Um homem de cinqüenta anos, magro, alto, pálido, calvo, e de grande nariz, é o Sr. Venâncio, marido da Sr.ª D. Tomásia, e pai do Sr. Manduca e da Sr.ª D. Rosa.
Venâncio é um empregado, sem exercício, não nos lembra de que espécie; na vida que vive, vê-se obrigado a ser somente isso; pois que em tudo o mais é a sombra de sua mulher. Aos vinte e oito anos casou-se, porque seu pai lhe disse que era preciso fazê-lo, com uma senhora que se acompanhava de alguns mil cruzados de dote, como de fato os trouxe a Sr.ª D. Tomásia, que, pela sua parte, segundo ela mesma o diz, casou-se para se casar.
E este casal representou logo e continuou a representar o mais interessante contraste. Venâncio é débil, condescendente e pacato; se algumas vezes se empina, é para logo dobrar-se mais humildemente que nunca. Tomásia é forte, decisiva, arrogante e valentona. Não sabe senão mandar e quer sempre ser obedecida. Vendo de longe a sociedade elegante, trata de arremedá-la, e faz-se uma completa caricatura do que ela chama grande tom. Conhecendo cedo o gênio e caráter de seu esposo, tornou-se a déspota, a tirana do pobre homem; e para servirmo-nos de um pensamento dela mesma, escreveremos suas próprias palavras: "Venâncio, diz ela mil vezes, nesta casa a tua vontade é uma colônia, de que a minha voz é a metrópole." E o pobre Venâncio, casado há vinte e dois anos, há vinte e dois anos que faz inúteis planos de independência; todos os dias levanta-se com disposição de sustentar a pé firme uma batalha decisiva, mas às primeiras cargas do inimigo larga as armas, bagagens e tudo, e põe-se em retirada, ou as mais das vezes ajoelha-se e implora anistia.
Ultimamente havia escaramuças diárias: a razão aqui vai. Tomásia tivera nos primeiros cinco anos dois filhos; depois parece que a natureza lhe gritou stop; passaram-se dezesseis e ao correr o décimo sétimo veio, contra a expectativa de Venâncio, mais uma menina, para fazer a conta de três. Tomásia saudou com entusiasmo esse acontecimento. Segundo certa aritmética exclusivamente feminina, algumas senhoras quando chegam aos quarenta anos contam a sua idade no sentido inverso do que até então praticaram: isto é, no ano que se segue àquele em que fizeram quarenta, contam trinta e nove; no outro que vem, trinta e oito, até que chegam segunda vez aos trinta, em que costumam fazer uma estação de um lustro. Ora, Tomásia, mais velha que seu marido três anos, já tinha exatamente três anos de estação, mas, vindo inopinadamente a nova menina, entendeu lá consigo que era preciso contar menos de trinta para ter filhos, e, pois, foi dizendo que se enganara na conta de sua idade; pois que não tinha mais que vinte e nove anos. Todavia, essa importante revelação não ficava bem-sabida, confiando-se somente às visitas e vizinhas, e, portanto, Tomásia declarou a seu marido que sua filha seria batizada com estrondo; e que se daria um elegante sarau em honra da recém-nascida. Venâncio opunha-se a isso pelo mau estado em que se achavam seus negócios financeiros; a mulher bradava; Rosa votava pelo sarau, Manduca também; e a casa andava de poeira levantada. Também jamais Venâncio se mostrara tão valente.
Na manhã do dia que se seguiu à noite tempestuosa descrita no capítulo antecedente, Venâncio achava-se na sala de sua casa, sentado no canapé, triste e silencioso como um marido infeliz, que se vê a sós; vestia uma calça de brim escuro, e uma niza branca, tinha no pescoço um lenço de seda, de dentro do qual surdiam enormes e pontiagudos colarinhos; junto dele descansavam seus óculos sobre o Jornal do Commercio e, tendo de esperar que se levantasse sua mulher, Venâncio com uma perna descansada sobre a outra e exalando sentidíssimos suspiros, empregava o tempo em passar meigamente os dedos sobre o grande nariz, que devia à natureza, e que, depois de seus filhos, era o objeto que mais idolatrava no mundo.
No dia anterior, Venâncio tinha tido uma acalorada questão com sua mulher; porque, ao vê-la entrar na sala com os cabelos desgrenhados, não lhe fizera a menor reflexão sobre isso: daí passaram à discussão da ordem do dia, e gritou-se sobre o batizado, como se grita em certo corpo coletivo, quando se trata de eleições.
As idéias do dia passado assustavam, portanto, ao pobre Venâncio, que temia ver reproduzidas as mesmas cenas; além disso, tinham batido dez horas, e Tomásia com suas filhas dormiam a sono solto. O infeliz homem sofria em silêncio todas as torturas da fome, quando, passada ainda meia hora, uma porta se abriu, e por ela entrou Tomásia com os cabelos soltos e o vestido desatado. Venâncio lembrou-se logo que, por não reparar nesse desalinho, fora já acometido, e, pois, ergueu-se para receber nos braços o seu flagelo, e, cruelmente risonho, exclamou:
— Oh, querida Tomasinha!... pois assim te ergues e sais do teu gabinete sem te penteares, e...
— E que tem o senhor com isso?... bradou a mulher, porventura quer que durma penteada, ou já me facilitou um cabeleireiro para toucar-me apenas me levanto da cama?... é impossível!... não se pode viver sossegada com um velho impertinente como o senhor.
— Está bem, minha Tomásia... não te aflijas... eu disse aquilo só para falar.
— Isso sei eu; porque o senhor é um desenxabido... tanto lhe faz que eu ande malvestida, mal toucada ou não... para o senhor é a mesma coisa... não tem gosto... não presta para nada...
— Pois mulher... eu já não disse, que...
— Pois se disse, é o mesmo que se não dissesse, porque o senhor não sabe dizer senão asneiras...
— Tomásia... estás hoje cruelmente impert... infe... zanga...
— O que é que diz?... o que é que eu estou?... hem?...
— De mau humor, Tomásia, de mau humor...
— Por sua culpa! vivemos em uma guerra aberta... como dois inimigos; mas deixe estar, que hei de perder um dia a paciência; eu sou uma pomba, tenho o melhor gênio do mundo; mas o senhor é um dragão, uma fúria!...
Venâncio já torcia-se até não poder mais; finalmente, depois de muito espremer-se, contentou-se com dizer:
— Sim... sou eu que sou a fúria... há de ser assim mesmo.
— Isto é um martírio!... uma tentação!...
O velho não respondeu palavra.
O silêncio de Venâncio contrafazia talvez a Tomásia, que, sentando-se em uma cadeira longe do marido, deixou-se ficar por muito tempo muda, como ele; depois, como se tomasse nova resolução, soltou um suspiro, e disse:
— Quando eu estou pronta a viver em paz eterna com ele, o cruel volta-me as costas!...
— Eu, Tomásia?!...
— Sim, tu, tornou ela com voz menos áspera, e eu não posso viver assim... isto me envelhece... tu me fazes cabelos brancos.
Venâncio olhou espantado para Tomásia, que, deixando o lugar que ocupava, foi sentar-se ao lado do marido, passando-lhe amorosamente o braço em derredor do colo. O fenômeno espantava: tão rápida mudança da rabugem para os afagos era para admirar; mas Tomásia o fazia de plano.
Vendo, contra os hábitos de vinte e dois anos, que o marido resistia à sua vontade, e que apesar de todo o esforço a festa do batizado continuava duvidosa, a mulher pensou, durante a noite, em um ataque de nova espécie contra Venâncio: ela devia estar enfadada na sala, exasperar o marido até fazê-lo gritar, fingir-se, então, pela primeira vez, temerosa, humilhar-se, enternecê-lo, e depois a poder de lágrimas conseguir o que, então, não havia podido o seu quero absoluto.
A paciência de Venâncio tinha neutralizado o estratagema de Tomásia: o cordeiro, sem saber e sem querer, opôs-se admiravelmente à raposa; e, conhecendo a mulher que seu marido não se assomava com as loucuras que lhe foi dizendo para levar a efeito o plano que concebera, fez-se por si mesma carinhosa e meiga.
O pacato velho começou por espantar-se do que observava; quando, enfim, Tomásia passou gradualmente da meiguice à submissão, ele mirou-se todo inteiro a ver se havia alguma novidade de meter medo em sua pessoa; não descobrindo nada que lhe explicasse o fenômeno, e, tendo de dar-se necessariamente uma explicação, imaginou que nesse dia a sua voz tinha um timbre assustador, que de seus olhos talvez partissem vistas magnéticas... fulminantes... terríveis.
Sucedeu a Venâncio o que acontece a todo o homem medroso: apenas acreditou que sua mulher recuava, concebeu a possibilidade de chegar a sua vez de valentão, e determinou aproveitar-se dela; ele! a bigorna de vinte e dois anos passar milagrosamente a ser martelo!... semelhante idéia desenhou-se brilhantemente aos olhos do velho, que bem depressa cerrou as sobrancelhas, fez-se carrancudo e dispôs-se a representar o papel de mau.
Tomásia, que tinha assentado de pedra e cal fechar a discussão calorosa, que há tantos dias era debatida entre seu marido e ela, não perdia um só dos movimentos deste, bebia-lhe todos os pensamentos com vistas fingidamente tímidas, e, ao conhecer que o adversário caía nas suas redes, disse com voz terna:
— Pois bem, meu Venâncio, de hoje avante viveremos em completa harmonia.
— Se a senhora o quiser... seja! respondeu com mau modo o pobre homem.
Tomásia reprimiu a custo uma gargalhada; tal era o pouco-caso que fazia do marido. Venâncio levantou-se, e, cruzando as mãos atrás das costas, começou a passear ao longo da sala; a mulher levantou-se também e, acompanhando-o de perto, travou com ele o diálogo seguinte:
— Estimo achar-te disposto à paz, disse ela; portanto, meu amigo, tratemos de estabelecê-la com bases sólidas: queres?...
— Se a senhora o quiser... isso para mim é quase indiferente.
Venâncio não cabia em si de alegre com a sua inopinada vitória, e prometia aproveitar-se dela.
— Pois, para isso, continuou Tomásia, troquemos penhores de paz: devemos pedir um ao outro uma prova de amor... um extremo de ternura: então, tu o que exiges de mim?...
— Coisa nenhuma.
— Não sou eu assim: tenho que te pedir, meu amigo...
— Vá dizendo.
—E ainda não adivinhaste, ingrato?...
— Ora, adivinhem lá o que quer a Sr.ª D. Tomásia! então não está boa?...
— Cruel, não compreendes que quero falar do batizado de nossa filha?...
— Batizar-se-á.
— E daremos um sarau digno de nós, não é assim?...
— Não é assim, não senhora.
— Ah! já vejo que estás brincando! tu não havias de querer que o batizado de nossa querida filhinha se fizesse como o de qualquer lheguelhé.
— Indeferido.
— Meu Venâncio!...
— Não há que deferir, não há que deferir.
— Que dirão as famílias que nos conhecem?... que conceito farão de nós?...
— Sustento o meu primeiro despacho.
— Ingrato, em recompensa do amor que te consagro, não me dás senão desgostos!... desvelo-me em te adorar, e tu me pagas com rigores... ai! sou pobre flor sem jardineiro, que fenece na espessura!
Venâncio, que sempre continuava a passear ao longo da sala, seguido por Tomásia, ouvindo aquela modesta comparação, voltou-se para ver a pobre flor sem jardineiro, que fenecia na espessura e achou diante dos olhos a cara de sua mulher feia, e desbotada; então, para se não expor a perder a posição que ocupava, teve de comprimir uma risada, e, continuando o seu passeio, respondeu:
— Não pega a lábia, minha senhora.
— Oh, ingratidão! oh, crueldade! e ele disse que queria a paz!... pobre de mim que sou a vítima!...
E Tomásia desatou a chorar horrivelmente.
Venâncio, cheio de si, perdido nas alturas de seus triunfos, não parou no seu passeio, antes o continuou, dizendo:
— Não é possível! não pode ser!
Tomásia não pôde conter-se por mais tempo: vendo esgotados até as lágrimas todos os meios brandos com que contava, fez com toda a habilidade própria das senhoras desaparecer o pranto num momento, e, levantando a cabeça, disse:
— Ai! pior está essa!... Venâncio, olha que já me vai subindo o sangue à cabeça! cuidado comigo.
Venâncio sentiu-se abalado; mas, não querendo mostrar-se desanimado, elevou a voz mais que nunca e gritou:
— Requeira em termos!...
— Venâncio!... bradou Tomásia com essa voz estrepitosa, com que costumava enterrar o marido três braças pela terra dentro.
Venâncio não se meteu três braças pela terra dentro; mas caiu completamente da sua elevada nuvem de superioridade; aquele brado de Venâncio soou na sua alma terrivelmente, e despertou a consciência do seu nada... foi ainda ensaiando um derradeiro esforço, que ele exclamou com voz de falsete:
— Tenho deferido.
Tomásia já não estava boa, agarrou nas abas da niza que seu marido vestia e, obrigando-o a voltar o rosto para ela, gritou-lhe na cara:
— Ouviste?... quero que se dê um sarau! quero! compreendes-me bem?...
E dizendo isto cruzou, como fizera Venâncio, as mãos atrás das costas, e se pôs a passear por sua vez; e o marido, que estava completamente por terra, foi quem teve então de acompanhá-la, dizendo-lhe com toda a humildade:
— Vem cá, mulher impaciente; não sabes que eu sou um empregado sem exercício, que o meu ordenado e todos os nossos rendimentos não chegam a dois contos de réis, e que por conseqüência não tenho dinheiro para dar saraus?...
— Pois tivesse: há de haver sarau.
— Não sabes que, sem necessidade e só por tua vontade, aluguei uma quinta, de cujo aluguel já devo seis meses...
— Pois não a alugasse: há de haver sarau.
— Ignoras que, para comprar tetéias francesas e vestidos para ti e tua filha, fiquei no fim deste ano empenhado em um conto de réis?... — Pois não ficasse: há de haver sarau.
— Ignoras que hoje mesmo se venceu a letra de oitocentos mil-réis, que por teu respeito assinei, e que, portanto, quem não tem, como eu, dinheiro para pagar o que deve, também não tem dinheiro para funções inúteis?...
— Pois tivesse: há de haver sarau.
— Então estas razões não valem nada?...
— Não quero saber delas.
— Devo eu querer saber. E, portanto, o dia do batizado passará como outro qualquer, só com a única diferença de bebermos mais um copo...
Tomásia não pôde mais conter o seu furor; voltou-se de repente, e esbarrou-se cara a cara com Venâncio.
— Um copo de um dardo que te atravesse!... bradou ela batendo com o pé.
— Oh, senhora! exclamou Venâncio pondo a mão no nariz a ver se corria sangue, oh, senhora! veja lá como me trata! olhe que ia escapando de esborrachar-me o nariz.
Com aquele desgraçado encontro, Venâncio, que amava o seu nariz sobre todas as coisas, tornou-se exasperado.
— Quero o sarau! bradou Tomásia.
— Não pode ser! um milhão de razões... enfim, não há dinheiro!
— Pois cubra o déficit com um crédito suplementar!...
— Vou fazer bancarrota... já não tenho crédito na praça.
— Há de haver sarau por força! gritou Tomásia com toda a força de seus pulmões.
— Não há de!... não quero!...
— Quero eu!... há de!...
— Não há de!... bradou Venâncio, que, ainda furioso, se lembrava da narigada.
— Veremos... vou fazer os convites...
— E eu saio logo a desavisar os convidados...
— Oh, brejeiro!... há de haver sarau!...
— Não há de!... digo-lho eu!...
— Patife!... maroto!...
— Patife!... maroto a mim!... que tenho saído juiz de paz em todas as eleições?... É muito... isso não se pode sofrer!...
— Eu te ensinarei!... lambazão insolente!...
— É ela!... tartaruga!... velha!... feia!...
Venâncio nunca se havia atrevido a tanto: as dores que sentia no nariz produziram aquela explosão de furor; mas ao nome de velha Tomásia foi às nuvens... era o maior insulto que se lhe podia fazer: tornou-se louca, enraivecida; e, levantando a mão, avançou contra o marido.
— Quem é velha?... quem é tartaruga, e feia, grandissíssimo brejeiro?...
— Senhora, disse Venâncio recuando!... olhe que eu perco-lhe o respeito!...
Mas Tomásia saltou sobre ele, agarrou com a mão esquerda na gola da niza, e com a outra começou a malhar-lhe as costas.
— Então quem é velha?... quem é tartaruga, e feia?... há de haver sarau ou não?...
— Prudência, senhora, olhe que eu...
— Não quero saber de prudências, continuou a boa da mulher; há de haver sarau ou não?...
As costas do pobre marido soavam, como um zabumba, fazendo horríveis caretas, ele exclamou:
— Oh, Sr.ª Tomásia, olhe que eu dou-lhe uma dentada!...
Mas a Sr.ª Tomásia, a quem já doíam as mãos de tanto socar as costas do infeliz Venâncio, mudou-lhe os tormentos, e a fortes puxões do resto dos cabelos que havia em sua calva cabeça, continuou gritando:
— Há de haver sarau ou não?
Neste momento bateram palmas na escada. Venâncio respirou com a esperança de escapar das garras de sua mulher, e disse em voz baixa:
— Largue-me, senhora, estão batendo, deixe ver quem é.
Mas Tomásia não estava disposta a abandonar assim a sua vítima, antes continuou no mesmo gênero de martírio, clamando bem alto para ser ouvida:
— Deixe bater... hei de enganá-lo primeiro... ou responda, há de haver sarau ou não?...
As palmas soaram de novo; mas desta vez acenderam elas não a esperança no coração, mas a vergonha no rosto de Venâncio.
— Largue-me, senhora, murmurou ele.
— Há de haver sarau ou não?... gritou ela.
As palmas foram pela terceira vez ouvidas.
— Está bom, disse Venâncio, quero ser prudente... haverá... haverá sarau... e o que quiser.
— Eis aí o que se chama um bom marido, exclamou Tomásia largando-o, e rindo-se: vou fazer as cartas de convite: oh, Micaela! vê quem bate.
E sem mais olhar para Venâncio, saiu da sala.
A escrava foi abrir a porta da escada, e o mísero marido aproveitou esse momento para concertar-se.
Quando Venâncio sentiu que a visita acabava de subir a escada, lembrou-se do ditado antigo, e com terrível ironia feita a si próprio; mas para esconder um pouco a sua vergonha, pronunciou com voz bem inteligível:
— Às vezes não há remédio, senão a gente sair fora do sério!...
E entrou na sala o Sr. Brás-mimoso.