O hóspede devia partir, deixando o repouso do sítio da Sapucaia, para demandar, no ligeiro ubá de João Pimenta, as paragens perigosas do porto dos Mundurucus, procurando converter ao cristianismo os índios daquela guerreira tribo, cujo sangue corria nas veias da afilhada de padre João da Mata. Era uma empresa heróica, até certo ponto inexplicável para a Clarinha, que não compreendia o móvel verdadeiro da dedicação incrível daquele rapaz de vinte e três anos pela salvação eterna de selvagens desconhecidos, esforço inútil talvez, e que, em todo o caso, não merecia ocupar de modo tão absoluto um padre moço, cheio de vida e belo na sua palidez de convalescente. Não fora com risco de vida que padre João chamara ao grêmio da religião o tuxaua mundurucu que senhoreava agora o pitoresco sítio da Sapucaia, nem mesmo lhe coubera a iniciativa dessa obra de civilização e paciência. Facilitara-lhe muito a tarefa a moça que o Jiquitaia, como se chamava na sua tribo o avô de Felisberto, raptara em Serpa, e que, conformando-se heroicamente com a triste sorte que lhe tocara em partilha na vida, se esforçara por arrancar o tuxaua à vida nômade acenando-lhe com o lucro da colheita do guaraná, e animando-o a ir, furtivamente a princípio, e pouco a pouco às claras, à vila da Conceição de Maués, trocar o produto do trabalho por espingardas, pólvora, chumbo, corais e ricos vestidos de chita de cores vistosas. Depois ela o induzira a batizar a sua única filha, a Benedita, e a receber também por sua vez as águas lustrais do batismo e logo em seguida a matrimoniar-se, para fazer cessar aquele grande escândalo que padre João da Mata, vigário de Maués, não queria ver na sua freguesia, composta na maioria de índios mansos, mundurucus batizados, que ele desejava conduzir pelo caminho da virtude. A catequese do Jiquitaia, que tanta glória dera ao vigário de Maués, fora feita na vila, com descanso e tempo, sem risco de vida nem incômodos de viagem. Padre João da Mata o arrancara à barbaria, batizara-o, casara-o e o estabelecera naquela linda situação do furo da Sapucaia, a que depois o padrinho da Clarinha tanto se afeiçoara, e onde morrera, cedendo à força de velhos achaques e moléstias, mas tranqüilo e repousado, abençoando a afilhada e ouvindo o canto mavioso dos rouxinóis e dos sabiás nas mangueiras do terreiro. Isso sim, era fazer uma catequese. Mas deixar todos os cômodos e gozos que a vida proporciona a um padre moço e formoso, para se aventurar pelos rios do sertão em busca de índios bravos, não era natural, a Clarinha não o compreendia. Padre Antônio tinha um ar de tristeza resignada que lhe falava ao coração. O seu porte elevado, raro dote no Amazonas, a fisionomia jovem e simpática, a regularidade das feições, e, sobretudo, a melancolia profunda de que eram repassadas todas as palavras que dizia, impressionavam a neta de João Pimenta, acostumada às galhofas alegres e às severidades bruscas do finado padre santo e à quase imbecilidade do irmão e do avô. O hóspede tinha hábitos duma elegância desconhecida, naturalmente apreendida nas cidades em que bebera a instrução que o sagrara superior aos outros homens. A batina e o solidéu iam-lhe admiravelmente, as camisas brancas e finas do finado colega, cuidadosamente engomadas pela Clarinha, eram substituídas todos os dias, e saíam-lhe do corpo tão limpas como as havia vestido. Logo que se levantou da cama, onde o prostrara a moléstia, barbeara-se de fresco, e repetira diariamente a operação com as navalhas que haviam servido ao vigário de Maués, e que o Felisberto guardava religiosamente na sua caixa de papelão. A voz, a estatura, o trajar, os hábitos de asseio e de elegância, uma graça e distinção que debalde se procuraria nos raros visitantes do sítio da Sapucaia, unindo-se ao prestígio da batina, atuavam de tal forma sobre a neta de João Pimenta que ela se sentia acanhada e trêmula diante daquele moço que lhe parecia não um homem, nem um padre, mas um ente superior. A sua jovem imaginação de matutinha de quinze anos não estava longe de o supor um Anjo do Senhor, desses de que lhe falava a mãe, nas longas narrativas ao pôr-do-sol, à beira do igarapé, e que vêm ao mundo disfarçados para experimentarem a virtude dos homens. Mais a confirmava nessa crença a persistência do hóspede em se partir dali sem mais demora para ir ao porto dos Mundurucus pregar o Evangelho a selvagens estúpios e ferozes, o que, no modo de pensar da moça, o colocava muito acima da humanidade. Entretanto ela o vira chegar, pálido e sombrio, exausto de forças, a morrer de fadiga, e depois, subjugado pela febre, com os grandes olhos negros ardentes e fixos, balbuciante, alheio a tudo que se passava, parecendo ter perdido a inteligência naquela luta do seu corpo vigoroso com a moléstia cruel que o derribara. Mais tarde erguera-se convalescente, ainda pálido, mas de olhos baixos, teimosamente fechados, como se não precisasse deles para ver o caminho da vida, que a mão inflexível do destino lhe traçava; e uma melancolia profunda cobria aquele belo semblante, como se uma irremediável desgraça para sempre lhe tivesse arrancado a alegria do coração. Então naquelas faces pálidas, naquela boca triste, naquela fronte sombreada por uma preocupação visível, a moça, advertida pelo seu instinto de mulher, reconhecia o homem agitado por sentimentos fortes, adivinhava a luta íntima, embora para ela intraduzível, que se travava no cérebro daquele rapaz elegante, daquele formoso padre de vinte e três anos. Que seria? Que dor amarga lhe torturava o coração? Que inexplicável tristeza era aquela, que só parecia comprazer-se na vasta solidão da mata virgem, ou na dedicação sem limites por uma causa que se dizia sublime mas que ela reputava inútil? Problema insolúvel para a sua pobre perspicácia de matutinha de quinze anos, que não sabia ler naquele semblante austero e meigo, nem ver naquela boca séria e triste senão a simpática melancolia que invencivelmente atraía a compaixão e a ternura.

O hóspede ia, porém, partir. Em breve seguiria no ubá de João Pimenta, em demanda de paragens desconhecidas, no cumprimento do seu destino indecifrável. Tudo aquilo acabaria, e o moço talvez nem conservaria da neta de João Pimenta a recordação das suas feições de rapariga, que ele jamais olhara francamente, na teima dos olhos baixos. Mas a figura elegante daquele mancebo triste jamais se apagaria da memória da Clarinha. Para sempre lhe ficaria gravada no coração a lembrança daquelas pálpebras quase cerradas, brancas, com as longas pestanas trêmulas.

E agora uma infinda tristeza a perseguia, nos vagares da vida suave e monótona do sítio.

O serão daquela vez durara pouco tempo, e padre Antônio de Morais, vendo a Clarinha e os dois homens retirar-se, logo depois do café, sentira-se isolado, todo entregue à enorme agitação que o possuía, e que a presença da família o obrigara a dominar por um ingente esforço de sua inquebrantável vontade. Depois que entrara em convalescença, todas as tardes, ao escurecer, reuniam-se o avô e os netos no quarto que fora de padre João da Mata e que lhe haviam dado como o melhor da casa. Felisberto, sentado sobre os calcanhares, repetia a já muito conhecida história do finado padre santo e dos seus fregueses de Maués. João Pimenta, de pé no liamiar da porta, ouvia silencioso, rindo às vezes das pilhérias insulsas do neto, mascando o seu tabaco com um prazer egoísta; e a Clarinha, sentada aos pés da cama do padre, num banquinho de pau, seguia a sua tarefa de costura, interrompendo-se somente para cortar com os pequenos e alvos dentes a linha com que cosia, e da qual, às vezes, um fiozinho lhe ficava na boca, avivando-lhe o encarnado dos lábios.

Lá fora ouviam-se a chiadeira dos grilos e o pio agoureiro de alguma ave noturna, cortando o silêncio das matas. A preta velha trazia o chá de folhas de café com farinha-d'água, o Felisberto continuava a falar, o João Pimenta mascava ainda e a Clarinha cosia, ligeiramente séria, parecendo ter a atenção presa à costura, apesar das distrações freqüentes que lhe valiam picadas da agulha vingativa. Daquela vez, porém, a monotonia do serão fora alterada por um acontecimento inesperado, cujas possíveis conseqüências lançavam o espírito de padre Antônio de Morais no mais cruel desassossego.

João Pimenta entrara de chapéu na mão, com ar de quem tinha alguma coisa a dizer, mas não se atrevia a abrir a boca, como se um nó lhe apertasse a garganta. Depois de algum tempo de hesitação e silêncio, o neto falara por ele, explicando que o João Pimenta precisava ausentar-se por alguns dias, para ir a Maués, a negócio de muita importância. Tratava-se de levar à vila as frutas colhidas no sítio, antes que apodrecessem, e o guaraná que haviam colhido à margem do Carumã e que era encomenda da família Labareda, gente muito séria, incapaz de lograr a quem quer que fosse e muito amiga de receber a tempo as encomendas que fazia. Ora estando aprazada a viagem de S. Rev.ma para o dia seguinte, o velho tuxaua encontrava-se em grande embaraço, receando lhe apodrecesse a fruta e se descontentasse a respeitável família Labareda. Felisberto não podia deixar o sítio naquela ocasião, por causa da roça que exigia os seus cuidados diários. O único remédio era o senhor padre ter um bocado de paciência, e esperar a volta do ubá para seguir em busca do porto dos Mundurucus. Era coisa de pouca demora, uma semana quando muito, e se isso não desagradava muito ao senhor padre, o pobre tuxaua João Pimenta ficaria contente:

- Principalmente por causa das frutas e da família Labareda, terminou o Felisberto, resumindo as razões da insistência do velho.

Padre Antônio ficara contrariado, mas que remédio! Tivera de aceder ao pedido, dizendo em tom grave que ficaria muito aflito se soubesse que a sua permanência ali causava transtorno aos donos da casa. Fingira muita resignação diante da alegria manifestada por João Pimenta, que arreganhara os dentes numa risada estúpida, soluçada e nervosa, e por Felisberto, que a contivera numa frase do seu latim do sertão; e não pudera mesmo o padre deixar de corresponder com um sorriso ao longo olhar, cheio de carícias, com que a Clarinha lhe agradecia o sacrifício. Mas agora, que se haviam retirado para tratar dos arranjos da partida do velho tapuio, agora que se achava sozinho, entregue a si mesmo, meditando sobre as conseqüências que podia ter a demora no sítio encantador da Sapucaia, aquela aparente resignação se transformava numa agitação enorme, num quase desespero, como se, náufrago na corrente caudalosa do Amazonas, visse afastar-se para longe a tábua de salvação. Um profundo terror, filho da desconfiança das próprias forças, começava a encher-lhe o coração, dando-lhe o antegosto das torturas que o aguardavam naquela casinha rústica e agradável, e que juntas às cruciantes dores já sofridas no silêncio do seu modesto quarto, iam talvez despenhá-lo no abismo da depravação e do pecado. Porque agora que a iminência do perigo o assoberbava, que, ante a cumplicidade criminosa da sorte, a sua coragem desmaiava, padre Antônio de Morais, o casto, o puro, o severo vigário de Silves, o ardente missionário da Mundurucânia era obrigado, num sério exame de consciência, sondando o fundo do seu coração da padre, a confessar, corrido de vergonha e de nojo, que estava louco e cinicamente apaixonado pela neta de João Pimenta, por aquela mameluca que padre João da Mata escondera nos sertões de Guaranatuba, e cuja primeira vista lhe fizera impressão tão desagradável. As fastidiosas histórias do Felisberto lhe haviam despertado o desejo de conhecer melhor essa rapariga, criada com tanto cuidado e zelo pelo defunto padre santo, e sem que o respeito, que a si e ao seu caráter sacerdotal devia, lhe corrigisse aquele movimento insensato de curiosidade profana, cometera a imperdoável imprudência de levantar os olhos para essa mulher, que o seu anjo da guarda lhe aconselhava que evitasse, como se o advertisse da aproximação dum inimigo. Olhara, e maravilhara-se na contemplação da mais formosa mameluca que jamais vira em sua vida, se mameluca se podia chamar a quem só muito de leve acusava os caracteres físicos da raça americana, e que, pela graça ingênua, pela viva inteligência que revelava nos grandes olhos pretos, sempre banhados em ondas duma volúpia ardente, parecia filha dum outro continente. Olhara e compreendera o feroz ciúme com que nos seus últimos anos de vida, padre João da Mata escondia do mundo aquele inapreciável tesouro de graça e formosura, e o esquecimento em que deixava os deveres paroquiais para passar os dias na adoração daquela criatura angélica, formada por um capricho da natureza, e condenada pelo destino a viver no sertão do Alto Amazonas entre um velho índio boçal e um padre cheio de achaques. A que vida, entretanto, a destinava? Que sorte lhe proporcionaria o padre santo nos sertões de Guaranatuba? Não haviam sido feitas para rústicos misteres aquelas mãozinhas delicadas, gordas e polpudas, cujo único préstimo parecia ser o de acariciar uma face amiga; aqueles pés pequenos, nervosos e bem-feitos não correriam sem se magoarem por sobre o duro capinzal do campo; aquela cintura fina e graciosa não era para ser abraçada por um pesado tapuio acachaçado nas danças do batuque sertanejo ou nos grosseiros afagos dum noivado desigual. E daí em diante, desde esse fatal momento em que o seu anjo da guarda velara a face, deixando-o sujeito às tentações do inimigo da sua alma, que teimava em infiltrar-lhe nas veias o sutil veneno da volúpia, não tivera o padre um só momento de repouso, principalmente durante a noite, não lhe sendo permitido conciliar o sono. A imagem da linda mameluca, beleza extraordinária na verdade - ou criação fantástica de sua imaginação doente, dos seus sentidos excitados, não o sabia ao certo -, não lhe saía da lembrança, com os seus cabelos cheirosos, os grandes olhos pretos e a pele acetinada, entrevista um dia entre o cabeção traidor e a leve saia de chita... Passara noites horrorosas! No silêncio do seu quarto solitário, embalado na alva rede de linho que substituíra a marquesa de padre João da Mata, padre Antônio de Morais, o puro, o casto, o ardente missionário da Mundurucânia, confessava-o agora pela primeira vez, falando francamente consigo mesmo, entregara-se insensatamente àquele amor que se apoderava bruscamente do seu coração de sacerdote de Cristo, estremecendo de horror pelo pecado que cometia como se já estivesse condenado às penas eternas com que outrora ameaçara os seus ouvintes de Silves. Os terrores que no Seminário, nas longas vigílias das suas tristes noites de recluso, o perseguiam, repetindo-se em Silves nas horas de ócio, nas agitações doloridas dum espírito desocupado, haviam voltado com maior intensidade, porque vinham acompanhados da convicção de que estava vencido pelo espírito maligno, auxiliado pelo negrume brilhante dos olhos da mameluca. Ardera em febre de desejos, e desmaiara de terror à idéia duma condenação infalível, que se julgava incapaz de evitar. Revolvera-se na rede, abraçara-se aos punhos, cobrira-os de beijos doidos num espasmo voluptuoso, como se sentisse ao pé de si o corpo da Clarinha, macio e flexível como o linho que apertava nos braços. Mas sempre lhe parecera que a rede se transformava num braseiro e que as garras do demônio se lhe entranhavam nas carnes palpitantes, longa e dolorosamente.

Sim, foram noites dum sofrer sem fim! A castidade guardada por muito tempo no meio das baixas devassidões, de que fora testemunha na infeliz e atrasada sociedade em que vivera os últimos tempos, desequilibrava-lhe o cérebro num delírio de gozo, numa sede de amor sensual e ardente que ameaçava tornar-se irresistível, obscurecendo-lhe a razão, e fazendo-lhe perder a noção da dignidade do sacerdócio que tanto prezava! A ignorância quase completa da mulher física desregrava-lhe a imaginação, prometendo-lhe gozos supremos e inesgotáveis delícias, um mundo desconhecido de prazeres inexcedíveis no delírio da sua carne jovem e vigorosa. Mas o inferno! Essa crença inabalável numa vida eterna de suplícios indescritíveis, que bebera no leite da ama e se lhe avigorara no Seminário, enchia-o dum terror profundo que o aniquilava.

Para que o tratara a mameluca com desvelos de mãe e de 'irmã, dando-lhe gozos desconhecidos, a ele, que da primeira infância recordava apenas as carícias raras e tímidas da mãe desmoralizada pelas amásias do marido, e da adolescência e virilidade só tinha a aridez e o austero isolamento da sua vida de padre católico? Como ainda nesta noite, em que o Pimenta lhe participara a próxima viagem a Maués, a presença da rapariga, a sua voz velada e cheia de doçura, despertavam-lhe no coração uma emoção nova, uma ternura de criança afagada, um estremecimento fagueiro que o inundava do contentamento de ser amado, de ser o alvo' de todas as atenções duma mulher, de sentir-se protegido, e ao mesmo tempo lhe trazia lágrimas aos olhos com uma grande vontade, reprimida a custo, de banhar com o seu pranto as mãos delicadas daquela criatura bonita e bondosa que lhe velara à cabeceira, como a um enfermo querido. Nessas ocasiões sentia-se bem, sem ambições nem desejos, a paixão transformava-se num afeto doce, sereno, sem sobressaltos, e para viver assim, envenenando-se lentamente, para gozar a presença e os cuidados da moça, de bom grado prolongaria a convalescença. Mas quando à noite a Clarinha se retirava, recaía ele nos ardores da paixão que o queria dominar. A ausência lhe recordava as formas voluptuosas, os lábios rubros, o olhar demoníaco, e a lembrança o mergulhava na mais áspera sensualidade. O regime dietético que seguira, o repouso absoluto a que o forçavam, excitariam o seu temperamento sensual, robustecendo os instintos egoísticos do matuto, criado ao pleno ar, na mais completa liberdade, ou um agente estranho, um ser independente e autônomo tomara a tarefa de o rebaixar a um tal animalismo? Não o sabia, ou antes, acreditava de preferência na constante tentação que o perseguia desde o Seminário e contra a qual lutara sempre vitoriosamente, dominando-a com jejuns e penitências. Mas a triste verdade era que no silêncio da noite cálida, naquele quarto outrora habitado por um padre desregrado e astucioso, longe do mundo e das conveniências sociais, reaparecia o matuto a meio selvagem que saciava o apetite sem peias nem precaução nas goiabas verdes, nos araçás silvestres, nos taperebás vermelhos, sentindo a acidez irritante da fruta umedecer-lhe a boca e banhá-la em ondas duma voluptuosidade bruta. Então era o demônio que o fazia voltar aos tempos idos de mocidade e de fogo para melhor o queimar naquele inferno indescritível de sensualidade. O gozo se tornava necessário e fatal; conveniências do estado, crença religiosa, escrúpulos de homem honesto, tudo cedia ao seu imenso amor. Consumia-se em ardores estéreis, agarrado aos punhos da rede, numa ânsia louca de apertar nos braços um corpo fremente de mulher bonita, e desfalecia por fim, cansado, aborrecido, indignado, enjoado do cheiro a flor de castanheiro que o seu corpo exalava. Isto todas as noites! Com o dia vinha-lhe felizmente a calma, mas uma calma enganadora e perigosa, que não era senão o adormecimento provisório dos sentidos exaustos; e como remédio supremo, como tábua de salvação única, nesse pélago em que se afundavam a sua coragem e a sua virtude, só via a fuga, a partida precipitada daquela nova ilha de Calipso, encantadora e terrível. Reunira todas as forças de sua vontade numa resolução suprema, e marcara a viagem para o dia seguinte, sem atender aos pedidos de Felisberto e de Clarinha que o queriam deter, sob o pretexto de que não estava ainda bastante forte para os incômodos da empresa. Tudo estava pronto, dentro de poucas horas devia largar do porto da Sapucaia, dizendo um eterno adeus à visão sedutora que tanto agitara as suas carnes de vinte e três anos. Mas o inimigo de sua alma não se contentava com pecados de intenção, não estava satisfeito com tormentos infligidos à sua virtude nos estéreis ardores das noites em claro. Queria precipitá-lo duma vez no abismo de que se não volta, e suscitara ao estúpido tapuio a idéia de uma viagem a Maués para salvar as suas frutas e servir a família Labareda. Estava vendo naquela resolução inesperada a obra do demônio da cobiça, vindo em auxílio do demônio da concupiscência. Era um golpe decisivo que o inferno tentava contra a virtude austera do missionário, devotado de corpo e alma à causa santa da religião e do sacrifício, e o missionário, horror! sentia-se de antemão vencido, incapaz de mais longa resistência.

Sim, sentia-se vencido. Viver naquela casa, entre as paredes que haviam testemunhado os amores sacrílegos do defunto padre santo, vendo todos os dias a admirável criatura, que se apoderara do seu coração, enchendo os olhos das suas formas voluptuosas e do seu sorriso meigo, saber-se ali sozinho com ela, porque o Felisberto não entrava em linha de conta, longe do mundo, livre de olhares invejosos e importunos, era um sacrifício superior às suas forças.

Passeava agitado pelo quarto, receando a macieza da rede, tentadora como braços abertos de mulher bonita; já vencido, mas lutando ainda.

Reinava silêncio na casa. A família já estava acomodada.

Da outra banda do igarapé vinha um cheiro forte de baunilha e de cumari, que misturando-se à exalação das flores das laranjeiras do terreiro formava um perfume afrodisíaco que entrava pelas portas dentro e lhe subia ao cérebro, para o embriagar e tirar-lhe o último lampejo de razão que o esclarecia na luta travada com a sua carne desejosa e virgem.

Passou a noite toda de pé, com medo de se ir deitar, como se a rede o atraísse para o pecado; ora desesperado, sentindo a antecipação das penas do inferno, ora ardendo em desejos viris, pensando em abrir a porta, sair para a varanda e entrar à força no quarto da Clarinha, ora caindo em desânimo, maldizendo a covardia do Macário, que o incitara a fugir aos mundurucus do ubá, cujas flechas lhe teriam tirado a vida em estado de graça; maldizia também o encontro que fizera do João Pimenta e do Felisberto, a idéia que tivera de os acompanhar em vez de se deixar morrer de fadiga e de febre à margem do Canumã na vasta solidão do deserto. Morresse flechado por índios, em caminho de sua gloriosa missão, ou de cansaço e fome à margem de um rio desabitado, teria cumprido o seu destino na terra, deixaria um nome honrado e alcançaria a palma que não se nega aos mártires de Cristo; e Deus não deixaria de levar-lhe em conta a mocidade, os anos decorridos sem que jamais tivesse levado aos lábios a taça inebriante do prazer... Morreria jovem, sem ter conhecido da vida senão as suas dores e desgraças, sem ter sentido um coração de mulher palpitar de encontro ao seu peito vigoroso...

A repetição desta idéia de morte prematura começava a tornar-se-lhe antipática, estranha na situação em que se achava. Tudo era calmo e repousado em derredor; através das paredes de taipa caiada, ouvia-se o ressonar tranqüilo do João Pimenta e do Felisberto, alternando a respiração em sons agudos e graves, como à porfia de quem dormiria melhor; do outro lado, do lado do quarto de Clarinha, nenhum rumor se ouvia; lá fora haviam cessado as vozes noturnas da floresta no grande silêncio da madrugada. O frescor da brisa que penetrava pelas juntas mal unidas das portas, trazia um perfume suave de flor de laranjeira. Toda a natureza repousava, tranqüila e feliz na calma de uma noite estrelada e serena. Só ele não dormia, só ele não podia ter um momento de repouso, e pensava em morrer, maldizendo a vida. E por que morrer? A rede, a alva e macia rede que fora de padre João da Mata, oferecia-lhe o regaço de puro linho lavado, cheio de promessas. Por que não dormiria, ao menos para fugir à luta incessante que o torturava? Talvez que o sono lhe aconselhasse um meio de sair daquele combate que lhe devorava a alma e o corpo, permitindo-lhe achar uma transação da consciência com o amor irresistível pela linda mameluca de cintura fina e dentes brancos. Não seria possível essa transação prudente que acabasse de uma vez com a loucura que ameaçava sepultá-lo no abismo da depravação e da morte?

A rede, de que se aproximara lentamente, sentindo nos membros lassos um torpor suave que o convidava ao sono, e um ligeiro tremor que o frio da madrugada lhe dava, continuava a oferecer-lhe o regaço de linho, lavado e branco. Dentro de poucas horas o dono da casa seguiria viagem, e o mal, se mal havia a temer, seria irremediável. Por que entregar-se a um desespero estéril, teimando em privar-se dos gozos que a natureza proporciona à mocidade?

Não queria viver a vida que padre João da Mata gozara naquele sítio dos sertões de Guaranatuba, não sacrificaria todo o seu futuro à satisfação dos gozos impuros que o sangue de Pedro de Morais exigia imperiosamente, não, saberia dominar-se. Mas podia pecar uma vez, matar a enorme curiosidade do amor físico que o devorava, e resgataria a sua falta, indo resolutamente ao encontro dos ferozes mundurucus, para morrer às suas mãos pela glória da religião do Crucificado. Não era difícil recordar exemplos da história eclesiástica, que lhe servissem de precedente e lhe atenuassem o procedimento. A partir de Santo Agostinho, cuja mocidade fora um grande escândalo dos seus contemporâneos, o que o não impedira de vir a ser um dos maiores Doutores da Igreja, até ao famoso S. Jocó, passando por centenares de conversos, entre os quais o grande S. Paulo brilhava pelo esplendor da armadura divina, não faltavam casos de santos pecando contra a castidade e, depois, por um arrependimento sincero, ganhando um lugar no céu. Na modesta apreciação dos próprios méritos, padre Antônio de Morais não se achava em condições inferiores àqueles dois primeiros célebres pecadores, tocados da graça divina, pois não pensava em fazer como o filho de Mônica, que se chafurdara nos horrores da mais baixa devassidão, nem lhe passava pela cabeça cortar a Clarinha em pedaços, para esconder a falta, como fizera S. Jacó à pobre moça de família que lhe haviam confiado para a catequese.

Sentara-se num banco, sentindo muita fraqueza nas pernas, e ainda sem coragem de se meter na rede. Afinal de contas, que queria ele? Apenas satisfazer a imensa sede de gozo que o consumia, pagar o tributo ao sangue ardente que lhe corria nas veias, e ainda assim, entregando-se a um amor desinteressado e sem mescla de pensamento ruim. A rapariga ali estava, a pedir um homem de coração que a tomasse, e se havia de cair às mãos de algum tapuio boçal que colhesse aquela flor delicada, sem ao menos apreciar-lhe o valor, melhor era que a tomasse Antônio de Morais que se prezava de conhecer o que havia de belo e bom na natureza. Era um pecado? Era, mas para remir os pecados tinha padre Antônio o arrependimento, um arrependimento sincero, que o levaria até o martírio pela causa santa da religião que professava. Oh! ele bem sabia que resgataria aquela falta única da sua vida com o maior sacrifício que se pode exigir dum homem e mesmo dum padre. O seu caso não era, decididamente, pior do que o dos santos arrependidos, que renovavam os horrores dos gnósticos e picavam mulheres defloradas! Para as grandes faltas havia a grande misericórdia divina. O arrependimento lavava todas as culpas!

A argúcia lhe sorria, e ele próprio, com secreta vaidade, aplaudia a finura do sofisma e o bem lembrado da transação, pensando nos combates em que outrora vencera os silogismos do douto padre Azevedo. A luta íntima havia cessado, ele aproximara-se da rede, abrira-a, contemplando-a com um grande desejo sensual. Sentia-se outro homem, parecia-lhe que estava mais leve, que lhe haviam voado do cérebro umas nuvens que lhe tapavam os olhos da razão. Agora, sentado no fundo da rede, prestes a estender o corpo sobre o seio amoroso do alvo linho lavado, via tudo com a calma e segurança dum homem que não se deixa enganar por escrúpulos vãos. Admirava-se dos terrores infantis que o haviam perseguido, e começava a desconfiar de que não andara até ali o caminho do bom senso, mas um desvio da imaginação enferma.

Felizmente o senso comum do campônio, que as teorias e a disciplina do Seminário não lhe haviam tirado, espancava as dúvidas da mente escaldada pelo terror dum castigo imediato e que nada fazia prever. Adormecer na segurança do bem-estar atual, reservando para mais tarde os cuidados da salvação eterna, era a verdadeira filosofia prática que o amazonense adotava, que a floresta, o rio, toda a natureza amazônica ensinavam numa fresca madrugada. Adiar era ganhar tempo, sem perder coisa alguma; graças à infinita bondade do Criador sempre havia tempo para remir as mais graves culpas, e disso dera exemplo Cristo perdoando à Madalena os seus lúbricos amores.

Também o bom ladrão, apesar de ladrão, na mesma noite em que morrera, fora dormir no paraíso. Para que gastar as forças em sacrifícios sobre-humanos, quando se é jovem e a vida se arrasta lenta e desocupada? Para que recusar a taça dos deleites, como Cristo recusara a de amarguras, se era sempre tempo de pedir o remédio, repudiando sinceramente as alegrias mundanas?

Deitou-se, sentindo em todo o corpo o contato macio do linho, experimentando a sensação do viajante fatigado que toma um grande banho aromático, e nele deixa o cansaço, a poeira da estrada e as preocupações da viagem. Nunca pudera gozar a rede como a estava gozando, e agora, abraçado aos punhos, sentia a consciência limpa, o espírito lúcido, o coração desassombrado e alegre, e no aroma das flores de laranjeira e da brisa da floresta, que lhe entrava pelas juntas mal unidas das portas, com um perfume oriental de nardo, de sândalo e de canela, bebeu uma embriaguez suave que lhe pôs em mal definidas reminiscências o melancólico passado.

- Famoso maçador, o Felisberto, sempre à sua ilharga, deleitando-o com a prosa prolixa e incolor, recheada de latinórios nunca ouvidos! Para onde quer que fosse padre Antônio de Morais, o obsequioso Felisberto ia também, não por desconfiança, que não entrava facilmente naquele cérebro de tapuio, mas por cortesia, talvez por prazer, porque criado à sombra da sotaina, ao perfume das velas de cera ordinária da Matriz de Maués, a vila mundurucua, bebia os ares por coisas e pessoas da Igreja, mostrando-se orgulhoso e satisfeito na companhia dum sacerdote, com o desejo de o ter sempre ao pé de si, de possuí-lo todo para si, no ardor da sua veneração egoística. E não parecia desconfiar, o lorpa, do incêndio que lavrava no coração daquele padre, encontrado de joelhos à beira do Carumã, em missão de catequese e de religião! Por uma aberração inexplicável, nos seus menores atos revelava o Felisberto a intenção de lhe atirar a irmã à cara, como se para o neto do tuxaua a maior ventura e maior glória fosse ter um sobrinho que nascesse da Igreja, como o dava claramente a entender nas graçolas insulsas e pesadas com que mimoseava a irmã na presença do hóspede, cobrindo-os a ambos de vergonha. Era uma coisa inqualificável que enchia de repugnância o hóspede, e lhe dera vontade de se ir embora, sozinho, sem esperar o João Pimenta, e profundamente o desgostara. Mas não tivera ainda tempo de se abrir francamente com a Clarinha, de lhe dizer tudo que sentia, de lhe falar às claras, com o coração nas mãos. Algumas frases trocadas a furto, umas lisonjas medrosas de namorado calouro... e nada mais. O receio de desagradar, o pudor de sacerdote o impediam de aproveitar-se francamente da cumplicidade que as chufas do grosseiro tapuio lhe ofereciam. E como partir assim? Afinal de contas, pensava padre Antônio, ela não tinha culpa do que o irmão fazia.

Nessa manhã, no copiar da casa, banhado em cheio pelo sol brilhante de agosto que espalhava vida, luz e calor por todo o vale do Sapucaia, alegrando os pássaros do céu e os animais da mata, o Felisberto pela centésima vez contava como o padre santo João da Mata formara o sítio da Sapucaia para recompensar a dedicação do seu camarada João pimenta Em frente, ficava o curral do gado vacum, onde os bois, contemplando com o olhar triste a verde relva luzidia do campo e as folhas claras do arrozal da beira do rio, pareciam mordidos do desejo de se atirar pelo sítio fora, numa orgia de liberdade e de folhas verdes. Enquanto o Felisberto falava, padre Antônio de Morais pensava que até aquela hora ainda não se atrevera, ou não pudera, dizer à Clarissa o que sentia, e que perdia o tempo, na pasmaceira do sítio da Sapucaia, sem adiantar um passo na senda amorosa que se decidira a seguir, sentindo-se incapaz de resistir ao seu temperamento de campônio. Seria realmente o idiota do Felisberto que lhe criava os embaraços, ou o acanhamento invencível do novato, talvez um resto de dignidade ou mesmo remorso, que lhe prendia os movimentos e lhe dava um nó na garganta toda a vez que tinha de dizer alguma coisa à adorável criatura que lhe ocupava os pensamentos? Se tivesse ocasião de se achar a sós com ela, teria maior coragem, ou faltar-lhe-ia o ânimo de se declarar duma vez, rompendo com o seu passado, e com a fé do seu juramento? Era uma pergunta que a si mesmo dirigia pensativo, ouvindo o som monótono e corrente do fraseado do Felisberto, e olhando distraidamente para o curral onde o touro, o único touro da manada dava sinais de impaciência, escavando com os pés o solo e ameaçando com as pontas a cerca, que lhe tolhia a liberdade e o gozo do arrozal, mas hesitando ainda, em dúvida se poderia vencer a resistência. Padre Antônio não tinha uma resposta clara, desconfiava de si mesmo, e começava a pensar que talvez tivesse exagerado os perigos que corria no sítio de João Pimenta e a gravidade da moléstia que o afligia. Provavelmente o seu hediondo pecado não passaria da intenção, por muito condenável, mas que no fim de contas não lhe podia trazer os mesmos funestos resultados duma falta irremediável. Pecara gravemente contra a castidade, entregando-se complacentemente aos ardores estéreis de noites em claro, povoadas de imagens lúbricas, de desejos sensuais, mas a sólida educação, que recebera no Seminário, o fundo de religião e de moralidade com que o dotara a natureza e a firme vontade de ser superior às fraquezas humanas, sem dúvida venceriam, estava seguro disso e o reconhecia com orgulho, as tentações da sua carne de vinte e três anos. Agora que a noite passara, carregando consigo os sonhos bestiais, sentia-se incapaz de ultrapassar os limites do pecado intencional. O seu anjo da guarda o protegia, livrando-o das tentações do demônio durante o dia, quando mais fácil lhe era cair e se afundar na infâmia. Por um fenômeno singular, cuja causa ele buscava em vão, com o dia lhe vinham a calma, o bem-estar, o vegetar tranqüilo e satisfeito sob o olhar meigo da moça, iluminado pelo seu sorriso espirituoso e honesto. Sentia um prazer indefinível em estar assim, enchendo-se de emoções ternas e boas, com os sentidos adormecidos, sem pensar em coisa alguma, sem preocupações de qualquer ordem, deixando sucederem-se as horas uniformes no caminhar incessante do sol para o seu eterno fadário, e se não fossem o Felisberto, as tremendas estopadas que lhe pregava, moendo-o com a sua parolice interminável, de bom grado ficaria assim toda a vida. Não havia, pois, motivo para desesperar da salvação. Por um lado o Felisberto, por outro as boas tendências do seu espírito e do seu coração, o amparo da educação recebida e a proteção do seu anjo tutelar lhe impediriam a queda. Mas, coisa singular! esta idéia não o confortava, não lhe dava confiança no futuro, e a modo que o irritava, ou pelo menos, causava-lhe uma emoção desagradável, que ele procurava explicar pela insistência com que o Felisberto lhe espicaçava o fígado, saturando-o de aborrecimento. No fundo do coração, fraco e receoso, começava a aparecer como um sentimento de emulação infantil, o desejo de provar ao neto de João Pimenta que só da vontade dele, o padre Antônio, dependia o aproximar-se de Clarinha, e mesmo de afastar para longe o Felisberto e as suas eternas histórias, recendentes a cera e a incenso queimado. E enquanto o mestiço falava, com o olhar sereno e sem luz fixo no rosto do padre, as mãos cruzadas sobre o peito em atitude humilde, e a boca mole a escorrer verdades monotonamente proferidas, o missionário pensava, olhando distraído para o curral, onde o touro continuava a ameaçar a cerca, com má catadura, enfurecendo-se com a permanência do obstáculo que o impedia de gozar livremente o campo. De repente, como se uma resolução enérgica lhe tivesse afogueado o sangue, o touro recuou três passos, e arremeteu com a cerca num ímpeto tal que em parte a derribou e pôs meio corpo fora. O ruído dos paus quebrados arrancou a Felisberto ao encanto melodioso das próprias palavras. O neto do tuxaua, receando que solto o touro se atirasse às plantações novas, estragando o trabalho de muitos dias, correu a acudir ao desastre, gritando que se o maldito se soltasse, o avô ficaria danado quando chegasse de Maués. Padre Antônio, desinteressado, retirou-se para o seu dormitório passageiro, à procura dum livro - um dos dois livros do finado padre santo - com que dava pasto ao espírito nos intermináveis vagares do sítio da Sapucaia.

A Clarinha lá estava. Curvada sobre o leito, a fazer a cama, oferecia-lhe às vistas a redondeza cativante das formas rijas de mameluca jovem. A comoção do padre foi tão grande, ao ver-se a sós no quarto com a encantadora rapariga, que ficou algum tempo sem movimento. Mas não devia perder aquela ocasião que o acaso lhe deparava e o loquaz tapuio não deixaria renovar-se facilmente. Era preciso vencer a timidez de seminarista, abalançar-se a uma declaração de amor! Aí estava, porém, toda a dificuldade. Jamais se resolveria a pronunciar a sacrílega palavra, e com certeza deixaria fugir aquela ocasião única! Não, não, jamais poluiria os lábios com palavras impróprias da sua dignidade sacerdotal. Sufocaria aquele insensato amor, aquela paixão criminosa, embora ela tivesse de reduzir-lhe o coração a cinzas. Morreria desesperado e louco, mas não ofenderia a pobre menina, confiante e carinhosa, falando-lhe dum sentimento que a moral e a religião repeliam, e que ela não poderia aceitar sem perder a alma pura e inocente. Entretanto, ao passo que assim pensava, uma agitação extrema o perturbava, como se tivesse diante de si um tesouro inapreciável a que bastasse estender a mão para o possuir. O vento de virtude que perpassara pelo seu cérebro exaltado abalara-o profundamente, e inconscientemente, sem saber o que fazia, torturado por uma angústia, começou a falar, doce e convincente, com uma tristeza infinita na voz, mal percebendo o efeito das suas palavras sobre a rapariga, que a princípio se voltara surpresa e, depois, se deixara ficar sentada na cama, ouvindo-o de olhos baixos, com os braços caídos, inertes, para o chão.

O coração do padre foi-se abrindo pouco a pouco, com a precaução com que abriria uma gaiola de pássaros gentis, para não deixar sair os sentimentos a uma, em tropel confuso. Disse que felizmente para ela e infelizmente para ele, em breve teria de retirar-se daquele abençoado sítio de que levava as mais gratas recordações da vida. Deixaria de incomodar aquela boa gente, e muito mais cedo do que o poderiam supor, teriam notícia de sua morte em alguma aldeia de mundurucus. A moça levantou para ele os olhos úmidos de lágrimas, como se aquela idéia de morte lhe cortasse o coração.

Sim, continuou padre Antônio, morreria em breve, e dele naquela casa ficaria a lembrança dum hóspede importuno.

E como a rapariga protestasse com um sinal de cabeça gentil, ele, por sua vez, repetiu que todos os obséquios recebidos no sítio da Sapucaia lhe ficariam para sempre gravados na memória. Não pensasse a Clarinha que dizia uma banalidade amável, não sabia mentir, ainda que para agradar ou agradecer favores. Desde a sua infância, passada na triste fazenda paterna, erma de afetos, nunca tivera o sorriso carinhoso duma mulher, mãe ou irmã, a animá-lo no caminho escabroso da vida. E quando se vira doente, perdido em pleno sertão, numa casa estranha, entre gente que pela primeira vez o via, e que o amparava na desgraça, uma mulher lhe sorrira, tratara-o com o afeto de mãe e irmã ao mesmo tempo, despertando-lhe no coração as mais doces emoções que tivera a sua mocidade árida e isolada, toda preenchida pelo estudo e pela dedicação austera do sacerdócio. Essa mulher, era ela, a Clarinha, sempre solícita, bondadosa e paciente, aturando as impertinências e rabugices da moléstia, passando noites em claro para velar-lhe à cabeceira, dando-lhe coragem e resignação, exortando-o a viver quando o sofrimento o despenhava no desespero. Agora, que tinha de seguir o seu fadário, cumprir a missão que se impusera, terminando por uma morte gloriosa e útil uma vida estéril, queria ao menos, como alívio e derradeiro consolo, dizer-lhe, assegurar-lhe que jamais se esqueceria dela, da sua bondade, dos seus carinhos, e que na hora da morte, se alguma idéia, algum pensamento profano pudesse acudir-lhe, seria o de Clarinha, meiga e afável, dedicando-se, sem vislumbre de interesse, pela vida do hóspede melancólico que o acaso lhe trouxera...

A moca estava comovida, os seus lábios trêmulos, os seus belos olhos chorosos diziam os sentimentos que as palavras do padre despertavam-lhe no peito. Quando o padre terminou dizendo que ninguém poderia sentir profundamente a sua morte, porque ninguém o amara, a rapariga fez uma negativa tão enérgica, que o padre eletrizado aproximou-se dela, sentou-se ao seu lado, com a cabeça perdida e a voz presa na garganta. Ficaram ambos enleados, namorando-se com olhos apaixonados. Os peitos arquejantes denunciavam a viva emoção que os unia num afeto ardente. Padre Antônio tinha os lábios secos, um forte tremor lhe sacudia as pernas, os braços, o corpo todo, dando-lhe a sensação dum frio intenso. A moça, de lábios entreabertos, com um sorriso doce, cravava nele os olhos, pedindo-lhe que falasse mais...

O Felisberto empurrou a porta, gritando muito alegre, que sempre contivera o touro no curral, para o impedir de comer o arrozal, mas vendo-os juntos, sentados na mesma cama, em atitude envergonhada, lançou ao padre um olhar de malícia velhaca, e gargalhou um riso nervoso e alvar, no gozo duma aspiração satisfeita.

A volta de João Pimenta, que no dia seguinte chegou de Maués, agitou novamente a questão da viagem de padre Antônio de Morais ao porto dos Mundurucus. O vigário de Silves não ousava adiar por mais tempo a realização do projeto de catequese, temendo despertar as suspeitas do velho índio, e logo que este lhe mandou dizer pelo Felisberto que estava às suas ordens, apressou-se em marcar a partida para daí a dois dias pela madrugada Clarinha tentou opor-se à partida, dizendo que aquela história de catequese não tinha razão de ser, que padre João da Mata para converter um tuxaua não precisaria sair de Maués, e que era pena arriscar uma vida preciosa para batizar tapuios.

Felisberto disse que entendia também que a viagem às tabas mundurucuas era uma asneira do padre, que ele Felisberto não compreendia. João Pimenta, porém, não manifestou opinião, e essa reserva obrigou o vigário, baldo de desculpas para a delonga, a insistir em partir no dia designado.

Esta deliberação que pela manhã, à luz do dia, sob o olhar sereno da moça, tomara com virtuosa energia, sustentava-a agora no silêncio do quarto, reputando-a, à luz mortiça do candeeiro de azeite, acertada e salvadora. Pela primeira vez, a noite não lhe trouxera uma modificação nas idéias e nos sentimentos que o dia lhe proporcionara Agora, a sós, no exame de consciência a que se entregava sentia um grande asco da sua hipocrisia, da sua moleza, da rápida degradação moral em que ia caindo. Horrorizava-o aquele amor infame que o salteara de improviso, como um cão danado se atira à garganta do transeunte, e que lhe abalara a fé, a crença, a honradez e a virtude, reduzindo-o a uma criatura sem moral e sem dignidade, vítima indefesa das tentações do inimigo, presa fácil de demônios cobiçosos. Agora, a sua vaidade estava satisfeita, aplaudia-o pela prova que dera, naquela manhã, de que sabia dominar as paixões e os instintos baixos da natureza egoísta. A resolução de deixar a Clarinha, inabalavelmente firmada, mostrava à sua vaidade que assim como rompera naquele dia os laços que o prendiam ao sítio da Sapucaia, os saberia arrebentar em qualquer tempo que a dignidade imperiosa o ordenasse. Bem se sabia forte, incapaz de se deixar dominar por uma mulher, ainda que ela realizasse o ideal da Grécia antiga, a correção palpitante das formas, ainda que conhecesse os segredos lúbricos de Popéia e tivesse as manhas da feiticeira Circe! Podia perfeitamente colher a flor que encontrava no caminho, sem receio de que o perfume o embriagasse, tirando-lhe a razão e fazendo-lhe esquecer o ideal da sua vida de padre! Não pertencia ao número dos fracos, dos que não podem levar aos lábios a taça do prazer, sem que se lhes agarre à boca, e lhes tire o ânimo de a deixar cair ainda cheia! Oh! se ele, padre Antônio de Morais, quisesse gozar as inefáveis doçuras dum amor partilhado, nem por isso a sua carreira se cortaria desastradamente, não se afundaria no lodaçal da sensualidade, que, como o fizera a feiticeira aos companheiros de Ulisses, converte os homens em porcos. Não, tinha a necessária energia e força de vontade para conter-se à borda do abismo, e a calma precisa para lhe sondar a profundeza a olho frio e seguro. Homem, poderia ceder às exigências da natureza sem que por isso se tornasse incompatível com as grandes empresas que demandam coragem, lealdade, desprezo da vida e dos prazeres. Para um homem sensato, o problema era dominar o prazer, regularizá-lo, utilizá-lo mesmo, e não se deixar subjugar pelo gozo; tomá-lo como um acidente agradável na vida, como estimulante para os grandes combates da existência, e não como o seu objetivo principal. Assim, segundo esta filosofia verdadeira, a convicção da própria fortaleza aconselhava-o a encarar a deliberação de seguir viagem como um ato cujos efeitos morais eram importantes, mas suficientes. Desde que ele se via capaz de quebrar o encanto que o prendia ao sítio, para que privar-se de satisfazer as exigências de sua natureza de vinte e três anos, adiando a partida por uma semana ou por um mês? O principal era experimentar a sua força de vontade; uma vez provada, os terrores deviam desaparecer, a dúvida esvaía-se, a regeneração era certa, o arrependimento salutar.

À medida que as horas se adiantavam e a atmosfera do quarto refrescava com a brisa da madrugada, aquela segurança ia dando à resolução inabalável da manhã o caráter duma rematada tolice. Perdido o receio de se deixar dominar por um amor terreno, ao ponto de lhe sacrificar a glória da religião e a salvação eterna, que necessidade havia de perder também a ótima ocasião de consolar o isolamento de toda a mocidade com o gozo dum amor de virgem? Partiria para o sacrifício e para a morte sem ter libado algumas gotas de felicidade neste mundo, sem conseqüências fatais ao seu nome, porque secreta, e à salvação da alma, porque não absorvente, e antes, pelo contrário, sempre possível dum arrependimento oportuno e sincero? Sairia, deixando a Clarinha, aquele tesouro de graças e de beleza, à disposição do primeiro regatão ousado que se aventurasse por aquelas paragens? Que mal resultaria duma hora de esquecimento, de embriaguez mesmo, uma vez que havia certeza de recuperar a razão, para o guiar no governo da vida, tirando toda ação nociva à bebida inebriante? O sacrifício que ia fazer nas brenhas da Mundurucânia, exemplo raro de crença e de fé, não era bastante para resgatar uma culpa?

Começava a reconhecer que fora precipitado na determinação do dia da viagem, antes de ter saciado aquela imensa curiosidade de amor que o devorava, porque, com calma e reflexão, sondando o íntimo da sua natureza ardente de matuto, sem paixão nem cegueira, constatava, verificava e reconhecia que o gozo almejado lhe era tão necessário, como o alento da fé, que o trouxera das bordas do lago Saracá às paragens do Guaranatuba, era indispensável para a realização da grandiosa empresa que tentara. Sem satisfazer primeiro as exigências do temperamento animal, nunca seria capaz de levar a cabo a obra de dedicação e sacrifício, seria um homem incompleto, não encontraria um estimulante assaz forte para o robustecer contra as fadigas e descômodos da viagem, as fomes, as perseguições e as misérias; ficar-lhe-ia sempre na alma o espinho pungente daquele prazer não provado, daquela curiosidade insatisfeita, para o ferir no mais solene momento, para lhe fazer nascer a dúvida no espírito, para abalar a crença nos grandes atos de martírio com o pesar, talvez, das delícias incomparáveis que lhe teriam proporcionado os braços da Clarinha. E agora, nesse momento de grande sinceridade, em que se fazia justiça severa, podia confessar que o sangue de Pedro de Morais não lhe corria nas veias sem que influísse sobre o seu caráter indolente, comodista e sensual, que só um grande sentimento, o remorso por exemplo, um profundo arrependimento de grandes pecados cometidos, poderia arrastar ao mais' completo sacrifício que a um homem é dado fazer da sua pessoa e das suas aspirações.

Exaltava-se, recordando-se de que tivera a Clarinha ali, naquela cama, quase nos seus braços, palpitante e apaixonada, e que nem sequer ousara tocar-lhe, limitando-se a dizer-lhe coisas tristes. Tinha acessos de raiva quando pensava que deixara escapar ocasião tão favorável, que provavelmente não se repetiria no curto prazo que lhe restava. Dava murros na cara para se castigar da falta que cometera. Ele, padre Antônio de Morais, tão ousado de imaginação que se arrojara aos mais inconfessáveis pensamentos, levando a ponta da sua curiosidade investigadora às mais sagradas regiões dos mistérios divinos, deixara-se ficar como um palerma ao pé de uma rapariga que se lhe oferecia, com os braços pendentes e resignados, os olhos úmidos, a boca entreaberta, solicitando beijos.

Havia já algum tempo que desertara a macia rede de linho, e passava as noites na marquesa de palhinha, em cama feita carinhosamente de alvos lençóis finos, na convicção de que evitaria assim mais facilmente as tentações da carne. Mas a lembrança de que ali estivera assentada a Clarinha, deixando um vago perfume de sua pessoa naqueles linhos brancos, e como que o sinal do seu corpo na leve depressão das roupas da cama, tornava-lhe mais perigoso aquele leito do que jamais o fora o regaço macio da rede. Ocupava o mesmo lugar que ela ocupara, e sentia desmaios de gozo e ardores formidáveis com aquela aproximação ideal dos corpos. A idéia de que perdera tudo levava a paixão às raias do delírio, havia momentos em que pensava em assassinar o velho tuxaua e o Felisberto, e fugir com a Clarinha para o mato, para a amar, debaixo dos castanheiros, sob o sol ardente, à luz esplêndida de um dia de verão, em pleno ar, em plena liberdade, ao som da música dos passarinhos e à face de toda a natureza, que desejava provocar a um desafio insensato. O sonho da carne nua, palpitante à luz do sol, lembrava-lhe aquele trecho de epiderme acetinada e colorida, entrevisto ao chegar, nas formas excitantes da mameluca, e os seus olhos negros e aveludados, cheios de ternura, os cabelos recendentes do cheiro afrodisíaco das mulatas paraenses, e tinha alucinações cruéis... A Clarinha estava ali, sentada na cama, como na véspera, mas despida, só com aquele cabeção indiscreto com que a surpreendera à chegada, e ele, num frenesi agarrava-a pela cintura, atirava-a sobre os travesseiros; cobria-a de beijos loucos, e desfalecia de prazer nos braços da mameluca, embrutecido por um perfume ativo de trevo e de pipirioca.

O dia o veio achar num abatimento indescritível. Ergueu-se a custo, com a cabeça pesada e o corpo lânguido, abriu a porta do quarto e saiu para a varanda, vestido como se deitara, com uma camisa de chita e umas calças de brim.

Como para lhe fazer sentir melhor a dor da separação, o último dia da sua estada no sítio se anunciava esplêndido. A natureza revestia-se de todas as galas, ostentando uma profusão de cores e de luz. Nunca o sítio de João Pimenta lhe parecera tão belo. Fora certamente num dia como aquele que padre João da Mata aportara àquele lugar e o escolhera para seu retiro. O sol, erguendo-se por trás das matas da outra banda, coloria de azul a rica vegetação das terras, deixando ainda na sombra as tranqüilas águas do estreito, abrigadas pelas árvores colossais da beirada, e vinha dourar a pindoba do teto da casa de moradia, dando-lhe reflexos metálicos. O céu, dum azul esbranquiçado, alourando para o oriente, parecia uma grande cúpula transparente, que limitava por todos os lados o horizonte, engatando-se na linha ondulante das árvores longínquas, ou abaixando-se para o poente até encontrar a orla da campina, que crescia para ele numa atração de amor.

Os pássaros despertos enchiam a mata de mil vozes confusas, a que respondia o mugir das vacas de leite, presas no curral e ansiosas por correr livremente o campo, cuja verdura namoravam.

Todos dormiam ainda na casa. Padre Antônio caminhou para o porto. Despiu-se por detrás duma moita, e meteu-se no banho. A branda tepidez matutina da água acalmou-lhe os nervos, refrescou-lhe a cabeça, e restituiu-lhe o vigor, e quando sentiu que a gente da casa acordava, saiu do banho, vestiu-se às pressas, confiando ao sol o cuidado de secar-lhe a roupa.

Na disposição de espírito em que se achava nada lhe seria mais insuportável do que a prosa soporífera do quase imbecil Felisberto, e em vez de voltar para a casa, onde o assustava também a idéia dum encontro com a Clarinha, rodeou o laranjal, e internou-se no cacaual, no propósito de meditar calma e livremente.

O banho acalmara-lhe a exaltação extraordinária em que gastara a noite, e podia agora refletir melhor sobre o que lhe cumpria fazer. Ao período de excitação nervosa sucedera o de colapso físico em que a alma pudera reassumir o governo do corpo. Essa mudança permitia-lhe ver claro na sua loucura. Sustentara um combate terrível com o inimigo do gênero humano, donde safra são e salvo por um milagre da graça divina, mais do que pela robustez da sua fé. Havia no cacaual uma sombra cheia de umidade, que penetrava os ossos e dava uma sensação singular de frio. Os papagaios e os macacos devoravam os cacaus que a inércia de João Pimenta deixara apodrecer na árvore, e fugiam à aproximação do padre. O missionário passeava sob os cacaueiros, enterrando os chinelos nas folhas úmidas que lastravam o chão, parando de vez em quando inconscientemente se alguma idéia mais grave lhe atravessava o cérebro.

Sentia um grande conforto de virtude. Liberto da presença encantadora e dominante da neta de João Pimenta, sentia que a honradez nativa retomara o antigo império no cérebro farto de aninhar uma paixão impossível e vá, e que o ardor religioso se reacendia exaltando-lhe os sentimentos. Parecia-lhe que tinha agora o coração limpo duma moléstia incômoda ou que safra duma embriaguez de vinho, readquirindo a lucidez do espírito. Não, não recairia naquele abatimento moral que o pusera às bordas do abismo, havia de furtar-se, uma vez para sempre, às tentações indignas que o iam fazendo esquecer a grande e sublime missão que Deus lhe reservara na terra, e no íntimo de seu peito, ainda há pouco opresso por desejos insensatos, nascia um honrado orgulho da vitória da sua integridade.

O orgulho ia crescendo e se transformando numa necessidade irresistível de se aplaudir a si mesmo, e de comparar-se para se convencer do próprio mérito. O beato Luiz de Gonzaga, de virginal memória, não lhe ficaria superior se se atendesse à gravidade e número das tentações sofridas por um e desconhecidas do outro. Sim, estava contente consigo mesmo. Partiria no dia seguinte, sereno e tranqüilo, sem saudades do tesouro de deleites que sacrificara à glória do próprio nome e à propagação da fé nos sertões do Alto Amazonas.

Não se diria que padre Antônio de Morais, depois de vencer tantos obstáculos, fadigas e perigos, atravessando incólume inóspitas paragens, esmorecera no fim da empresa, deixando-se cativar pelos olhos duma tapuia, ele que sentira sobre si, orgulhoso e indiferente, os olhares cobiçosos de mulheres brancas do Pará e das suas mais belas paroquianas de Silves.

Seguiria para o porto dos Mundurucus, morreria às mãos do gentio ou o converteria à religião de Cristo, e o próprio Chico Fidêncio lhe faria justiça.

Passeava, fazendo gestos de extraordinária energia, expandindo os sentimentos que o agitavam. Falava, esquecido de que ninguém o ouvia, escapavam-lhe frases, cheias de intimativa aos silenciosos cacaueiros. De que valiam gozos terrenos ante a perspectiva da bem-aventurança eterna! Que era o amor duma mulher comparado com o amor da humanidade? Que era o prazer carnal, que voluntariamente deixava, em confronto com a glória que cobriria o seu nome, se morresse, e as honras e dignidades que recairiam sobre o obscuro padre matuto, se lograsse voltar com vida das aldeias mundurucuas? Vinha-lhe uma ambição de subir, de ocupar altos cargos, uma cobiça de honrarias. Podia ser chamado pelo seu bispo a ocupar a primeira dignidade da Sé paraense, e talvez que a fama levasse o seu nome ao Rio de Janeiro... aos pés do imperador, o dispensador dos benefícios. Decididamente não fora feito para vegetar numa paróquia sertaneja. Também não imitava, comprazia-se em o reconhecer, para se desculpar das ambições, não imitava o procedimento dos seus indolentes e debochados colegas do interior da província, não era um padre João da Mata, um padre José, o finado vigário de Silves.

E então, inchando de vaidade, e para melhor se convencer do direito que tinha às altas posições da Igreja, perguntava, possuído dum ódio súbito contra os outros padres: Que faria em seu lugar um desses sacerdotes espalhados pela diocese do Pará, desde a capital até os confins de Tabatinga? Levaria uma vida cômoda e fácil, entregue à adoração de Vênus, seguindo as doutrinas de Epicuro. Ele não, não se confundiria com esses porcos de ceva, ignorantes e dissolutos. A sua missão estava traçada, havia de cumpri-la.

Sentia o cérebro perturbado pelo fumo da vaidade que lhe vinha de tais pensamentos, embriagava-se pouco a pouco com a idéia da superioridade do próprio mérito, à medida que evocava da história dos santos os nomes mais reputados em virtudes, e por um breve processo de comparação, levando em seu favor a diferença dos tempos e das situações, concluía, com a lógica poderosa que lhe ensinara padre Azevedo, que não lhes restava nada a dever. Novo S. Francisco Xavier, o apóstolo dos índios, casto como S. Efrém e S. Luís de Gonzaga, forte e sereno como o seu homônimo, vencedor do demônio, ele, padre Antônio de Morais, ilustraria os sertões da Amazônia e glorificaria a sua pátria, resumindo na sua simpática figura de mancebo forte os altos merecimentos que, separadamente, haviam eternizado a memória de tantos canonizados!

O dia adiantara-se. O sol, coando raios vivos pela folhagem dos cacaueiros, punha em plena luz a sua estatura elevada, o seu rústico vestuário, que lhe causou uma impressão de desgosto. Era tempo de sair do cacaual, de volta para a casa, a tratar dos preparativos da viagem que devia fazer no dia seguinte. Mal tomara a resolução, uma visão inesperada o colheu de surpresa, obrigando-o a dar um salto para trás e a esconder-se entre troncos de árvores. A Clarinha, a neta de João Pimenta, dirigia-se para o cacaual, com um alguidar vazio na mão, arregaçando a saia de chita para a não molhar no capim orvalhado, e deixando à vista, descuidosamente, uma perna roliça, até perto do joelho.

Ele a viu aproximar-se, encantadora, com o cabelo preso no alto da cabeça, com um simples vestido de chita, e os pequeninos pés nus a dançarem numas tamanquinhas de couro vermelho, encaminhar-se para o seu lado, e parar bem ao pé dele, sem o ver; depois chegar-se a um cacaueiro, carregado de frutas maduras, pôr o alguidar no chão, e começar a colher os cacaus, que partia batendo-os na árvore, e cujos bagos, cobertos de alva polpa aveludada, despejava no alguidar. Viu-a com o rosto pálido e sério, entregue àquela tarefa simples, e parecendo-lhe que chorara, porque tinha os olhos vermelhos, comoveu-se e acercou-se dela, perguntando-lhe o que tinha que a fazia tão triste.

Ouviu-a responder que não tinha nada, mas ao passo que isso dizia, saltavam-lhe as lágrimas dos olhos, e com grande volubilidade contava, para disfarçar a emoção, que viera colher cacau para preparar o vinho que o avô gostava muito de ter à sua vontade quando viajava. Queria preparar um pote de vinho porque, bebendo-o na viagem, o senhor padre, talvez, conservasse por mais tempo a recordação do sítio da Sapucaia... que queria deixar a todo o custo, como se desagradável lhe fora a convivência com os pobres habitantes de tão mesquinha tapera. Viu-a, ao pronunciar essa última frase, deixar o trabalho que encetara e, encostada ao cacaueiro, olhar para ele com um misto encantador de ternura e de zanga, sacudindo a cabeça muito sentida pela ingratidão que lhe faziam, toda ela respirando amor e volúpia, com os seios a arfar brandamente, o tronco do corpo, vergado para trás, salientando o ventre numa postura provocante; o ligeiro prognatismo de raça, dando-lhe ao rosto uma graça peculiar, parecendo oferecer a beijos apaixonados aquela linda boca vermelha de lábios fortes e carnudos. Um braço erguido e descansando sobre um galho de árvore, deixava pender a manga do vestido e oferecia à vista uma carne rija e colorida, enquanto o outro braço, caindo ao longo do corpo, exprimia uma passividade resignada... Viu-a finalmente manter-se nessa posição por algum tempo, e depois com um risinho irônico dispor-se a continuar o trabalho, abaixando-se para levantar o alguidar do chão.

Então ele, saindo de uma luta suprema, silencioso, com um frio mortal no coração, com o cérebro despedaçado por um turbilhão de sentimentos contrários, atirou-se à moça, agarrou-a pela cintura e mordeu-lhe o lábio inferior numa carícia brutal. Foi breve a luta. A neta de João Pimenta caiu exausta sobre o tapete de folhas úmidas do orvalho, douradas pelo sol. Entre os ramos dos cacaueiros os passarinhos sensuais cantavam.

Quando a Clarinha voltou para a casa, levando o alguidar cheio de bagos brancos e aveludados, padre Antônio de Morais vagava pela floresta, com a cabeça oca, sentindo uma grande necessidade de andar.