líquido que prolongara a vida de Voltaire.

Voltou a passear a sala em todos os sentidos, levando a mão à região do fígado e chupando um cigarro apagado.

A chuva continuava, monótona, repenicando nos telhados vizinhos. A flauta do Chico Ferreira cansara. Da casa fronteira vinha um choro de criança manhosa e endefluxada. Os pequenos sinos da Matriz espaIhavam no ar alegres vibrações argentinas, saudando o meio-dia.

A rua continuava deserta. Francisco Fidêncio chegara à janela e não vira pessoa alguma. Pudera! com aquele tempo de cachorro!

Estava de burros, sim, e tinha razão de sobra. Havia mais de meio ano que padre José morrera, e que Fidêncio ficara sem assunto para alimentar a sua correspondência com a folha de Manaus. A questão religiosa amortecera, os episódios da luta iam ficando esquecidos, o terrível adversário do clericalismo estava se tornando inofensivo.

Tivera uma forte tentação de voltar a bulir com os antigos inimigos, para o que não lhe faltaria assunto, graças a Deus. Sabia tudo que se passava em Silves, sem necessidade de espiar, nem de indagar da vida alheia. Contavam-lhe, sem que nada perguntasse.

Podia referir-se ao José Antônio Pereira, que passava por moço de muito bons costumes, mas tinha lá as suas mazelas em casa. Podia contar que o Neves Barriga tinha um serralho no sítio do rio Urubus, e que por isso não queria saber da vila, onde o chamavam os seus deveres de camarista. Que o Valadão, o subdelegado, prendia por dinheiro os negros fugidos, fazendo-se capitão-do-mato. 0 fiscal merecia bem boas sovas pelo estado das ruas que a Câmara o incumbira de zelar, e sem sair das raias do interesse público, que ele, como escritor público, devia e podia superintender, tinha muito que dizer da Câmara, e especialmente dum certo vereador João Carlos, que estava quase sempre na presidência, porque o Neves não gostava de deixar o serralho.

Do Costa e Silva, apesar de amigo, poderia afirmar que pregava de vez em quando o seu carapetão ao Diário do Grão-Pará, porque tinha a imaginação exaltada e era duma credulidade de caboclo. E 0 próprio coletor, o grave e pretensioso capitão Fonseca não ficaria muito livre de culpa, se o Fidêncio quisesse referir-se a certas coisas lá da coletoria que o escrivão Pereira lhe contara muito em confiança...

Mas a dura experiência do passado...

Passara vicissitudes terríveis por causa daquele jeito que tinha para a crítica e o sarcasmo. Conseguira, por um grande esforço de prudência , fugir à tentação em que a falta de assunto o ia despenhando.

Por isso, contentara-se com escrever generalidades contra o clero todo, contra a doutrina da infalibilidade, e especialmente contra os homens do espanhol de Loiola, entremeadas de censuras ao bispo por deixar tanto tempo sem pastor espiritual uma população católica, o que provava, escrevera ele ao Democrata, que a salvação das almas não era a preocupação principal desses senhores de Roma.

Mas que se importava a gente de Silves com o espanhol Loiola e com os homens de Roma?

0 que ela queria era a bela da descompostura a gente conhecida, a referência direta a pessoa do lugar.

À chegada do padre Antônio de Morais o espírito de luta acendera-se novamente no cérebro do Chico Fidêncio. Escovara a opa encarnada e aguçara os adjetivos. A presença do novo vigário parecia prestar-se à crítica que invocasse a humildade cristã. 0 desapego dos gozos mundanos, de que os primeiros apóstolos deram prova. Desde o dia do desembarque solene, em que a sua pilhéria irritante provocara a má vontade dos figurões, Fidêncio não poupara alusões à batina nova, ao penteado, à cara bem rapada, aos punhos engomados do senhor vigário.

Mas o diabo era que ele, Francisco Fidêncio Nunes, não podia ir além dessas alusões.

Chegou novamente à porta do corredor e gritou para dentro, em voz de caixeiro de botequim:

- Olha esse café que saia!

- Já vai, seu Chico. É o diacho da lenha que está muito molhada, respondeu do fundo da cozinha a voz arrastada da Maria Miquelina.

-Pílulas, até a lenha!

Fidêncio entrou na alcova, pegada à sala, e saiu logo depois, abotoando-se.

A chuva diminuíra, mas o céu, estava todo alvacento, empastado de nevoeiros. A umidade do ar penetrava pela janela aberta, esfriando a temperatura e causando ao professor uma sensação de arrepio, levantando-lhe pela raiz os pêlos da epiderme. A luz escassa do dia dava aos objetos uma coloração desmaiada que lhes confundia os contornos. As linhas perdiam-se numa obscuridade vaga, ondulante. 0 preto sujo da velha pindoba do teto pesava sobre a sala, acaçapando os móveis e os quadros. Do chão úmido levantava-se um cheiro a bolor e a ponta de cigarros, insípido e fastiento. A galinha de pintos fora-se pelo corredor fora, a passos lentos, catando o pavimento, cacarejando. 0 pio dos pintainhos irritava os nervos.

Fidêncio olhou vagamente para o teto, para as paredes, para os móveis, indeciso, abstrato, metendo a mão entre o cós das calças e a camisa para acariciar o fígado. As paredes brancas, dum branco sujo, apertavam-no. O retrato de Saldanha Marinho morria no quadro de madeira preta, na tinta pardacenta da litografia ordinária, salpicada de excremento de moscas. Mais abaixo o Sonho de Pio IX, salientado pelo dourado velho da moldura, degenerava numa confusão de pernas largas e de seios pontudos, de taças redondas e de flores chatas, de batinas e coroas num plano só, sem perspectiva. Do outro lado Ganganelli, entre as quatro obreias verdes, na alvura duvidosa do papel de impressão, erguia a mão sem vida segurando os raios pontificais, longas linhas trêmulas e quebradas, a crayon, para fulminar a Companhia, representada por um padre moço e barbado, mas muito branco, barba tesa e braços enormes, parecido com D.Vital. E por baixo, a custo, aparecia, na meia-tinta, a legenda, em versais gastas, mal impressa e incorreta: O PAPA CLEMENTE XIV EXTINGUE A COMPANHIA DE JESUS. VIDE O TEXTO.

Na parede da esquerda, próximo à porta da rua, o cabide parecia sustentar a custo o velho chapéu de pele de lebre, o velho guarda-chuva cor de pinhão e a opa do Santíssimo Sacramento, que tinha agora uma aparência desmaiada, de velho balandrau surrado em procissões e Nossos-pais sem conta; e o candeeiro de petróleo lançava do grande bojo de vidro ordinário, faceado, uma luz amarelada e baça, com reflexos esverdeados de azeite de mamona.

Tudo parecia mais velho; as mesas, os tinteiros, os bancos, a cadeira de palhinha. Do chão escuro e fétido, do teto negro, das paredes úmidas, dos móveis, das roupas, dos contornos de todos os objetos, dos quadros parietais, dos gestos dos personagens, da sua fisionomia dura e chata de figuras malfeitas, vinha como uma emanação de tédio, que ia subindo, espalhando-se pela casa, e depois saía pela janela, para lançar-se sobre a vida toda, estúpida e molhada.

Fidêncio abriu os braços, retorceu-os num espreguiçamento, vergando o corpo para trás, desarticulando as mandíbulas num longo bocejo, e deixou escapar um grito agudo e prolongado que cortou de chofre o silêncio do dia. Na casa fronteira abriu-se um pouco a janela de pau pintada de azul, e pela frincha estreita, uma mulher espiou, curiosa.

A Maria Miquelina, equivocando-se, gritou da varanda:

- Já vai, já vai, seu Chico, tenha um mocadinho de paciência.

- Ah, o café! disse o Fidêncio, sorrindo.

Ressoaram no corredor as tamanquinhas da caseira azafamada.

- Pensei que era o café de João Pinheiro! exclamou quando a mulata apareceu à porta da sala, trazendo na mão uma grande xícara de louça azul, de que saía um fumo tênue e um odor forte a café quente.

- Que João Pinheiro, seu Chico?

- Não sabes a história do João Pinheiro, rapariga!

- Como havera de saber, seu Chico? só se era o João Pinheiro que matou outro dia o Joaquim Feliciano naquele encontro da beira do lago...

- Não, Maria Miquelina João Pinheiro era um fazendeiro da minha terra, muito conhecido e apatacado

- Pois como eu havera de saber dele, se eu nunca estive lá nesses Rio de Janeiro...

E, intrigada, a caseira colocou sobre a mesa grande a palangana de café, e pôs-se a interrogar o professor com os olhos.

Fidêncio começou, narrando:

- João Pinheiro era um fazendeiro apatacado, mas muito amigo de guardar o que tinha. A fazenda dele ficava à beira da estrada e era escolhida pelos viajantes para descansarem durante as horas mais quentes do dia, pois era justamente no meio do caminho da cidade... da cidade... enfim, duma cidade para outra. Sempre que chegava algum viajante, João Pinheiro gritava para dentro:

- Moleque, traze café para este homem.

O moleque, lá de dentro, respondia:

- Já, sim, siô.

O viajante ficava com a boca doce, esperando refrescar-se com o cafedório do João Pinheiro.

Passava um quarto de hora... e nada.

- Moleque, olha esse café! gritava o fazendeiro.

- Já vai, sim, siô.

O viajante, que já estava com a garganta seca de engolir em falso, concebia uma esperança.

Passava outro quarto de hora... e de café, nem lembrança.

- Moleque, vem ou não vem esse café? perguntava o João Pinheiro.

E o moleque:

- Já vai já, sim, siô.

O viajante puxava o relógio, sentindo não ter tempo de esperar que fizessem o fogo.

Passava outro quarto de hora:

- O moleque do dianho, então esse marvado café não vem hoje?

- Já vai agora mesmo, meu siô.

O viajante levantava-se e despedia-se, farto de esperar.

- Este dianho de moleque, dizia o João Pinheiro, apertando a mão ao hóspede, esse dianho de moleque é assim mesmo.

E acrescentava muito aborrecido:

- Que vexame sair V.S.a sem beber café!

Montando a cavalo, o viajante ouvia ainda o moleque gritar lá de dentro:

- Já vai, sim, siô.

A Maria Miquelina pôs as mãos nas ilhargas, rindo muito.

- Este diacho de seu Chico tem cada história! Pois o homem havera de fazer isso mesmo?! Ara tome lá o seu café, que este não é do João Pinheiro.

Fidêncio sorveu o café, gole a gole. Depois a caseira voltou para o seu trabalho, e o professor foi procurar alguma coisa que ler. Era preciso matar o tempo.

Acendeu um cigarro, abriu uma gaveta e procurou entre vários folhetos de diversas cores e tamanhos um que lhe desse vontade de reler. Eram panfletos anticlericais, com títulos prometedores: Os jesuítas desmascarados. A maçonaria e a Companhia de Jesus. Os jesuítas, simplesmente. As astúcias de Roma. A questão religiosa. A Igreja e o Estado. O jesuíta na garganta, cena cômica. Os lazaristas. Recurso à coroa... uma infinidade! Todos com pseudônimos: Ganganelli, Sebastião José de Carvalho, Fábio Rústico, Um livre-pensador, Um verdadeiro católico, O velho católico, O padre Jacinto, Jacolliot... o diabo! Obras de erudição, discursos declamatórios, panfletos virulentos, de escacha-pessegueiro, que trituravam, moíam e reduziam a pó a Igreja, o papado, os bispos e os homens de roupeta, pondo em pratos limpos, com segurança indiscutível, a história da papisa Joana, os crimes dos Bórgias, os horrores da inquisição e os sofismas audaciosos do Sr. D. Antônio. Ali, naqueles folhetos, discutia-se com lucidez e verdade a questão religiosa! Faziam-se estatísticas, enumeravam-se as vítimas da inquisição na Espanha, as mortes da noite de S. Bartolomeu, em França. Mostrava-se o que era Roma, explicavam-se as patifarias dos cardeais, somavam-se os milhões roubados da Companhia de Jesus. Não havia fugir. Estava ali provado, perfeitamente provado, e o que os padres respondiam eram sofismas.

Fidêncio tomou um dos folhetos, grande, massudo, de capa amarela e tipo doze. Intitulava-se: A mônita secreta, por Um antigo jesuíta. Era incrível o que aquele livro dizia. Era um horror!

Francisco Fidêncio foi buscar à mesa grande o Magnum Lexicon, colocou-o sobre a extremidade dum dos bancos, para lhe servir de travesseiro.

Deitou-se no banco, ao comprido, trançou as pernas, tirou uma fumaça do cigarro e abriu o panfleto, murmurando:

- Patifes!

Um livro assim é que ele queria ter escrito. Quisera ter sido jesuíta, conhecer todos os segredos da Ordem, apanhar-lhe as manhas, e depois vir a público, com uma coragem extraordinária, pôr pela imprensa todas aquelas bandalheiras a nu.

Um dia ainda reuniria em folheto as suas correspondências, formaria um folheto como aqueles, de capa de cor, com o título pomposo em letras gordas e com um pseudônimo. O seu pseudônimo seria: o padre Quelé. Era de arromba! Ninguém ficaria sério, lendo-o. O diabo era não haver em Silves uma tipografia!

Esta idéia de publicar um livro, de ver os seus artigos reunidos em folheto, com capa e frontispício, enraizara-se-lhe no cérebro, enquanto percorria distraidamente as páginas do panfleto que tinha nas mãos, sem entender o que lia. Que prazer seria o seu! Podia vir a ser citado - o autor do livro tal... o espirituoso e erudito padre Quelé (pseudônimo)... um escritor de pulso que zurze desapiedadamente os padres... O livro podia ser intitulado Carapuças romanas, por exemplo, ou então podia ter um nome pomposo: Os vampiros sociais ou simplesmente Os abutres.

E logo lhe parecia estar vendo o folheto in-octavo, bom tipo, papel acetinado, capa verde, com o seguinte frontispício aparatoso:

OS ABUTRES

PELO

PADRE QUELÉ

187.

MANAUS

TIP. DO "DEMOCRATA"

E numa prosa fluente, argumentação cerrada, vigoroso estilo e linguagem castigada, um panfleto mordente e verdadeiro, contando as bandalheiras inqualificáveis do vigário de Silves, reproduzidas das correspondências do Democrata e entremeadas de citações latinas, de apóstrofes veementes a Roma e ao senhor bispo, de exclamações bombásticas e de calemburgos de fazer rir as pedras.

Padre José ficaria bem sovado... mas o diabo era que Padre José estava morto, e o Chico Fidêncio não gostava de dar em defunto. Demais, o que escrevera sobre o falecido vigário não era suficiente para dar um livro de cento e vinte páginas, pelo menos.

O bom era sovar também a padre Antônio de Morais.

Fidêncio largou o panfleto e pôs-se a cismar, achando a idéia impraticável.

O finório do padre era irrepreensível. A sua vida simples e clara não se prestava à crítica!

Fidêncio procurava analisar, por miúdo, a vida do novo vigário de Silves, rebuscando no íntimo dos fatos algum sintoma de fraqueza ou de hipocrisia. Recapitulando, nada lhe escapava.

O padre levantava-se cedo, às seis horas, lia o breviário e passava a dizer missa. Depois da missa, confessava, e ao sair, no adro, palestrava com os homens, indagando da saúde de cada um, muito cortês, dando conselhos úteis de higiene privada. Terminada a aula de religião que dava aos meninos, recolhia-se a concertar com o lorpa do Macário sacristão sobre as necessidades do culto. Jantava às quatro horas, saía a dar um breve passeio pelos arredores da vila, a espairecer, sempre sério, de olhos baixos, compenetrado do dever de dar o exemplo da sisudez e da gravidade. Voltava às seis horas, ao toque de Ave-Maria, descoberto, passeando lentamente, recolhia-se ao quarto a ler o breviário. O Macário, vitorioso e néscio, saía à porta, ardendo por dizer a toda gente que S. Rev.ma estava em casa estudando.

Os batizados e casamentos, atrasados um semestre, um ou outro enterro, achavam-no sempre pronto, nada exigente quanto a propinas, observando com afetado escrúpulo a tabela do bispado, e fechando os olhos à qualidade maçônica do padrinho, do defunto ou do nubente.

O próprio Chico Fidêncio, para o experimentar e fazer escândalo, servira de padrinho a um rapazito do Urubus.

Padre Antônio acudia com os últimos sacramentos a qualquer doente, por mais pobre e desamparado que fosse, levando-lhe o Nosso-pai com um cerimonial vistoso, ao toque dos pequenos sinos da Matriz e ao som da cantoria roufenha e monótona dos beatos, o Fonseca, o Valadão, o João Carlos e outros, que apareciam ao primeiro sinal e corriam a disputar as cruzes e as lanternas com que haviam de formar o acompanhamento. Fidêncio, envergando a opa encarnada do Santíssimo Sacramento, lá seguia atrás, de tocheiro em punho. E padre Antônio, embrulhado na capa-magna, apertando o Viático contra o peito, em atitude de unção e respeito, caminhava lentamente sob o pálio, solene e absorto, alheio ao que se passava em derredor, como um homem que consigo levava um Deus. Na frente, o Macário badalava.

Na encomendação dos finados, a sua voz simpática tinha modulações melancólicas, repassadas de infinita saudade, como se aquele morto tivesse em vida ocupado o seu coração e o seu espírito, ou como se, ante o terrível nada da morte, uma dor latente lhe mordesse o peito, fazendo sentir a nulidade da existência desse verme pretensioso que se chama o homem... Havia talvez em tal melancolia o profundo desalento de quem se sabia sujeito àquela mesma transformação hedionda da morte, apesar do apego à vida do moço de vinte e dois anos, que a filosofia tremenda do memento contrariava cruelmente... Mas o povo, fanatizado pelos homens de roupeta, não via na comoção do vigário senão mais uma prova da bondade de S. Rev.ma, do modo cabal por que sabia desempenhar os deveres do seu cargo, compenetrando-se do papel que tinha de representar. Não seria padre José, sempre alegre, barulhento, caçoador e pândego, que se mostraria assim pesaroso da morte dum seu paroquiano!

O espertalhão do padrezinho, pensava Fidêncio com uma admiração involuntária, soubera tornar-se o objeto exclusivo da atenção e curiosidade de toda a população de Silves e dos arredores. A fama chegara a Serpa, fora a Maués, voltara pelo Amazonas acima até à cidade de Manaus. Nunca naquela redondeza se vira um vigário assim tão compenetrado dos seus deveres, tão sério, afável e pontual. Diante dele os homens modificavam a sua linguagem habitual, falavam em coisas sérias, em pontos de doutrina cristã, cheios de respeito. O ardor maçônico esmorecia, apesar dos esforços em contrário tentados por Francisco Fidêncio Nunes. As qualidades morais que o pároco afetava provocaram uma reação favorável no espírito daquele povo indiferente em matéria religiosa. O professor Aníbal Americano Selvagem Brasileiro, concertando os óculos de tartaruga e cuspindo longe, falara em fundar um jornal que defendesse os interesses da Igreja e doutrinasse os tapuios dos sítios do Urubus e adjacências. Devia chamar-se a Aurora cristã e publicar-se de quinze em quinze dias, com dois mil-réis de assinatura trimensal. A dificuldade estava em arranjar a tipografia, custava um dinheirão, era preciso abrir uma subscrição popular, ninguém que se sentisse com crenças religiosas seria capaz de negar o seu óbolo, e podiam pedir o auxílio da Caixa Pia e da Câmara Municipal, concorrendo esta com cinqüenta mil-réis por ano para a publicação das atas. O João Carlos lembrara, por economia, o jornal manuscrito, mas o professor Aníbal repelira energicamente a idéia como atrasada e trabalhosa. Queria ler-se em letra de forma! Afinal quando se fizera a subscrição para a compra da tipografia dificilmente arranjaramse quarenta mil-réis. O vigário, consultado, desanimou o Aníbal, mostrando-se infenso ao projeto, já pela falta de competência dele vigário para dirigir uma imprensa católica, já porque não queria alimentar ódios e dissensões na sua paróquia. Aníbal Brasileiro retirara-se enfiado. Deixara de ir à missa e viera dizer ao Chico Fidêncio que a lembrança que tivera não passara duma pilhéria, dum meio de experimentar o ardor religioso daqueles beócios que andavam todos os dias a falar em catolicismo. Mas Fidêncio bem o conhecia, para cá vinha de carrinho o tal Sr. Aníbal!

Este último ato de padre Antônio de Morais agradara muito ao Chico Fidêncio. Padre Antônio mostrava ser homem de juizo.

O malogro da tentativa do professor Aníbal não destruíra os resultados das palavras e ações do novo vigário de Silves. A missa de todas as manhãs era bastante concorrida, à ladainha da noite ninguém faltava, o Nosso-pai nunca saía sem numeroso acompanhamento. As crianças corriam a instruir-se na doutrina do catecismo do bispado, as devotas confessavam-se, os casamentos amiudavam-se, fazendo diminuir as mancebias... Tudo se encaminhava para a reforma que padre Antônio pretendia fazer para glória de Deus e desempenho do honroso encargo que lhe fora confiado por S. Ex.a Rev.ma.

Em tais condições, com um padre como aquele, que se dava ao luxo de ser impecável, que faria, que escreveria Fidêncio, como comporia o seu belo folheto de cento e vinte páginas, com capa verde e frontispício pomposo? Um mês era decorrido, um longo mês de observação, de análise, de estudo, e os seus ataques contra o padreco catita e apelintrado não tinham ainda podido ir além da batina nova, do penteado, dos punhos engomados e dos olhos baixos de padre Antônio de Morais. Era pouco para um folheto de cento e vinte páginas!

Um relógio da vizinhança bateu duas pancadas argentinas. Francisco Fidêncio arremessou contra a parede o folheto que não lia e que esparralhou pelo chão as folhas soltas.

A chuva cessara, mas o ar estava ainda muito carregado de vapores aquosos. Uma réstia de sol, muito tênue, penetrava, avivando num ponto o encarnado da opa do Santíssimo. As tamanquinhas da Maria Miquelina faziam-se ouvir no corredor.

- Quando vuncê quisé jantar, seu Chico, a janta está quase pronta.

- Maria Miquelina, disse Fidêncio, muito sério. O tal padrezinho ou é um santo ou um refinadíssimo hipócrita.

A caseira contestou:

- Ara, seu Chico...

- Pelo sim, pelo não, exclamou Fidêncio erguendo-se, numa resolução assentada. Pelo sim, pelo não, vou passar-lhe uma descalçadeira.