A pouca distância desse mar sereno e amoroso, que lambe as brancas orlas da voluptuosa Niterói, se levanta uma graciosa casa cercada de lindos jardins e meio escondida por trás de sibilantes casuarinas e frondosas mangueiras e, olhando como namorada para a cidade do Rio de Janeiro, defronte da qual se terminam seus curtos e floridos domínios por um gradil a cavaleiro do mar, para quem abre passagem engraçado pórtico campestre ladeado de bancos de relva.
Alta ia a noite; o silêncio das dez horas derramava não sabemos que feiticeiro encanto sobre essa pequena e ditosa cidade, adormecida ao clarão de cheio luar, por entre seus vales e bosques, pelas encostas dos seus montes, e com uma de suas faces banhadas por mansinhas ondas, e toda ela enfim embalada no seu dormir pelo sussurrar dos zéfiros, que velavam galanteando as flores de seus mil jardins.
Mas, contrastando com esse geral silêncio, como dois belos gênios da noite, duas moças conversavam recostadas a uma janela da casa, que ficou acima nomeada; perto e defronte delas um pé de casuarina se elevava, a lua penetrando por entre seus galhos espargia-se gostosa sobre os semblantes de ambas. Ao clarão do luar pareciam igualmente pálidas, e em descuidadoso alinho, que a hora e solidão desculpava, longas madeixas, negligentemente soltas, caíam como espessa nuvem negra sobre espáduas cor de leite; dir-se-iam duas sombras encantadoras e belas.
Depois de separação dilatada, essas duas moças de novo se abraçavam; quem sabe, quem tem sido testemunha do afã com que se dizem mil coisas duas amigas da infância, que há muito tempo se não vêem, compreenderá facilmente o porquê velavam a tais desoras Honorina e Raquel.
Depois de longos meses passados no campo, Honorina, a jovem romântica de quem Félix havia dado notícias, tornava para a sua bela corte, e pela primeira vez a sós com Raquel, a camarada de seus jogos da infância, a companheira de suas travessuras de criança, a comadre de suas bonecas, ela esquecia que a noite corria, e conversavam juntas.
Um momento tinham ficado ambas em silêncio, quando Raquel, que até então só tivera de responder à sua amiga, entendeu que cumpria por sua vez interrogar.
— Mas, Honorina, doravante deixarás tu de ser freira?...
— Devo crer que sim, Raquel; pois que é morto meu avô, e meu pai não olha para o mundo como o encarava aquele.
— Pois bem, tu vais ser a bela princesa das nossas festas.
— Pensas isso?...
— Com tão lindos olhos, e tão belo rosto, disse Raquel dando-lhe um beijo, impera-se nas sociedades, e escolhe-se um escravo para marido.
— Mas casar-me-ei eu?...
— Que pergunta! terás medo de não encontrar quem jure que te ama?...
— Quem sabe?... e também, Raquel, chegarei eu a amar?...
— Em conclusão, e ainda que tu e eu fossemos feias, é tudo isso muito indiferente para acharmos quem nos proteste amar e queira casar conosco.
— Mas por quê?...
— Porque somos ricas.
— Oh, Raquel, isso é horrível!...
— E, todavia, nada há neste mundo mais verdadeiro, e como é neste mundo que devemos viver, devemos dar graças a Deus, que nos deu fortuna e riqueza.
— Permita Deus, Raquel, que tu me estejas mentindo; porque eu teria vergonha de viver num mundo como esse.
— Escuta, Honorina, a diversidade dos nossos pensamentos a tal respeito nasce da diferença de educação com que se nos fez crescer. Ambas temos dezesseis anos; mas tu és muito mais nova que eu. Nossos pais amam-nos com amor igual, quiseram ambos dar-nos a maior felicidade possível; ricos, como são, desejariam que nós tivéssemos todas as prendas peculiares do nosso sexo, e, mais ainda, que o nosso espírito fosse afincadamente cultivado, de modo que nós adquirimos o dobro da instrução que devem ter as nossas patrícias com a educação ordinária.
— Raquel, continua.
— Mas, para conseguir esse fim, nós trilhamos caminhos absolutamente opostos; começarei por ti, Honorina. Tu tinhas um avô, que te idolatrava com excesso, homem do século passado, que chegara até ao nosso com todas as velhas idéias firmes e inabaláveis. Ele combateu a vontade de teu pai, opôs-se ao gênero da educação que se te queria dar, e, para que este conseguisse ver-te instruída, foi preciso conceder que toda a instrução te fosse dada debaixo dos olhos de teu avô. Esse bom velho via o mundo cheio de mentiras e traição, de perigos e de enganos; e, tremendo pelo seu querido anjo, temendo que o bafo do vício manchasse a flor do seu coração, ele te escondeu dos homens; tu eras a sua bela violeta... modesta, oculta entre as suas folhas; providente, ele fugia contigo em sua alma, quando sonhava um perigo; escolhia a casa em que devias passar uma só hora em uma noite; cobria-te o rosto com um véu para te levar à igreja; tinha os olhos fitos sobre os teus mestres; ensinou-te a amar a virtude no seio da solidão; tu cresceste; aos quinze anos eras bela, sem saber que o eras; alegre, sem conhecer o mundo, pura e inocente como a florzinha; porque enfim nunca se tinha queimado a teus pés o turíbulo lisonjeiro dessas reuniões perigosas, onde reina uma febre de vaidade tão fatal como contagiosa; porque enfim nunca falara a teus ouvidos o galante mancebo que jura quando mente; que festeja quando atraiçoa; que diz que ama, e vai rir-se!
— Oh! foi assim! exclamou Honorina abraçando sua amiga.
Raquel continuou:
— Há um ano que tu perdeste teu avô e teu tio. Foram dois golpes duma vez; teu pai teve de sair da corte para tomar conta de fazendas e bens, que seus dois parentes que lhe tinham deixado; dez meses passaste no campo, e agora voltas mais bela, e mais interessante que nunca; teu pai, que não desposa os costumes dos velhos tempos, vai atirar-se contigo ao meio do tumulto dessa corte; e as sociedades te vão abrir as portas, tu entrarás por elas com o receio no coração, e um novo mundo se apresentará a teus olhos. Hás de corar no mais simples cumprimento, tremerás ao mais leve gracejo, e não compreenderás tão cedo esse viver de ilusões e de mentiras, que se vive nas sociedades elevadas, essa arte preciosa e naturalmente cortesã de encobrir a frieza do coração com o fogo dos olhos, e ocultar a indiferença ou a maldade dos sentimentos com o sorriso dos lábios; poderás tu passar pela noite de um sarau, como um raio de luz através de um corpo diáfano?... não levarás nenhuma lembrança dele?... dormirás sem sonhar, acordarás sem suspirar?... não te chegará à alma algum olhar, e não irão em alguma vez até ela as palavras ardentes do homem que te requestar uma noite inteira?... oh! Honorina, tu não compreendes o que é um homem que nos tenta enganar!... no seio da paz e da solidão, onde cresceste, tu sonhaste com o mundo... e o sonhaste nobre, puro e sincero como tu mesma; julgaste todos os homens por teus pais e teus mestres; acostumada com a verdade, não sabes desconfiar da mentira, e até há pouco criada e associada só com a virtude, tu a vês... tu pensas encontrá-la por toda a parte; e não sabes pensar que neste mundo se apresentam semblantes que se parecem com o dela, mas que não o são; que são máscaras traidoras, que escondem o horrível aspecto do crime! e, portanto, Honorina, sendo bela como o dia, tu és ainda inocente como a pomba do vale, pura como o favônio da madrugada; sim, graças à tua educação, tu és a própria virtude, não conheces o vício; mas ah! por isso mesmo dificilmente escaparás de suas redes!...
Honorina ocultou o rosto no seio de sua amiga, e só passados alguns instantes disse:
— E tu, Raquel?...
— Comigo, Honorina, passou-se o contrário de tudo isso. Meu pai viu também o mundo cheio de mentiras e de traições, de perigos e enganos; tremeu por mim, que me ama também, como o seu anjo; mas, em lugar de esconder-me dos homens, levou-me para o meio deles; em vez de fugir comigo dos perigos, conduziu-me à borda dos abismos, e fez-me medir com os olhos o seu fundo até recuar horrorizada! amante, carinhoso, pai e amigo ao mesmo tempo, ele procurou e soube ganhar a minha confiança inteira; oh! Honorina, ele lê no meu coração, como no seu livro; meu pai é uma segunda consciência que eu tenho.
— Oh! fala mais, Raquel!
— Com efeito, Honorina, desde a mais tenra idade, eu comecei a não ter segredos para com meu pai, a ser aos seus olhos tão transparente, que ele lia quanto se passava na minha alma; era em tal que baseava todo o edifício da minha educação moral. Aos doze anos eu pisei no grande mundo, meu pai me fazia freqüentar as sociedades, os saraus e as festas. Honorina, eram lições que ele me dava. Quando voltávamos a casa, interrogava o meu coração, a verdade falava por meus lábios, e meu pai me mostrava a ação em que havia um erro, as doces palavras que eu tinha ouvido, que eram uma vil lisonja, uma perigosa mentira, ou que vestiam uma traição! diante do espelho ele me convencia de que eu não era encantadora, como me tinham dito; à força de um raciocínio simples e veemente, ele fazia vir à flor da água a verdade, que fora submergida no mar de loucos e falsos protestos, de exagerados obséquios, e dessas primeiras e temerosas súplicas que nos fazem, e que são sempre a chave que abre a porta a mil atrevidas pretensões. Honorina, meu pai nunca voltou as costas ao perigo, nem os olhos ao vício; era para ao pé de ambos que ele gostava de me conduzir: eu dancei, passei cem vezes ao lado do homem depravado, do homem de quem toda a mulher devia recear; e depois, quando me achava a sós com meu pai, ele me dizia: "Raquel, dançaste e passeaste com um miserável; os sedutores falam e praticam como ele."
Honorina, eu vi a mulher perdida, observei-a em todo o horror da sua vida, de seus martírios e da sua vergonha, era meu próprio pai quem ma apontava com o dedo para dizer-me: "Raquel, eis a mulher pervertida!" E assim, Honorina, aprendi a conhecer o sedutor, e vi com terror os efeitos da sedução.
— Deve ser assim, Raquel, mas fala ainda...
— Portanto, Honorina, a tua educação fez-te muito mais nova do que eu; vi o mundo desde que raciocinei, e tu até agora somente ouviste falar dele; tu temes o vício pelos seus espinhos, oh! Honorina, é preciso temê-lo ainda mais pelas suas flores!... e então este nosso mundo, que hoje nos está beijando os pés para amanhã cuspir-nos no rosto!... este mundo, em que as mulheres são sempre nossas rivais, que nos observam, e estudam para morder-nos, e perder-nos; os homens quase sempre sacerdotes de um culto horrível que nos ornam as cabeças com flores insanas, para logo depois imolar-nos no altar do seu deus de torpezas!...
Honorina respondeu a essas palavras de Raquel com um pungente gemido. Nos seus feiticeiros sonhos de moça ela tinha imaginado modesto e nobre, virtuoso e alegre esse mesmo mundo, cuja descrição, talvez exagerada, lhe fazia agora estremecer de espanto e de horror.
Raquel ainda prosseguiu:
— Que pensarás tu, minha Honorina, ou ainda melhor, que pensa a rica herdeira a quem se corteja num sarau?... oh!... se acredita somente na décima parte do que lhe dizem... é já uma louca.
— Como!
— É quase impossível não enlouquecer, Honorina; porque ali cerca-se de todos os lados uma moça rica; não se lhe fala senão com a linguagem da adulação; trata-se de afogar-lhe o bom senso com o fumo perfumado da lisonja; vêm dez, vinte, cem elegantes mancebos jurar-lhe amor e ternura... e ela... ela, já louca, conta por vitórias dos seus olhos os triunfos do seu dinheiro!...
— Portanto, só as ricas são amadas?... perguntou ingenuamente Honorina.
— Oh! lá não se perde nada!... senhora de grande dote é o amor... o cálculo do futuro; a bela jovem de fracos teres é o amor... o passatempo do presente. Vivemos num século de frias idéias, em uma época de algarismos; tudo é positivo... o comércio tem invadido tudo; negoceia-se também com o sentimento.
— Ah Raquel! e, no entanto, tu estás sempre alegre!
— Porque é preciso rir, Honorina, já que o chorar não dá remido... e também com ânimo e virtude assoberba-se a tempestade. Olha, nós somos amigas dos primeiros anos; caminhemos, pois, juntas, e nos ajudaremos mutuamente; além de que, Honorina, e para tornar ao ponto donde saímos, nós pertencemos ao pequeno círculo das mais felizes: eu te dizia, temos ricos dotes.
— Mas essa idéia de devermos tudo ao nosso dinheiro não te acanha, Raquel?
— Eu sei, Honorina; porém, nesta vida não nos dão licença de pensar, senão no casamento; e a esperança deste está mais em um bom dote do que em dois bonitos olhos; portanto, demos graças à providência, já que nem por feias espantamos, nem por pobres desesperamos.
— Oh! porém é torpe, Raquel, disse com entusiasmo Honorina; é torpe, que um homem venda o seu coração, ou pelo menos a liberdade, por um cofre cheio de ouro! é um horrível sacrilégio ir um homem ajoelhar-se aos pés do altar, receber a bênção do sacerdote, estender a mão para uma triste mulher, com os olhos no seu rosto e o pensamento no dinheiro!... e mais baixo e mais torpe que tudo isso é um homem negociar com a desgraçada simpatia que lhe tributa uma infeliz mulher, enganá-la quando ela conta com o seu amor; quando a conduz do templo para casa, antes de outorgar-lhe o primeiro beijo de esposo, correr ao seu escritório a escrever no livro das suas contas mais uma parcela na coluna dos rendimentos!... Raquel, se eu me casasse com um homem desses, daria todo o dote que tivesse de meu pai, para que ele se não assentasse junto de mim; porque teria nojo da sua alma!... Raquel, dize que zombavas de mim, quando falavas há pouco, ou então eu te juro que melhor me fora ser pobre!...
— E pensas, Honorina, que ganharias muito com isso?...
— Pelo menos, Raquel, quando eu chegasse a ser amada teria a certeza de sê-lo por mim mesma.
— No entanto, com esse tão belo rosto, mais que a nenhuma outra, te armariam traições e cavariam debaixo de teus pés um abismo de que escaparias, eu sei, com a tua virtude, mas também com trabalhos, sofrimentos e lágrimas. Honorina, o pensamento dos homens a respeito de nós outras é este: "venda-se o homem pelo ouro da mulher rica, para com esse ouro tentar perder a mulher pobre", repito, o nosso mundo é este; vivamos, pois, com ele, e tanto mais que não vejo razão para a celeuma que tens feito.
— Oh! Raquel! quando se nos quebra contra o coração o único sentimento que pode fazer a ventura da mulher neste mundo!... quando se nos apaga no espírito a única luz que nos pode tornar brilhante o caminho da vida!... quando parece que nos estão dizendo: mulher! não ames!...
— Meu Deus!... mas tu és romântica, Honorina!...
— O amor!... o amor!... o amor!... exclamou Honorina com sentimento e fogo.
— Amor, minha cara amiga, é uma vã mentira; amor não é mais que uma das muitas quimeras com que a fantasia nos entretém na vida, como a boneca que se dá à criança para conservá-la quieta no berço... o amor não é mais que a flor de um só dia, que abre de manhã e antes da noite está murcha...
— Raquel!... pensar assim com dezesseis anos!... dizer que o amor é uma quimera!... flor de um dia!... oh! pois bem! mas essa flor tem um aroma que há de embriagar; que deve adormecer-nos num belo sono cheio de sonhos, do qual só deveríamos acordar para passar de suas delícias para as do paraíso!...
— Honorina! eu tenho medo de ti!... pensa bem nisto: o amor é uma hora de felicidade em chamas, que levantam altas labaredas; mas que se extinguem cedo para deixar após a cinza e o fumo da indiferença ou do aborrecimento, que tolda para sempre o horizonte da vida dos amantes, se o zéfiro da amizade não vem a tempo para limpá-lo.
— Oh! pois bem, Raquel, a desgraça de toda a minha vida... o horizonte dela toldado pela indiferença, ou pelo aborrecimento; mas uma só hora dessa felicidade em chamas, que tão cruelmente pintaste!... oh! sim!... o amor de um homem que se misture com a minha vida e com o meu futuro; que comigo faça um só ente; que se esqueça do meu ouro; desse ouro vil, para se lembrar de mim só... como eu me lembrarei só dele!... ah! Raquel, um amor de poeta! um amor de fogo, ainda que acabe na desgraça e na morte; mas que seja sempre o mesmo amor, deve ser bem belo!...
Os entusiásticos e nobres pensamentos da moça foram interrompidos por soluços, que quase a sufocavam. Ela chorava, e tinha razão para chorar.
Alma tão ardente e angélica, tão cheia de poesia e de imaginação, devia doer-se, sentindo-se presa em um mundo todo de matéria, de gelo, e de torpe positivismo.
A educação tinha arrojado essas duas moças para dois extremos, ambos perigosos. Uma, acostumada a ouvir com santo amor filial todos os conselhos de seu pai desde os primeiros anos; afeita a olhar para o mundo sempre pelo lado pior; tendo aprendido a amar a virtude, menos pelos encantos desta do que pelo horror que deve inspirar o vício; escutando a todas as horas a voz de uma moral fraca, grandiosa, mas fria e melancólica; abafou, sem talvez o querer, dentro do coração, os sentimentos brilhantes, arrojados e ardentes, próprios da sua idade. O amor é por ela considerado uma mentira ou um abismo; e, orgulhosa da sua educação e da sua prudência, ri-se do mundo e para o mundo.
Uma moça pensando como Raquel pode causar surpresa; mas certamente faz entristecer, porque a sua sensibilidade é o perfume da beleza.
A outra, criada longe do bulício da sociedade, separada do grande mundo pela vontade da sua família, porém ao mesmo tempo instruída com esmero; tendo até então conversado somente com os livros, imaginou o que não podia ver; cresceu na solidão, como uma flor, pura, inocente, cheia de deleitosas fragrâncias; a solidão alimentou, acendeu, inflamou a sua imaginação brilhante que voou livremente... ela sonhou com um mundo... com cem amigas... com um belo mancebo... esposo e amante, e todo o seu sonho era encantador... feiticeiro... adorável! tanto tempo, dezesseis anos fechada consigo mesma... com a alma repleta de ternos e ardentes sentimentos, e sequiosa de generosas impressões, ela que lera romances e poesias, ela que se fizera poeta na soledade e no retiro... pensava no amor com religioso encantamento; separava desse ente ideal, mavioso, angélico e vivificante toda a idéia material e bruta... não, não separava; antes, nunca se tinha lembrado ela, virgem e inocente, que se pudesse ligar uma só dessas miseráveis idéias, com aquele filho mimoso do coração, amamentado, criado, embelecido, endeusado pela imaginação.
E, portanto, ambas essas moças se enganavam com o mundo, e talvez que o seu erro seja para ambas funesto.
É possível que um dia desperte no coração de Raquel o sentimento, que aí dorme, e nesse caso terrível deverá ser a reação.
E Honorina achará nesse mundo, em que vai entreter o seu belo sonho de poesia? haverá nesse mundo, que, sem talvez estar tão pervertido, como o pinta Raquel, é, todavia, egoísta, mau, e enregelado; haverá nele ainda um homem, que compreenda a alma dessa mulher-anjo que pede ao céu um amor de poeta de fogo?... dessa nobre moça, que com a ponta do pé arrojará para longe de si o cofre de ouro do homem que ela não amar, e que pretender possuí-la?...
Oh!... se a realidade fria e negra aparecer sempre, desmentindo a sua imaginação alva e fervente!... quanto não custará a essa criatura angélica o arrastar a vida por este nosso campo de misérias!...
Mas Raquel, que primeiro escutara admirada a linguagem sentimental e entusiástica de sua amiga, apertou-a contra o peito, vendo-a chorar tão tristemente; e, como se antevisse os perigos que ela ia correr com tão inflamado espírito, exclamou quase sem sentir:
— Infeliz da minha Honorina!...
— Sim, sim, Raquel, bem infeliz; porque vivo neste mundo de ambições e de vergonhas, onde tu dizes que se ama a mulher pelo seu dote.
— Nada de tristezas agora... e tanto mais que, se fores enganada no teu amor, saberás olhar de bem alto para o homem a quem comprares com o teu dinheiro.
— Raquel, a solidão me fez tão sensível e tão capaz de amar, perdoa; mas preciso é confessar que também o aspecto e as lições do mundo têm embotado na tua alma o mais fino dos sentimentos! Não temos tocado os extremos, arrebatadas pela educação que nos deram nossos maiores: eu serei demais inocente; mas tu ficaste sábia demais.
— Aceito o cumprimento, Honorina, e te ofereço toda a minha ciência; façamos um contrato; segundo as necessidades do momento eu te emprestarei metade da minha malícia, ou tu me darás algumas doses da tua inocência. Ora, pois: realizemos os votos da nossa infância; soldemos para sempre os laços de uma amizade velha como a nossa vida; celebremos uma dupla aliança ofensiva e defensiva, e primeiro que tudo, Honorina — confiança por confiança.
— Sim, Raquel, coração por coração.
E as duas moças acabavam de selar com um beijo o tratado de aliança, quando ouviram rumor, como o que faria alguém que furtivamente se retirasse por entre os arbustos do jardim.
— Meu Deus!... é alguém...
— Honorina! eu tenho medo...
As duas moças instintivamente cerraram a vidraça, trancaram a janela, e depois de escutar se de novo faziam algum ruído no jardim, lançaram-se ambas sobre o mesmo leito.
Elas dormiam ainda no momento em que Lúcia entrou no quarto e as acordou dizendo:
— Já são nove horas da manhã, senhoras!
As duas jovens se levantaram e trataram de vestir-se; depois, lembrando-se da noite que tinham passado, elas foram à janela, recostadas à qual tanto tinham conversado. Debaixo da vidraça dessa janela estava um papel; Honorina o puxou... era uma carta.
Lúcia já as tinha deixado a sós.
— É uma carta... disse Honorina, admirada.
— E sem sobrescrito... nem selo, disse Raquel.
— Portanto... que faremos?...
— Abri-la sem dúvida.
— Mas... eu não sei... se devo...
Porém, quando Honorina disse — mas... — tinha os dedos na carta... chegou a pronunciar — eu não sei... — começara a abri-la: e ao dizer o — se deve... já a carta estava completamente aberta.
A carta era escrita com lápis, e dirigida a Honorina, era assim concebida: "Honorina; eu ouvi os teus pensamentos da noite passada; portanto, eu te amo! eu te amo com esse amor de poeta, com esse amor de fogo, que ainda quando acaba na desgraça e na morte, contanto que seja sempre o mesmo amor, é por força bem belo! Sim: eu te amo! e tu me verás em toda a parte, seguindo-te, beijando as pisadas de teus pés, obrigando-te a amar-me ainda contra tua vontade, e não me deixando conhecer senão na hora em que tiveres de ser minha para sempre... oh! jovem cheia de imaginação e de sensibilidade... querias um amor de poeta?... uma paixão de louco?... em mim tens."
— Mas, meu Deus, isto é inconcebível, murmurou Honorina toda vermelha de pejo, um homem amar uma mulher por a ter ouvido!
— É verdade... porém, não te lembras que falamos tanto na tua riqueza?...
— Oh! exclamou ela indignada e executando um movimento para rasgar a pobre carta.
— Honorina, disse Raquel suspendendo-a, um papel destes guarda-se para fazer rir as amigas.
— Não, respondeu a jovem romântica, mas guarda-se, porque o homem, que nela escreveu, tem talvez de ser o bom anjo, ou o gênio mau da minha vida.